50 anos de luta contra os linchamentos da mídia, por Luis Nassif

O maior desafio que um juiz pode enfrentar é sobrepor sua consciência individual às pressões de toda espécie -da qual a mais insidiosa é a busca da notoriedade.

Coluna de 16.12.2000, na Folha, em agradecimento pela Medalha do Mérito Judiciário Ministro Nelson Hungria -outorgada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região

O mérito do Judiciário 

Conheci as duas faces do Poder Judiciário no primeiro grande processo do qual fui alvo, por parte do então consultor-geral da República do governo Sarney, José Saulo Ramos. Conheci as interferências políticas, quando o procurador-geral Sepúlveda Pertence afastou do caso o procurador que, valentemente, opinou pelo arquivamento da ação. Sempre penso com gratidão nesse procurador, sem sequer me lembrar de seu nome. Nesse episódio, conheci a face independente do Judiciário, no comportamento do juiz José Kallás. E a face sabuja em um juiz do Rio, que teimava em alterar os termos do depoimento de minha testemunha. Mas a instituição do Judiciário foi minha garantia.

Este é um país cuja herança cultural remonta à Inquisição. Os processos de linchamento, de destruição dos que são ou pensam diferentemente, não poupam ninguém. Nos anos 70 o alvo eram os militantes de esquerda. Nos anos 80, os filhos da ditadura. Dos anos 90 em diante, o indeterminado. O “diferente” passou a ser toda pessoa suspeita de algum crime -não necessariamente culpada. Foram o japonês da Aclimação, os rapazes do bar Bodega, o cearense da Faculdade de Medicina. E também culpados óbvios, mas aos quais era negado o direito básico de serem ouvidos.

Pouco importa a natureza ou a gradação do crime. Cada qual serviu de álibi para o fortalecimento do mais execrável personagem que a indústria da mídia logrou criar nos anos 90: o justiceiro, o sujeito que se apropria e manipula a indignação popular, traz à tona o que de pior existe na natureza humana, não para buscar justiça, mas para satisfazer seus ressentimentos ou sua carreira.
A história está repleta de tipos assim, o mais ilustre dos quais o senador beberrão e corrupto que deu nome ao macartismo nos Estados Unidos.

O ponto em comum em todos esses casos foi a ausência de uma estrutura institucional que se tornasse um anteparo ao arbítrio.
O Poder Judiciário tem muito a avançar. Ainda é um poder lento, pouco transparente, cheio de feudos, sem preocupações de ordem gerencial e administrativa. Quando esses defeitos passaram a ser utilizados para a busca de saídas fora do Judiciário, no entanto, abre-se caminho para a disseminação do macartismo. E abre espaço para que juízes fracos se curvem ao chamado “clamor das ruas”, permitindo a consumação de abusos contra direitos individuais.

A busca da justiça tem que se dar com um Judiciário forte. As críticas contra seus vícios têm que ser daqueles que, antes de mais nada, acreditam que só haverá respeito aos direitos individuais com um Judiciário forte. E que a melhor ferramenta para o respeito aos direitos individuais é o processo judicial aprimorado, dando todo direito às partes de serem ouvidas -seja ela um honesto dono de escola da Aclimação ou um bandido com crimes comprovados

O maior desafio que um juiz pode enfrentar é sobrepor sua consciência individual às pressões de toda espécie -da qual a mais insidiosa é a busca da notoriedade. Por isso, ao receber a Medalha do Mérito Judiciário Ministro Nelson Hungria -outorgada ontem pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região- , dedico aos valentes, que investiram contra os linchadores e colocaram seus princípios acima do seu medo -o juiz que deu a sentença do caso Herzog; o promotor Eduardo Araújo da Silva, que pediu a libertação dos meninos acusados pelo crime do bar Bodega; a juíza Sandra de Santis de Mello, que não mandou a júri os rapazes que queimaram os pataxós; o juiz Hélder Girão, que se voltou contra os abusos de seus pares; e a jovem juíza Raecler Baldesca, que impediu que, sem base legal, se consumasse a prisão do empresário Luiz Estevão, mas que, tenho certeza, lhe aplicará a pena mais severa, quando as acusações contra ele forem comprovadas.

Luis Nassif

6 Comentários

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  1. A cultura judiciária brasileira entorta qualquer coisa boa. Juízes brilhantes, jovens e independentes se tornam velhos amargos, vingativos e cheios de desprezo pela população. Promotores ativos e defensores da legalidade aprendem a burlar a legislação para progredir politicamente na carreira. Advogados dedicados e zelosos ficam cansados de remar contra a maré de bosta judiciária, alguns afundam na mediocridade outros se tornam cruéis e zombeteiros. Sou advogado desde 1990 e ainda não estou cansado, mas já me tornei zombeteiro .

  2. Não sei se você já viu, Nassif, mas o último filme da trilogia das cores, de Kiéslowski – e último do próprio diretor, que morreu pouco depois do lançamento – tem um juiz aposentado como personagem principal, o grande Jean-Louis Trintignant. Uma vez descoberto em sua atividade clandestina – espionar seus vizinhos, através de um sistema de escuta telefônica, ele é confrontado pela jovem modelo – a belíssima Irene Jacob – a quem conheceu por acaso, que descreve o hábito do juiz como repugnante. Ele responde, então: “Fiz isso a vida toda”, ao que ela pergunta: “O que o senhor era? Policial?”, e ele responde: “Pior. Juiz.”
    Não creio que a consciência do juiz deva desempenhar qualquer papel em um processo legal. O grande desafio de um juiz é aplicar a lei, independente de considerações de qualquer outra ordem ou natureza. Se, no decorrer do processo, ou na aplicação da sentença, sua consciência lhe pesar, ele deve, pelos meios possíveis e adequados, propugnar por modificações na lei, a fim de aperfeiçoá-la, quando cabível.
    A consciência serve para julgamentos morais, não para processos jurídicos. Um réu pode ser um completo e comprovado canalha, mas, se no caso específico em julgamento, ele for inocente, ou não houver provas contra ele, ele deverá ser absolvido. A justiça não julga caráter ou falhas morais, mas fatos e delitos com materialidade.
    Inúmeros canalhas já foram assim absolvidos. Muitos outros ainda serão. O clamor das ruas – hoje parte integrante do notório saber jurídico dos nossos honoráveis ministros e juízes, nada tem a ver com Justiça; é interesse político puro. É como o impeachment de Dilma. Questionado sobre a validade, puramente jurídica, daquela encenação grotesca, o ministro Lewandovski – até onde eu sei, um homem correto e digno, disse que era um fato político, mas um julgamento, de qualquer forma, e ele presidiu algumas sessões, ou todas, não recordo com exatidão, conforme o regimento. Mas era ele quem estava sentado na cadeira do presidente da câmara, quando um desvairado – não lembro quem – vociferou, diante da presidente Dilma, que não tinha nenhum interesse em ouvir testemunhas ou formar juízo sobre o assunto, pois seu voto já estava decidido, a favor do impeachment. Nem o testemunho de Jesus Cristo, em pessoa, o faria mudar o voto, já decidido de antemão.
    O que é isso, um julgamento – onde devem ser ouvidas as testemunhas, de acusação e defesa, o advogado e o promotor, para que o jurado decida como votar – ou uma pantomima política de mau gosto?
    Onde estava a consciência do Lewandovski – repito, até onde eu sei, um homem correto e digno, nessa hora?
    Não estava ali; a consciência não tem parte a desempenhar em um julgamento. Senão ele teria passado uma reprimenda no deputado tresloucado. E, como diria o juiz do filme, não porque fosse a coisa certa a fazer, mas para não ter problemas posteriormente, com a sua…consciência.
    Vejam o filme, quem ainda não viu. Ele esclarece, com sutileza e leveza incomparáveis, qual o papel da consciência individual nas relações sociais.

    1. Muito bom seu comentário. Mas me permita discordar da parte em que vc defende que o juiz possa participar de elaboração de leis, ainda que o faça dentro de parâmetros legais. A separação dos poderes existe para que a justiça sobreviva. Juiz não deve escolher qual lei é melhor, senão ele passa a acumular dois poderes. As associações de magistrados no Brasil são, a meu ver, um campo minado no Brasil, exatamente por sua militância política na esfera legislativa.

  3. A primeira vez que eu comecei a raciocinar, a usar o cérebro naquela tragédia da Escola Base, em 1994, foi quando eu li a coluna do Nassif na Folha.

  4. Oi, Mísia, muito obrigado.
    De fato, eu redigi de forma a deixar a impressão de que um lobby de magistrados seria natural. Tenho o péssimo costume de escrever comentários direto na caixa de texto, em vez de fazê-lo em editor de texto, para depois colar na caixa.
    Quis dizer que magistrados podem desempenhar papel consultivo na elaboração ou aperfeiçoamento das leis, sem poder decisório ou deliberativo quando da promulgação das mesmas.

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