Trancinhas da liberdade: como os cabelos ajudaram os escravizados durante a escravidão, por Luis Gustavo Reis

Trançar os cabelos era mais que um penteado, ia muito além de questões estéticas. As trancinhas caracterizavam povos, definiam costumes, auxiliavam a identificar o membro de determinada comunidade.

Trancinhas da liberdade: como os cabelos ajudaram os escravizados durante a escravidão

por Luis Gustavo Reis

Os cabelos sempre tiveram presença na história como símbolo milenar de poder, religiosidade, rebeldia e estética. Lisos ou crespos, longos ou curtos, tingidos ou naturais, os fios contam e fazem história.

Desde narrativas bíblicas, o cabelo aparece como elemento central em determinados episódios. O Antigo Testamento, livro de Juízes, narra como Sansão foi derrotado pelos filisteus após ter os cabeços cortados. A força de Sansão estava na longa cabeleira traiçoeiramente picotada por sua esposa, Dalila.

Na mitologia grega, a deusa Afrodite cobria sua nudez com fartos cabelos alongados. Na Grécia Antiga, muitas pessoas ofertavam seus cabelos aos deuses em troca de benefícios. Cabelos esses perfumados com óleos raros e tingidos em tom de louro, considerada a cor preferida dos habitantes da Hélade.

No Egito antigo, a rainha Berenice II prometeu doar sua volumosa madeixa à Afrodite, mas com uma condição: que a deusa trouxesse seu marido, Ptolomeu III, são e salvo da guerra. Os faraós, senhores do poder, usavam perucas que os distinguiam socialmente– conhecia-se o monarca pela pelugem na cabeça. Mas não era apenas os faraós, os demais grupos da sociedade exibiam perucas feitas de papiro para disfarçar as cabeças raspadas ocasionada por epidemias constantes de piolho.

No hinduísmo, os cabelos de Shiva eram fontes de energia e apontavam caminhos aos devotos, enquanto para os budistas raspá-los representava o abandono de distinções sociais, vaidades e gastos desnecessários. Algumas vertentes do islamismo discordavam dessa prática, pois manter uma pequena mecha no alto da cabeça era indispensável para que Maomé os levassem ao paraíso.  

Durante a Idade Média, os cabelos eram símbolo de status e prestígio. Na França de Luiz XIV, conhecido como Rei Sol, o monarca usava peruca para esconder a calvície. O restante da nobreza, súditos fiéis, gostaram da ideia e o costume virou moda. A peruca passou a indicar distinção entre as classes sociais.

Em meados de 1700, o corte de cabelo diferenciava juízes e advogados nos tribunais dos Estados Unidos. Como muitos eram calvos, a solução foi adotar perucas brancas importadas da Inglaterra, onde a prática era ainda mais antiga. Embora a prática tenha sido abandonada por norte-americanos e ingleses, juízes de países africanos como Gana, Quênia e Zimbabwe usam até hoje a excêntrica parafernália no cocuruto. Os togados estão colonizados até o último fio de cabelo.

Muitos séculos antes desses magistrados colonizados, as mulheres africanas haviam desenvolvido uma forma específica de lidar com o cabelo: as trancinhas. Pinturas rupestres no Planalto Tassili n’Ajje, no Saara, representam mulheres com cabelos trançados há mais 3000 a. C. No Chifre da África, região da Somália, Etiópia e Eritreia, outras pinturas indicam penteados em estilo semelhante há cerca de 1000 anos.

Gravura representa uma mulher africana trançando o cabelo de sua filha.

Trançar os cabelos era mais que um penteado, ia muito além de questões estéticas. As trancinhas caracterizavam povos, definiam costumes, auxiliavam a identificar o membro de determinada comunidade. Ademais, indicavam idade, estado civil, posição social, religião e filiação. Mas elas também tinham um caráter de sobrevivência, usada em larga escala após o advento do tráfico de escravizados.

Quando algumas mulheres eram capturadas por traficantes de escravos, antes de embarcarem nos navios negreiros, trançavam sementes de arroz em seus cabelos para comerem durante a travessia transatlântica: o arroz era um dos poucos alimentos que dispunham para sobrevivência de si mesmas e de seus filhos. Além disso, ao desembarcarem no Novo Mundo, buscando manter suas culturas vivas e dispor de uma fonte de alimento, as sementes de arroz atadas as trancinhas eram plantadas em pequenas roças. Devido ao conhecimento dessas mulheres, mormente, foi possível cultivar a planta nas Américas, do Brasil à Carolina do Sul.

Muitos escravizados foram forçados a raspar a cabeça como forma de afastá-lo de suas culturas e com a justificativa de torná-los “higiênicos”, sobretudo quando aguardavam os leilões onde seriam vendidos. No entanto, outros encontraram alternativas trançando firmemente os cabelos a fim de manter a aparência desejada por seus captores e senhores.

Em algumas ilhas do Caribe, finalizada a jornada de trabalho nas fazendas agrícolas, as mulheres se sentavam para pentear o cabelo de filhos e companheiros de cativeiro. Em diferentes ocasiões, aproveitavam para tecer tranças que transmitiam mensagens entre os cativos, sinalizavam algum plano de fuga, escondiam sementes e ouro que auxiliariam posteriormente na fuga. Nas Minas Gerais do século XVIII, quando as jazidas de ouro transbordavam abundantes, escravizados surrupiavam pedras preciosas e escondiam na vasta cabeleira. Quando expostos ao Sol, porém, as pepitas reluziam entre os fios e os gatunos eram descobertos. Foi daí que surgiu a expressão “Sarará de ouro”, ou seja, “cabelo de ouro”, que a cantora brasileira Sandra de Sá, após reformulação, imortalizou na canção “Sarará crioulo”.

No Suriname, os escravizados elaboraram trancinhas estilizadas, lineares e milimetricamente enfileiradas na cabeça, que representavam os cativos que trabalhavam nas plantações de cana-de-açúcar – e não de milho e café. As fileiras eram a alegoria dos espaçamentos adotados no plantio da cana nos campos arenosos.

Outro recurso bastante utilizado pelos escravizados em diferentes regiões das Américas era compor trancinhas que ensinavam rotas de fuga e mapas com possíveis pontos de parada na jornada para liberdade. Por exemplo, para sinalizar o desejo de fugir, as mulheres trançavam um penteado denominado “despedida”, feito de tranças grossas e justas, rente ao couro cabeludo, e amarradas em pequenos coques na parte superior. Além desse, outro estilo tinha tranças curvas, firmemente atadas. Essas tranças curvas representavam as estradas que os escravizados usavam para escapar.

Em cada fazenda, geralmente, havia uma “grande mãe” que organizava os penteados e transmitia a técnica aos demais cativos. A matriarca gozava de estima e respeito dos companheiros de cativeiro.

A maior parte dos escravizados não sabia ler e nem escrever, operaram fora do sistema da escrita e eram proibidos de acessar pena, tinta e papel. Além disso, muitos proprietários compreendiam a língua de seus cativos, o que dificultava determinadas conversas que poderiam gerar problemas aos confabuladores. Por isso, as trancinhas eram uma maneira sútil, inteligente e sagaz de transmitir mensagens impossíveis de serem decodificadas por senhores que ignoravam os significados dos penteados. Nenhum proprietário questionaria ou pensaria que se poderia esconder mapas inteiros num penteado, algo que facilitou e muito a circulação dessa engenhosidade.

Na Colômbia, meados do século XVI, viveu um antigo rei africano chamado Benkos Biohó. Capturado pelo tráfico e escravizado no Novo Mundo, Bihó fugiu do cativeiro e fundou a primeira comunidade negra livre das Américas: San Basilio de Palenque. Acossados constantemente pelas autoridades coloniais, Bihó e os quilombolas criaram linguagens, códigos e redes de inteligência contra os escravizadores. Entre o arsenal de estratégias, as mulheres elaboraram trancinhas que transmitiam mensagens, localizações e rotas até Palenque aos desejosos em escapulir das senzalas.

A tradição das trancinhas se alastrou pela Colômbia e atravessou os séculos. Atualmente, Bogotá, capital do país, organiza anualmente um festival de tranças. Com trancinhas altamente sofisticadas, designers e desenhos geométricos arrojados, o evento congrega a arte de cabeleireiros anônimos e virou um dos símbolos da identidade afro-colombiana.

Mas não é apenas na Colômbia que as trancinhas permanecem, pelo contrário, elas ganharam o mundo e representam o penteado de muitas pessoas (negras, brancas, amarelas, indígenas etc.). Transmitidas de geração em geração, a técnica africana milenar ganhou diferentes significados ao longo da história. Atualmente, é usada como afirmação étnica, valorização política, contestação as normatizações, símbolo religioso, mas também pela estética, praticidade, moda e beleza dos penteados.

Não é fácil trançar os cabelos, horas e horas são dedicadas por profissionais ou amadores que se arriscam a tocar a empreitada. No clique, clique, clique das tramas, os dedos parecem agulhas mágicas pinçando cada fio e entrelaçando uns aos outros. Os movimentos das mãos são extensões do pensamento ganhando uma infinidade de desenhos alinhados e muito bem elaborados. Nas famílias, frequentemente, as pessoas que trançam o cabelo fazem isso tanto como um ritual (proseiam, confabulam, bebem, comem) quanto como um serviço – no sentido de “servir ao outro”, de cuidar do outro. É uma forma de arte ensinada, geralmente, pela mulher mais velha da família a suas filhas, filhos, parentes e amigos próximos.

Embora valorizadas atualmente, até pouco tempo atrás as trancinhas eram consideradas “feias”, “sujas” e “impróprias” pelos arautos dos padrões estéticos eurocêntricos. Agora, apropriado pelo capitalismo que tudo transforma em mercadoria e consumo supérfluo, virou moda entre atrizes, atores, coveiros, modelos, apresentadores televisivos, eletricistas, atletas, socialites, guardas de trânsito, professores. Figura em propagandas, novelas, salões de beleza, desfiles carnavalescos, startups, botequins, quebradas, vielas, condomínios, boulevards, avenidas, ruas. Elas, as trancinhas, fazem, literalmente, a cabeça de ricos e pobres.

Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros escolares e coautor do livro Ensaios incendiários sobre um mundo normatizado (2021).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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  1. Artigo escrito à base de cachaça. É risível a coleção de falsidades exposta neste artigo. Dizer que os escravocratas conheciam as línguas dos cativos é risível. Dizer que as es mulheres escravizadas traziam sementes de arroz nos cabelos é de cair o queixo, como se o arroz fosse o cereal principal da África e não sorgo e painço. Desconhecer que os cabelos eram raspados por conta dos piolhos é mais um sinal de falsidade neste artigo.
    A historinha de desenhar mapas através das tranças é coisa de quem tomou LSD com cachaça. Eu pago hum mil reais a quem fizer uma trança indicando o caminho que vai do Engenhão ao Maracanã

  2. Uma objeção: sarará é o também conhecido “nego aço”. Branco, olhos claros ou não, e cabelos intransponíveis, podendo ser albinos e também alguns mestiços.

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