Morre Fernando Birri, mestre do novo cinema latino-americano

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Jornal GGN – O cineasta argentino Fernando Birri, mestre do cinema latino-americano, morreu aos 92 anos, segundo informações da coluna de Luiz Zanin Oricchio, no Estadão desta quinta (28).
 
Birri foi “da Escuela de Santa Fe, autor do seminal Tiré-Die e de outros filmes importantes, como Los Inundados, Org, etc, autor de livros, poemas, desenhos, malabarista de ideias e ideais, Birri foi fundador da Escuela de Cine de Cine y TV de San Antonio de los Baños, em Cuba.” Para Oricchio, “sua influência sobre o cinema latino-americano mal pode ser avaliada neste momento.”
 
“Birri se foi, seu legado fica”, disse o colunista, que republicou no jornal um texto que escreveu sobre o cineasta em 2009. O GGN reproduz parcialmente abaixo.
 
Por Luiz Zanin Oricchio
 
No Estadão
 
Todo mundo o considera um dos pais do moderno cinema latino-americano. Mas o argentino Fernando Birri prefere que o chamem de ”mascate de imagens”. Foi assim mesmo que ele se definiu em sua recente passagem pelo Brasil, no Cine Ceará, onde foi apresentar seu filme Mi Hijo el Che, feito a partir de entrevistas com o pai de Che Guevara, Ernesto Guevara Lynch. ”Sou um errante; sigo pelos países do mundo com essas pequenas imagens no baú, como os antigos caixeiros-viajavam pelas estradas com seus tecidos e seus botões”, disse, na apresentação do filme em Fortaleza. ”Vou vendo o que as pessoas precisam e, se estiver ao meu alcance, forneço-lhes essas minhas modestas imagens.”
 
O mascate de imagens não poderia ter aparência mais apropriada. Aliás, ele mesmo se parece com o título de outro dos seus filmes – Um Senhor Muito Velho Com as Asas Enormes. Título adaptado de conto de um dos seus grandes amigos, o escritor colombiano Gabriel García Márquez, parceiro no apoio constante e tenaz à Escuela de Cine y TV de San Antonio de los Baños, em Cuba. Idoso, Birri deve mesmo ser, pois subtraindo 2009 de 1925, ano em que nasceu em Santa Fé, na Argentina, obtém-se os seus 84 anos de idade. A barba é longa e branca, como brancos em geral são seus trajes, o que lhe dá uma aparência de profeta, algo como um Tolstoi do cinema, comparação que ele talvez não aceitasse, pois não é nem latifundiário, muito menos cristão, embora goze de um otimismo contagioso, uma inabalável fé no ser humano, mesmo em tempos difíceis e cheios de incredulidade.
 
Acontece que Birri, ao mesmo tempo em que professa a crença em seus contemporâneos, é também um homem realista. Percebi isso quando o conheci, muitos anos atrás, no Rio de Janeiro. Birri apresentava então seu documentário Tire Dié, talvez seu filme mais famoso. Uma explicação prévia: Tire Dié é uma corruptela da expressão ”Tire diez (atire dez)”, que os meninos pobres gritavam, repetidamente, aos passageiros do trem, correndo por uma plataforma alta e estreita, arriscando-se a morrer por uma moeda de dez centavos de peso. É um filme alucinado, em que a pobreza do interior argentino aparece na tela sob forma transfigurada e contundente, que atinge o espectador no plexo solar. O pedido de esmola, reiterado, transforma-se em estranha ladainha, uma litania da miséria. Quando lhe disse da comoção que o filme havia provocado, Birri respondeu, no ato: ”Si, quiero mi espectador conmovido, pero lúcido.”
 
Esta poderia ser uma daquelas frases simbólicas, que definem com seu peso uma postura tanto estética como ética e política do realizador. Ela sai da vivência real na feitura deste filme, sobre o qual já tanto se falou, escreveu e discutiu, e que é uma das matrizes da moderna cinematografia do continente. Foi realizado por 120 alunos da Escola de Documentaristas de Santa Fé, sob supervisão de Birri, entre os anos 1956-1958. Além de dividir crédito com os estudantes, Birri vai além. Costuma dizer: ”O pai deste documentário na verdade não sou eu; é a própria História.” Assim, há quase como uma impessoalidade na maneira como registra esse fragmento cotidiano da Santa Fé dos anos 50. Mas ele o transfigura em algo que soa como uma obra de arte superior e perene. Encanta a plateia, ao mesmo tempo em que a força a refletir sobre aquilo que está vendo. Comoção e lucidez. Emoção e política.
 
Uma combinação que não agradava aos donos do poder da Argentina no começo dos anos 60 e forçou Birri a buscar o exílio – justamente no Brasil de João Goulart. Aqui, ele fez amizade com Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, entre outros. Gente que estava cozinhando a grande revolução que viria a ser o Cinema Novo e tinha Birri como irmão de ideias e um mestre a ser ouvido. Sua influência durante o tempo em que esteve aqui não pode ser subestimada. Por exemplo, em 1963, realizou-se no Museu de Arte de São Paulo (Masp) um ciclo de conferências sobre a obra de Birri, tendo como convidado o próprio cineasta. É verdade que a influência de Birri sobre o cinema brasileiro já era anterior, da década de 50, quando os então jovens aspirantes a cineastas Maurice Capovilla e Vladimir Herzog foram visitá-lo em Santa Fé e estudaram o que ali se fazia. Mas a partir do simpósio no Masp pode-se dizer que Birri está na origem, como inspirador, do projeto Brasil Verdade, que, sob a supervisão de Thomaz Farkas, produziu documentários tão importantes como Viramundo, de Geraldo Sarno, Subterrâneos do Futebol, de Maurice Capovilla, e Memórias do Cangaço, de Paulo Gil Soares.
 
Em seu período brasileiro, Birri tinha o projeto de fazer em parceria com Ferreira Gullar o filme João Boa Morte, que acabou não saindo. O golpe militar de 1964 encerrou sua temporada no Brasil e fez com que procurasse ares mais amenos. Tornou-se um cigano, com passagens por Cuba, China, a então União Soviética, Espanha, Argélia, Índia, Nepal, Alemanha, México, Uruguai e Venezuela, até pousar seu baú de mascate na Itália, onde até hoje reside. Mora em Roma, cidade onde estudou, na juventude, no mítico Centro Sperimentale di Cinematografia, que, na época, difundia as ideias do neorrealismo italiano, a cartilha humanista escrita e filmada por Roberto Rossellini e Cesare Zavattini.
 
Birri é um inquieto. Ocupou cargos institucionais, na Escola de Santa Fé e na Escola de Cinema de San Antonio de los Baños, da qual foi o primeiro diretor. Nunca parou de fazer filmes e é autor de obras como La Primera Fundacion de Buenos Aires (1959), La Pampa Gringa (1962), Rafael Alberti – Retrato del Poeta (1983), Nicarágua (1984) e Mi Hijo el Che (1985). Seus longas mais importantes, além do já citado Un Señor Muy Viejo con Unas Alas Enormes (1988) são Los Inundados (1961) e Org (1967). Este último é um ícone do cinema experimental, com Birri tentando uma fusão criativa entre as ideias marxistas e as do psicanalista dissidente Wilhelm Reich. Uma proposta de ”cosmunismo (sic) universal”. Um comunismo cósmico que não daria as costas jamais para o Princípio do Prazer. Nos últimos anos continuou a lançar seus filmes – El Siglo del Viento (1999), ZA – Lo Viejo y lo Nuevo (2006) e Elegia Friulana (2007). Estes dois últimos são de temática italiana. ZA é uma homenagem a seu eterno mestre, Cesare Zavattini, e Elegia Friulana lembra, a partir de imagens, a região de origem de seus antepassados, o Friuli.
 
Além disso, Birri desenha, pinta, escreve prosa e verso e é ator. Escreve, escreve muito, e vai da ficção à reflexão teórica sem qualquer problema, pois as considera facetas de uma mesma atitude diante da realidade. Maneiras diferentes de manter olhos abertos sobre o que acontece à sua volta. Uma bela coletânea dos seus textos foi lançada no ano passado com o título de O Alquimista Democrático, numa edição caprichada e cheia de invenção gráfica, coedição do Cine Ceará com a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. Nela se encontram textos teóricos, desenhos, poemas e reflexões, inventário de uma carreira muito longa e criativa. Há desde seus primeiros estudos engajados sobre um cinema no subdesenvolvimento, até anotações sobre seus filmes. O anárquico Org, por exemplo, é definido com um ”filme que demorou um ano para ser feito e nove para ser desfeito”, referindo-se à laboriosa desconstrução da montagem dessa obra libertária, que não deveria aprisionar o espectador em qualquer certeza e termina com a própria película queimando e desfazendo-se diante do público perplexo.
 
O engraçado é que essa pessoa tão afável e disponível mostra-se evasiva quando se trata de conceder entrevistas formais. Eu já havia conversado com ele várias vezes quando o encontrei, anos atrás, em Cuba. Pedi-lhe então uma entrevista para uma longa matéria que estava planejando, mas ele fez uma contraproposta. Como estávamos hospedados no mesmo hotel, o Havana Livre, o antigo Hilton dos tempos de Fulgêncio Batista, poderíamos tomar o café da manhã juntos todos os dias e conversaríamos à vontade. Sem bloquinho ou gravador. Foi o que fizemos. E, ao longo dos dez dias em que durou nossa convivência matinal, falamos sobre tudo, de cinema a literatura, passando, obviamente, pela política mundial. Desse modo foi feita a ”entrevista”. E essa passou a ser a norma todas as vezes em que voltamos a nos encontrar pelo mundo, em Havana outras vezes, mas também em Veneza, Rio, São Paulo e Fortaleza. Conversas, trocas de ideias entre amigos, nunca entrevistas formais, em que um pergunta e o outro fala. Birri prefere o diálogo.
 
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Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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