Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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O Sonho de Ron Mueck, por Maíra Vasconcelos

O Sonho de Ron Mueck

A morte. O corpo finito. O assombro do humano com o próprio corpo. O inevitável choque em ver o reflexo de nós mesmos é a demonstração da capacidade de nos distanciarmos da realidade do corpo e da finita vida humana. O escultor desnuda a produção recorrente de desconhecimento e alienação a respeito do corpo. A surpresa frente às obras mostra a avalanche frenética de invenção plástica cotidiana de escapes à nossa realidade óbvia: o corpo.

Ao ver a exposição, o susto e a surpresa revelam a estupidez e a imbecilidade esquecidas por todos nós. Mas ao que sugere o escultor australiano, essas são duas motivações intrínsecas, mas pouco estimuladas, e que necessitam vir à tona. Sem a estupidez e a imbecilidade estaríamos doentes? Então, para Ron Mueck estamos todos enfermos?

Pois ele retrata a evidência de que o corpo humano é para sobressaltos. Sim! E ele é mesmo grande demais! E na velhice é estupendo, é exagerado de tão grandioso. Mueck exibiu seu espanto pelo maior grau de vida que alcançamos. Estava ali: o casal de senhores embaixo do guarda-sol. Debaixo dos nossos olhos (e não acima). Dos humanos esculpidos e que estavam expostos, era o casal o maior deles.

As esculturas são representadas como mortos em cada um dos seus momentos. Seja frente ao mar ou na terra. Eram sucessivos os comentários do público em relação aos olhares. Com toda razão. Se as esculturas são gente morta, como os olhares podem estar estáticos-abertos? Se um morto é enterrado sempre de olhos fechados. Mas os mortos expostos por Mueck têm olhos terrivelmente e melancolicamente abertos. Até se morrêssemos de olhos abertos seguiríamos não enxergando nada em relação a nós mesmos, porque ainda não descobrimos que os espelhos que fabricamos até hoje são falsos, e na verdade não temos espelho algum. Vejam esse equívoco, diria Mueck?

E a curiosidade do homem ficou estancada. O barco era maior que o homem, ele buscava ver mais colocando o olhar adiante, muito curioso descobridor dos sete mares, mas que está de braços cruzados e nunca pode sair do próprio barco, e saltar-mergulhar-transcender junto ao mar. O mar sempre visto à distância para reverências divinas? O homem de Mueck construiu um barco tão maior do que ele, que parece será difícil sair dali quando queira. Essa é a relação do homem com as suas construções e buscas racionais?

A mulher atolada de trabalho, que carrega metros e metros de lenha, vê-se retratada pré-histórica sustentando a lenha para o fogão. E sua consequente subordinação a quem descobriu o fogo. Com toda a lenha em cima, claramente suportando, mas degradada pela imposição alheia do trabalho, a mulher de Mueck ainda não percebeu que sempre teve também nas próprias mãos uma grande possibilidade: a de colocar fogo em tudo.

Para terminar, no andar de cima, as duas esculturas que fecham a exposição. Primeiro, a única escultura que não tem os olhos visíveis é a do homem na boia, em tamanho diminuído, de óculos escuros, de braços abertos, e em mar totalmente azul, que viria a ser também o céu divino azul. Porque ele é a representação da projeção realizada sobre a figura de Jesus Cristo. Ele é o único que não sabemos se vê ou se não vê, seus olhos estão cobertos, sendo assim também a única escultura que não sabemos, está morto ou não está morto? Então é o único que tem consigo a possibilidade da eternidade. E Mueck retratou o reflexo do humano diante dessa perpetuação da imagem de Jesus Cristo, sendo assim um homem cômodo, que usufrui comodamente do mar, e boia, mas mesmo sendo adulto, patético, ele precisa apoiar-se em uma boia maior do que ele.

Logo ao lado, e muito maior do que a representação de Jesus, está a galinha morta, claro, depenada, pendurada e com um corte no pescoço. Porque o homem que vê, representado em todas as esculturas com seus devidos olhos abertos-estáticos, é quem morre, é quem tem o corpo finito, e é também quem pode matar. Como, por exemplo, matar a vida animal não humana.

E termino a descrição da exposição com o Ron Mueck, o seu Autorretrato, que foi a escultura que abriu a mostra. Ele tem os olhos fechados, mas não está morto. Ele está claramente e profundamente dormindo, ainda que não lhe chegue a cair nenhuma baba, mas a parte da boca apoiada “no travesseiro” sugere o sono tão ido. E assim começava a exposição, partindo da sua cabeça que encostada dorme, porque todo demais apresentado é a tradução do sonho de Mueck. E que pode ser também a exibição e confissão pública do seu desejo: essa humanidade que ele vê é apenas um sonho.

Nota:

“Nunca vi uma coisa tão real. Impressionante!”. A afirmação foi feita por uma senhora, sentada ao meu lado, no banco próximo ao Autorretrato. A exposição se encerra este domingo, 23, na Fundación PROA, em Buenos Aires. E estará no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), de 19 de março a 1º de junho.

 

 

 

  

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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