Impeachment é um golpe comandado pela elite do dinheiro, por Jessé Souza

Jornal GGN – Em artigo publicado no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, Jessé Souza, presidente do Ipea, afirma que o processo de impeachment da presidente Dilma ameaça a democracia, classificando-o como um golpe comandado pela elite “que nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata”.

Jessé afirma que, desde a década de 1930 e o governo de Getúlio Vargas, o país passa pela disputa entre dois projetos: de um lado, o sonho de um país pujante para a maioria, e, do outro, o de uma elite que pretende “saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia”. A partir daí, passando pelo regime militar e a redemocratização, o país vive em um movimento pendular entre estes dois projetos.

Para o presidente do Ipea, o golpe conta com a manipulação da “corrupção seletiva” pela imprensa, que o transforma um discurso ideal para “travestir os mais mequinhos interesses corporativos em suposto “bem comum””. Leia mais abaixo:

Da Folha

Quem deu o golpe, e contra quem?
 
JESSÉ SOUZA

RESUMO Para o autor, decisão da Câmara a favor do processo de impeachment da presidente Dilma ameaça a democracia. Em texto que retoma ideias já expostas aqui e em seu livro mais recente, diz que esta crise, como outras, contou com a manipulação, mediada pela imprensa, da classe média pela “elite de dinheiro”.

*

O golpe foi contra a democracia como princípio de organização da vida social. Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do dinheiro que nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata.

O ponto de inflexão da história recente do Brasil contra a herança escravocrata foi a revolução comandada por contraelites subordinadas que se uniram em 1930.

A visão pessoal de Getúlio Vargas transformou o que poderia ter sido um mero conflito interno de elites em disputa em uma possibilidade de reinvenção nacional.

O sonho era a transformação do Brasil em potência industrial com forte mercado interno e classe trabalhadora protegida, com capacidade de consumo. Nossa elite do dinheiro jamais sequer “compreendeu” esse sonho, posto que “afetivamente” nunca sentiu compromisso com os destinos do país.

Desde então o Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia.

A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder “comprar” todas as outras elites.

É essa elite, cujo símbolo maior é a bela avenida Paulista, que compra a elite intelectual de modo a construir, com o prestígio da ciência, a lorota da corrupção apenas do Estado, tornando invisível a corrupção legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a política via financiamento privado de eleições; e que compra a imprensa e as redes de TV, cujos próprios donos fazem parte da mesma elite da rapina.

De acordo com a conjuntura histórica, sempre que o Executivo está nas mãos do inimigo, imprensa e Congresso, comprados pelo dinheiro, se aliam a um quarto elemento que é o que suja as mãos de fato no golpe: as Forças Armadas antes, e o complexo jurídico-policial do Estado hoje em dia.

A história do Brasil desde 1930 é um movimento pendular entre esses dois polos. Getúlio caiu, como o desafeto histórico maior desta elite, por um conluio entre Congresso comprado, imprensa manipuladora e Forças Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos sociais.

O suicídio do presidente adia em dez anos o golpe formal, que acontece em 1964 pela mesma articulação de interesses. O curioso, no entanto, é que dentro das Forças Armadas existia a mesma polarização que existia na sociedade.

INFRAESTRUTURA

O nacionalismo autoritário das Forças Armadas articula, por meio do 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do presidente Geisel, uma versão ambiciosa do sonho getulista: investimento maciço em infraestrutura e setores-chave da vanguarda tecnológica com a disseminação de universidades e centros de pesquisa em todo o país.

Ainda que o capital privado fosse muito bem-vindo, a condução do projeto de longo prazo era do Estado. Foi o bastante para que os jornais se lançassem em uma batalha ideológica contra a “república socialista do Brasil” e os empresários descobrissem, de uma hora para outra, sua inabalável “vocação democrática”.

O processo de redemocratização comandado pela elite do dinheiro tem tal pano de fundo. As Diretas-Já, na verdade, espelham a volta da rapina de curto prazo e uma nova derrota do sonho de um “Brasil grande”.

Aqui já poderia ter ocorrido a conscientização de que a rapina selvagem é o fio condutor, e que a forma autoritária ou democrática que ela assume é mera conveniência. Mas o processo de aprendizado foi abortado. O público ficou sem saber por que o golpe tinha ocorrido e, depois, por que ele havia sido criticado. Criou-se uma anistia do “esquecimento” no mesmo sentido da queima dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e a quem obedecemos.

Com o governo FHC, essa elite da rapina de curto prazo se insere, enfim, não apenas no mercado mas também, com todas as mãos, no Estado e no Executivo.

A festa da privatização para o bolso da meia dúzia de sempre, da riqueza acumulada pela sociedade durante gerações, se deu a céu aberto. A maior eficiência dos serviços, prometida à sociedade e alardeada pela imprensa, sempre solícita e sócia de todo saque, se deixa esperar até hoje.

Como uma imprensa a serviço do saque e do dinheiro não pode fazer todo mundo de tolo durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que o dinheiro não pode comprar, o Executivo mudou de mãos em 2002.

O novo governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista anterior, de apoio à indústria e à inteligência nacional. Mas seu crime maior foi a ascensão dos setores populares via, antes de tudo, a valorização real do salário mínimo.

Os mais pobres passaram a ocupar espaços antes exclusivos às classes do privilégio.

Parte da classe média sofria profundo incômodo diante dessa nova proximidade em shopping centers e aeroportos, mas “pegava mal” expressar o descontentamento em público. Pior, a classe média temia que essa classe ascendente pudesse vir a disputar os seus privilégios e os seus empregos.

O discurso da “corrupção seletiva” manipulado pela mídia permite que se enfrente agora o medo mais mesquinho com um discurso moralizador e uma atitude de pretenso “campeão da moralidade”. O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional. Está criada a “base popular”, produto da mídia servil à elite da rapina.

A luta contra os juros desencadeada pela presidente Dilma em 2012 reedita a eterna crença da esquerda nacionalista brasileira na existência de uma “boa burguesia”, ou seja, a fração industrial supostamente interessada em um projeto de longo prazo de fortalecimento do mercado interno.

Mas todas as frações da elite já mamam na mesma teta dos juros altos que permite transferir recursos de todas as classes para o bolso dos endinheirados de modo invisível, funcionando como uma “taxa” que encarece todos os preços e transfere parte de tudo o que é produzido para os rentistas –inclusive da classe média feita de tola pela imprensa comprada.

Quando em abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir, a elite está armada e unida contra a presidente. As “jornadas de junho” daquele ano vêm bem a calhar e, por força de bem urdida campanha midiática, transformam protestos localizados em uma recém-formada coalizão entre a elite endinheirada e a classe média “campeã da moralidade e da decência” contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da esquerda.

Como os votos dos pobres recém-incluídos são mais numerosos, no entanto, perde-se a campanha de 2014. Mas a aliança entre endinheirados e moralistas de ocasião se mantém e se fortalece com um novo aliado: o aparato jurídico-policial do Estado.

Construído pela Constituição de 1988 para funcionar como controle recíproco das atividades investigativas e jurisdicionais, todo esse aparato passa por mudanças expressivas desde então. Altos salários e demanda crescente por privilégios de todo tipo associados ao “sentimento de casta” que os concursos dirigidos aos filhos das classes do privilégio ensejam transformam esses aparelhos que tudo controlam, mas não são controlados por ninguém, em verdadeiros “partidos corporativos” lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado.

A manipulação da “corrupção seletiva” pela imprensa é o discurso ideal para travestir, também aqui, os mais mesquinhos interesses corporativos em suposto “bem comum”. O troféu de “campeão da moralidade pública” passa a ser disputado por todas as corporações e se estabelece um conluio entre elas e a imprensa, que os vazamentos seletivos cuidadosamente orquestrados comprovam tão bem.

Esse é o elemento novo do velho golpe surrado de sempre. Ainda que o golpe tenha se dado no circo do Congresso em uma palhaçada denunciada por toda a imprensa internacional, sem o trabalho prévio dos justiceiros da “justiça seletiva” ele não teria acontecido.

O Estado policial a cargo da “casta jurídica” já está sendo testado há meses e deve assumir o papel de perseguir, com base na mesma “seletividade midiática”, o princípio: para os inimigos a lei, e para os amigos a “grande pizza”.

A “pizza” para os amigos já está em todos os jornais e acontece à luz do dia. O acirramento da criminalização da esquerda é o próximo passo. Esse é o maior perigo. Muita injustiça será cometida em nome da Justiça.

Mas existe também a oportunidade. Nem toda classe média é o aprendiz de fascista que transforma seu medo irracional em ódio contra os mais fracos, travestindo-o de “coragem cívica”.

Ainda que nossa classe média esteja longe de ser refletida e inteligente como ela se imagina, quem quer que tenha escapado do bombardeio diário de veneno midiático com dois neurônios intactos não deixará de estranhar o mundo que ajudou a criar: um mundo comandado por um sindicato de ladrões na política, uma justiça de “justiceiros” que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos.

JESSÉ SOUZA, 56, autor de “A Tolice da Inteligência Brasileira” (Leya), presidente do Ipea, é professor titular de ciência política da UFF e foi professor convidado na Universidade de Bremen. 

 

Redação

7 Comentários

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  1. Ou será culpa do diabo?

    No domingo de manhã testemunhas de jeová deixaram na caixa do correio um folheto, onde explicam que o mundo está do jeito que está por culpa de Satanás.

    Culpa do diabo?

    Qual deles?

     

  2. Errado.
    Existe golpe sim. mas

    Errado.

    Existe golpe sim. mas o golpe foi dado lá atrás quando Dilma abdicou de usar seu poder nas indicações ao STF e principalmente a PGR e à Policia Federal.

    O Golpe foi dado quando o Governo Dilma permitiu que a maior empresa nacional fosse achincalhada dia e noita por orgaões do Estado, sem reagir, num um pio ela deu. Nem foi a justiça, nem atuaou nos bastidores, muito menos no confronto direto.

    Ela imaginou que ficando quieta, na dela, nada aconteceria com ela. Ledo engano, A conta chegou.

    E é no lombo da Dilma e do Lula, os “republicanos” que o Golpe vai cantar.

     

    1. Quem sofrerá as consequências

      Engano seu. Será principalmente nos ombros esquálidos dos carente é que o porrete descerá mais forte.

      Vide a “ponte para o futuro” dos cientistas do pmdb.

  3. Discurso requentado

    É bem requentado esse discurso afirmando que o país se divide entre patriotas e vendilhões, uma elite esclarecida e uma elite reacionária, etc. Tem cheiro de positivismo. Esse arrazoado podia fazer sentido 80 anos atrás, no início da era Vargas, quando o país tinha uma indústria incipiente e parecia crucial a ação do Estado para induzir ao desenvolvimento.

    Mas o nacional-estatismo nada mais é do que o totalitarismo trazido ao terreno econômico, daí que não é estranho que seja particado pelos mesmos que trouxeram o totalitarismo ao terreno político, como Getúlio Vargas e Geisel. Bem ou mal, serviu para dar o “start-up” em nossa industralização. Hoje, porém, serve apenas para cevar um séquito de empresários amigos-do-rei que vivem de contratos com o poder público obtidos por intermédio de propinas, que não têm nenhum interesse em economia ou eficiência. A imagem da ciclovia que ruiu é bem ilustrativa: no fundo está a antiga arcada de pedra que há mais de cem anos sustenta a avenida Niemeyer, prova silenciosa de que nossa engenharia já foi capaz de fazer coisas que prestavam. A ciclovia vagabunda parece mais um brinquedo que alguém colocou lá e esqueceu. Obra de um parente do secretário de turismo da cidade.

    O nacional-estatismo chegou a seu esgotamento nos anos 80, e a economia brasileira só foi sair do atoleiro depois do Plano Real. Mas a Nova Matriz Econômica trouxe o nacional-estatismo de volta, com os resultados que estamos vendo. Seja lá quem assumir o governo agora, terá que fazer os necessários ajustes, cortes e privatizações. Se Lula sair presidente em 2018, terá uma chance de ouro para desfazer os erros que foram cometidos desde a Nova Matriz Econômica, fazer os necessários ajustes, tirar o país da crise e depois curtir a aposentadoria em seu sítio como um dos grandes estadistas do Brasil contemporâneo. Espero que faça isso.

  4. o títuilo sintetiza berm, são

    o títuilo sintetiza berm, são os representantes da financeirização da

    economia, a banca e cerca de 140 grandes empresas multinaciomais

    as empreendedoras do golpe, com a colusão e interesses nacionais,

    tipo globo e esses aparelhos de estado citados poelo autor..

     todo esse conluio  defende  obviamente a geopolítica defendida

    pelo império norte-americano, a geopolítica dita ocidental, que quer

    acabar, entre outras conquistas, os achamados brics, nossas riquezas

    – pre-sal, etc e etc……….

  5. Tenho amigos que participaram
    Tenho amigos que participaram das manifestações contra a presidenta. Desde que Dilma se elegeu, a elite se indignou e trabalhou diuturnamente – como diz a presidente – para derrubá-la. Através de grupos de WhatsApp, compartilhavam reportagens da Época e Veja para municiar membros com argumentos contra o PT. São funcionários públicos do executivo federal, principalmente os de mais altos salários e profissionais autônomos como médicos. Na falta de algum argumento mais consistente, quando a corrupção começou a aparecer em todos os partidos políticos, argumentavam que era para haver a alternância. A desculpa da corrupção foi para cooptar as pessoas do povo. Quando questionava pessoas mais simples que alegavam que Dilma tinha que sair, respondiam que era o que todo mundo dizia. Nunca foi pela corrupção. Sempre foi pelo poder.

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