Nota Técnica ABED: O empobrecimento acelerado x um futuro para o país

A consequência premeditada do estrangulamento financeiro das áreas de educação e saúde públicas é abrir espaço para que interesses privados atuem com maior desenvoltura.

O empobrecimento acelerado x um futuro para o país

Nota do Grupo de Análise dos Impactos da Crise da

Associação Brasileira de Economistas pela Democracia – ABED

É notória a inapetência dos atuais gestores da política econômica em retirar o país da crise que se aprofunda. O que assistimos é a continuidade de uma deliberada opção política que, a partir do empenho em restringir os gastos públicos, aprofunda a escassez e a penúria. Sua contrapartida é a ampliação da riqueza do topo da pirâmide social. Esta concentração se dá através dos rendimentos obtidos pelas aplicações na dívida pública, pela participação de grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros nas privatizações e concessões de serviços públicos, e pela ampliação aos capitais privados de atividades fundamentais como saúde e educação. A consequência premeditada do estrangulamento financeiro das áreas de educação e saúde públicas é abrir espaço para que interesses privados atuem com maior desenvoltura.

É a mesma lógica que faz o Ministro da Economia continuar tentando impor a substituição da Previdência Social por fundos privados de capitalização e, ao mesmo tempo, pretender o esvaziamento do projeto de lei que dá continuidade ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb. O fato de que, conforme dados do INEP, 81% dos alunos matriculados no ensino fundamental estejam estudando em escolas públicas municipais, para as quais os recursos do Fundeb são indispensáveis, não parece sensibilizar o Ministro da Economia, nem demover o atual governo de seu ímpeto contracionista. Este inglório movimento que vem gerando um processo de consolidação da concentração da renda e do patrimônio em favor do estreito círculo mais rico da população pode acelerar a acumulação de capitais deste grupo social, hoje sem dúvida o mais influente nas decisões políticas do governo. Os limites destas políticas esbarram, contudo, nos riscos crescentes de desagregação social e no impacto que o empobrecimento generalizado tem sobre a própria capacidade de arrecadação tributária. A verdade é que, quanto mais se contrai o gasto público, mais frágil se torna, a cada período, o próprio volume de recursos tributários arrecadados, e mais distante o nível desejável de equilíbrio fiscal.

Existem diferentes abordagens teóricas para a questão fiscal. A primeira, dominante e simplória – embora em sua natureza esteja cheia de malícia – é a que propõe cortes de gastos para redução do déficit público. O FMI preconizou esta abordagem desde os anos de 1980 pelo menos, mas com a crise de 2008/2009, arrefeceu em seu rigor e assumiu a necessidade de “válvulas de escape” perante a ameaça de falência generalizada no setor financeiro e crise generalizada em todos os demais setores empresariais. Tal qual, novamente, faz agora com a crise sanitária mundial.

Uma segunda abordagem propõe a combinação de aumento nos impostos e no investimento público. Isto levaria ao crescimento da economia e a uma maior arrecadação de impostos, gerando um equilíbrio orçamentário em um patamar mais alto. A implementação desta política pressupõe que primeiro seja ampliada a arrecadação para que, em momento subsequente, sejam realizados os gastos públicos. Além de outras considerações, inclusive sobre a modalidade e incidência destes impostos, a própria ideia de defasagem temporal entre arrecadação e gastos não atende as condições de urgência em que nos encontramos.

A terceira visão, compartilhada por Keynes e Kalecki, assinala que, para o enfrentamento no curto prazo de uma situação de crise, a expansão do gasto público é obrigatória, inclusive incorrendo em déficit público, particularmente em situações depressivas, onde só o Estado pode proporcionar – mediante estes gastos – condições para a retomada do crescimento. A ideia fundamental é o multiplicador do investimento, com seus efeitos benéficos e regenerativos por toda a economia. A retomada em plano mais elevado das atividades irá, naturalmente, elevar também a arrecadação de impostos. Os dispêndios geradores de déficit tanto podem ocorrer por expansão da dívida pública como por emissão primária de moeda. A possibilidade de um impacto inflacionário só poderia fazer sentido em uma economia funcionando a pleno emprego, ou seja, numa situação alheia à crise recessiva que se precisa combater. É esta terceira alternativa que se impõe como resposta plausível perante o caos social que nos ameaça.

O encerramento do ciclo das políticas de promoção da desigualdade e concentração da riqueza, exige a superação de sua base legal. O ovo da serpente já se encontra sendo chocado desde a própria Constituição de 1988. A assim chamada Regra de Ouro veda a realização de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital, nos termos definidos no inciso III do Art. 167 da Constituição Federal de 1988.

A segunda iniciativa legal restritiva foi a Lei de Responsabilidade Fiscal, ou Lei Complementar 101, de maio de 2000. Seu objetivo é “impor o controle dos gastos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, condicionando-os à capacidade de arrecadação de tributos desses entes políticos.” Nos termos desta Lei, os gastos públicos serão sempre pró cíclicos. Se a arrecadação diminui por efeito de uma fase recessiva, o ente federativo só poderá responder contraindo seus gastos.

A terceira regra do arcabouço de regras fiscais brasileiro é o “teto dos gastos”. Instituída em 2016 pela Emenda Constitucional n° 95, que estabeleceu o Novo Regime Fiscal. Essa regra fixa limites para as despesas primárias das três esferas de governo por um prazo de 20 anos, sendo que para os primeiros 10 anos, o limite de despesas deverá ter crescimento real nulo.

Em um período onde as principais economias do mundo abandonam a defesa da chamada austeridade fiscal e invertem o curso da condução da política econômica, o governo brasileiro persevera em empobrecer mais e mais a população. A alternativa que se abre hoje não é atingirmos o fundo do poço, mas mergulharmos em um poço sem fundo, em meio a mais completa desorganização social.

A crise sinaliza e evidencia erros e concessões indevidas que não devem permanecer. Afinal, o que está em jogo, a grande discussão, é sobre o dia de amanhã e sobre o futuro próximo e remoto do Brasil, onde vamos viver a maior parte de nossas vidas e a vida de nossos filhos e netos. Neste contexto, torna-se claro que o Brasil precisa de uma nova política de desenvolvimento. E que no escopo dessa política a asfixia hoje imposta a estados e municípios não pode perdurar.

A relevância e o protagonismo dos estados e municípios no apoio às populações em um momento “extremo” como tem sido a crise do coronavírus estão sendo fundamentais. Estas administrações, que estão mais próximas da população, trabalham na busca de soluções coordenadas para o enfretamento dos problemas como a falta de médicos e de recursos para manutenção das unidades de atendimento e diversos outros. Foram e estão sendo os grandes protagonistas na crise e provavelmente na saída da crise e na retomada do crescimento. A pandemia do coronavírus a despeito da diversidade das distintas realidades federativas e municipais no que diz respeito às capacidades financeiras e administrativas vem mudando as práticas de gestão, as relações entre os entes públicos (estados e municípios), a economia e as perspectivas futuras da gestão pública.

Em  pesquisa  recente desenvolvida pela CNM – Confederação Nacional dos Municípios junto às prefeituras municipais de todo o País (março, 2020) , objetivando  diagnosticar a situação dos municípios brasileiros com relação à Covid-19, chega-se às seguintes conclusões: 1.533 (50,2%) dos municípios que  responderam à pesquisa articularam como o governo do Estado estratégias de combate à pandemia; 1.445 (47,3%) buscaram apoio junto aos outros Municípios que compreendem a mesma região; entretanto, 605 (19,8%) consultaram a iniciativa privada. Observa-se também que somente 508 (16,6%) procuraram o governo federal; 327 (10,7%) municípios articularam com o governo municipal; 102 (3,3%) elaboraram essa articulação com entidades municipalistas; e 68 (2,2%) com outras instituições ou entidades.

A pesquisa nos dá pistas relevantes da grande dependência dos municípios em relação ao estado respectivo e aos municípios próximos que dispõem de equipamentos de saúde. O governo federal não se apresenta relevante, demonstrando a falta de uma coordenação estratégica e de um plano de ação mais efetivo por parte do ente Nacional. Em outras palavras quem socorreu e está socorrendo as populações dos territórios são as instâncias subnacionais e territoriais. A superação da crise sanitária e a retomada da atividade econômica nacional irá demandar uma política radicalmente desafiadora para a gestão pública em suas três esferas. É desde já impositiva uma nova abordagem da questão das dívidas dos estados, que hoje funciona como um garrote sobre o atendimento das necessidades básicas da população. Além da reversão do quadro legal que trava o gasto público, medidas direcionadas ao fomento das atividades estratégicas para um desenvolvimento inclusivo serão essenciais. As ações inovadoras (estados e municípios) que estão sendo implantadas por estes entes, em um momento de elevada gravidade sanitária, econômica e social constituem um grande laboratório de como deverão ser as relações institucionais entre as três esferas de governo daqui para frente, no futuro próximo .

22 de julho   de 2020

Equipe Técnica: Nelson Lec Cocq (coordenação), Adhemar Mineiro (RJ), Adroaldo Quintela (DF), Ana Cláudia Arruda Laprovitera (PE), Antônio Rosevaldo  Ferreira da Silva (BA), Eron José Maranho (PR)

Redação

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