Trump, liberalismo econômico, corrida atômica e reordenamento global, por Delfim Netto

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
[email protected]

 

Jornal GGN – O ex-ministro Delfim Netto avalia que a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos tem potencial para despertar uma “reorganização geopolítica das nações” no que tange questões de segurança mundial – como a corrida atômica – e a economia, pois os países terão de driblar o protecionismo dos Estados Unidos. Para Delfim, Trump, contudo, está longe de ser o “psicopata que representou” nas eleições contra Hillary Clinton. Ele tem interesses a proteger que o levarão a caminhar com cautela.

Por Antonio Delfim Netto

No Valor

Trump…petalhadas

Não importa as petas que Trump usou para eleger-se. Às vezes mentiras dão certo, como vimos no Brasil, em 2014. Tudo sugere, por outro lado, que sua vitória teve, também, sólidas razões objetivas: 1) a esclerose do controle do Partido Republicano; 2) o grave descontentamento de parte dos “abandonados” eleitores democratas e 3) a miopia do Partido Democrata, que insistiu na desgastada dinastia Clinton, que não oferecia futuro e tem um passado complicado. Nada disso, entretanto, tem a ver com a emersão da “direita” ou a imersão da “esquerda” e muito menos com a “luta de classes”, como sugerem alguns fanáticos desiludidos e assustados…

A insuperável vantagem do sistema democrático de governo é que sua continuidade propicia a única forma de conhecimento seguro a que os homens têm acesso: a experimentação e o erro, um aprendizado que tem custos importantes. O uso permanente do sufrágio universal, com eleições livres e renovação do poder incumbente em tempo certo, corrige endogenamente os seus erros eventuais.

Há uma espécie de “malaise” freudiana no mundo, que vem se explicitando nas urnas. O homem parece já não saber o que fazer dele mesmo. Para começar a entendê-la talvez seja necessário recuar a 1928. Depois do excesso de liberdade de que gozou o sistema financeiro e do exagerado movimento de capitais, que foram as causas da crise de 1929, tivemos a estrita regulação rooseveltiana até o fim da Segunda Guerra Mundial (1945). A partir daí, a “ordem americana” emergiu na política econômica proposta pelo Fundo Monetário Internacional: 1) taxas de câmbio fixas, reajustáveis com seu consentimento; 2) rígido controle do movimento de capitais e; 3) política monetária soberana de cada país.

Com todos os seus problemas, produziu “30 anos gloriosos” (1946-1974). Infelizmente desembarcou na inflação americana (1974-1979), corrigida por Paul Volker com a maior taxa de juros que o mundo tinha visto até então. Somada à crise do petróleo, desorganizaram as economias do Ocidente a partir de 1978 e foram causas eficientes da derrocada do império soviético, em 1989.

A perversão da política econômica compatível com o liberalismo político que levou o mundo à tragédia que está vivendo, começou no governo de Ronald Reagan, um republicano, que ocupou a presidência dos EUA de 1981 a 1989, ao mesmo tempo que Margareth Thatcher, no Reino Unido, 1979-1990.

Sob o conselho “científico” de alguns economistas que teriam provado “teoricamente” (o que, fora da lógica, é um oximoro) que “os mercados financeiros deixados a si mesmos, sem a intervenção do Estado, são mais do que perfeitos: além de obedecerem ao imperativo categórico kantiano, propiciam, eficientemente, o pleno emprego”, Reagan não teve dúvidas. Iniciou a desmontagem da regulação que salvara, em 1930/33, o capitalismo das velhacarias do sistema financeiro. Novamente livre, voltou às mesmas práticas e produziu outra crise em 2009!

Levada ao exagero e sem cuidado, a perversão liberal iniciada em 1981, acelerou a globalização com a liberdade de comércio (uma coisa muito boa e motor do crescimento) e o movimento de capitais (uma coisa mais do que duvidosa). Esqueceu-se que a teoria das vantagens comparativas só revela seus resultados no longo prazo. O ajuste interno dos países leva tempo e tem custos sociais que podem ser politicamente insuportáveis. Essa é, sem dúvida, uma das causas da “malaise” que está fraturando as sociedades e pondo em risco a paz mundial levada pelo comércio quando “sentido” como “justo” pelas partes.

É muito cedo para avaliar o que será o governo Trump, mas duas coisas são certas. Primeiro, ele está longe de ser o psicopata que representou durante a campanha. Teve um olhar certeiro nos “esquecidos perdedores” produzidos pela falta de sensibilidade social da perversão liberal inspirada na política de Washington desde 1981. Radicalizou para atraí-los e levou-lhes uma vã esperança, pois dá sinais de que vai insistir em mais desregulamentação financeira.

Segundo, ele tem muito a perder e sabe (melhor do que nós) como funciona, por dentro, o intercurso incestuoso entre governo e setor privado (financeiro e real), pois é um inegável “vencedor” e parceiro desse sistema. Portanto, tentará proteger seus interesses.

Se o isolacionismo americano prometido por Trump, for confirmado, produzirá a fragmentação e a reorganização geopolítica das nações que se sentirão traídas pelos EUA, que lhes deu a “garantia” da proteção militar (particularmente Otan, Japão e Coreia do Sul), o que deve estimular uma nova corrida atômica.

Não há como não inquietar-se com o “espantalho” do perigo externo explorado por Putin, na Rússia, e Xi Jinping, na China, que têm clara propensão expansionista. Num prazo mais longo, isso tem a ver com a possibilidade da batalha do Armagedon, quando o bem e o mal acertarão, definitivamente, as suas contas…

O pesadelo é que talvez a sua eleição tenha adiado “sine die” a caminhada para a Paz Perpétua, sugerida por Kant, em 1784, atrás da qual andou, desde sempre, o liberalismo econômico inteligente que foi corrompido pela ideia do “mercado perfeito”.

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve para o Valor às terças-feiras

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

7 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Como o Delfim já tem 88 anos previsões de 4 anos já …..

    Como o Delfim já tem 88 anos previsões de 4 anos já ultrapassam o limite que ele prevê para assistir as suas próprias previsões (não estou sendo maldoso, pois já sou velho e foi o Delfim que trouxe para o Brasil a frase de Keynes que “A longo prazo todos estaremos mortos”). Logo uma previsão sobre o governo Trump está na medida da expectativa de vida útil. do mesmo e por isto não faz a mínima questão de enxergar a realidade da eleição de Trump a médio e longo prazo.

    Não só a eleição de Trump deve ser levada em conta, o excelente desempenho de Bernie Sanders que ao apagar das luzes foi simplesmente garfeado pelos Clintons, também mostram dois sintomas de uma mesma doença, a ruptura da capacidade militar do Império com a capacidade econômica e SOCIAL do mesmo.

    Impérios mantém sua capacidade militar e até a expansão de suas fronteiras após claros sinais de declínio, olhando a história os fatos são SEMPRE ASSIM.

    Esta ruptura do militar como o econômico e o SOCIAL não permite que os últimos imperadores vislumbrem com clareza as reais condições de manutenção do poder e vigor do mesmo. O próprio lema da campanha Trump é um claro reconhecimento que o império esta decadente, porem como ele se acha a solução e não como parte do problema, vai tocando como pode.

    A negativa de Trump em continuar a garantia contra uma completamente improvável invasão da Europa pela Rússia (nunca vi besteira maior do que esta) não é o que assusta os europeus (os governos) é o custo de manter um exército suficientemente poderoso para se meter em conflitos com países periféricos, não só o custo econômico como o custo POLÍTICO.

    O problema dos exércitos é que tanto os Estados Unidos como a Europa não estão conseguindo produzir homens belicosos suficientes para entrar nestas furadas no terceiro mundo. Com toda o politicamente correto, com ONGs, não sei o que sem fronteiras disto e daquilo, o pessoal fica com mais vontade de estar na frente de um computador do que ir encarar pessoas que estarão brabas com a presença deles. Logo a capacidade militar do ocidente cai dia a dia fazendo com que a contratação de mercenários para lutar em seu nome já vire uma regra. Quando assisto as paradas militares dos norte coreanos que simplesmente não marcham, trotam com todo o vigor, entendo porque os norte-americanos tem medo deles.

    O que estou traçando é algo que transcende simplesmente a meros cálculos econométricos, todo o circo que se está montando em torno de moedas que não existem, valores das mesmas que não valem, exércitos que apesar de serem caros já não conseguem ocupar nenhum território, podem um dia vir alguém e dizer para eles BUUUH, e o que acontece o castelo cai. E como dizia o Presidente Mao, os ocidentais são verdadeiros tigres de papel.

  2. Ditadura tem caras? Ói uma

    Ditadura tem caras? Ói uma aí! Se não existissem delfins, o que seriam das ditaduras? Sai fora golpista; ladrão; vérme batedor de continência; puxa saco!

  3. Tinha uma imensa biblioteca, nada aprendeu nada criou

    Mais de quarenta anos de trabalho, sovando a massa e o fermento, e ainda aguardo o bolo crescer, vá ser ruin de previsão lá no…..

    Na carta capital num dos seu artigos estava a defesa orgástica da pec 241/171, desconfiei ser ele o autor do libelo, de fato vinho ruim não envelhece transforma-se em vinagre estragado.

  4. Delfim Neto

    Delfim Neto tem uma lucidez inacreditável para quem já passou dos 85 anos e escreve muito bem.  Uma coisa é um discurso “protecionista” e xenófobo do candidato republicano, hoje presidente eleito dos Estados Unidos da América do Norte, Donald Trump, outra coisa é cumprir todas essas promessas quando no poder. Mais cedo do que espera Trump perceberá que não pode fazer o que quer e do jeito que quer, pois as “forças terríveis” que se queixou nosso ex presidente Jânio Quadros, agirão no sentido de corrigir a rota do homem mais poderoso do mundo.

  5. A Tutela Militar da República Brasileira
    Eu me lembro bem quando em meados de 1979 a inflação atingiu 50%, chagando a 100% até o final daquele ano. Nessa época, o General-Presidente Geisel nomeou o Mário Henrique Simonsen como Ministro da Fazenda com o objetivo de diminuir o processo inflacionário, sendo sabotado sistematicamente pela turma do Delfim Neto, da FIESP e da USP-Economia, os quais venceram e Simonsen foi despedido da função…

    Nessa época, também, o General Frota tentou derrubar o General Geisel através de um golpe para abortar o processo de abertura política e perdeu. Continuou-se, então, com a lengalenga da abertura lenta gradual e segura e apenas em 1990 foi eleito o primeiro Presidente Civil, Color de Melo, depois de décadas de regime militar que tinha começado em 1964.

    O projeto de República que se seguiu ao regime militar foi engendrado pelo famigerado General Golbery do Couto e Silva que instituiu esse atual modelo presidencial de coalização que tornou o país ingovernável no longo prazo (1988-2016). O objetivo desse modelo “político” era impedir o PT ou a esquerda ou, ainda, qualquer oposição de, se caso ganhassem as eleições, não pudessem mudar a condição de tutela imposta pelos militares à República, que na verdade já vinha, com mais ou menos intervencionismo, desde 15 de novembro de 1889.

    A escalada inflacionário, a partir da queda Simonsen, e com a volta da turma do Delfim Neto, foi vertiginosa. Passamos a conviver com uma inflação média de primeiro 5% ao mês, no início da década de 1980, para depois, 10% ao mês até o fim de 1980, até atingirmos, do início até meados da década de 1990, os espetaculares 50% de inflação ao mês. Esse processo inflacionário vertiginoso teve como objetivo manter o desenvolvimento industrial começado na década de 1950 com a política de substituição de importados.

    A estratégia do Regime Militar e do Delfim Neto era, com a crise do petróleo de meados de 1970, que vinha impactando o milagre econômico, manter a competitividade dos produtos industriais brasileiros, desvalorizando-se, então, o câmbio a níveis absurdos, tornando a moeda nacional uma porcaria imprestável.

    A desvalorização cambial induzida a níveis impressionantes, de fato, impossibilitavam o processo de importação e sustentaram um processo industrial que sem competitividade de produtos estrangeiros possibilitou o surgimento de indústrias de fundo de quintal. Essas indústrias tipo “fundo de quintal” com pouco, ou nenhum, processo sério de desenvolvimento tecnológico competitivo foram sustentadas a qualquer preço até o advento do “Real”, quando se seguiu uma pequena abertura para produtos de fora e essa indústrias colapsaram do dia para noite.

    Essa política de desvalorização cambial mostrou-se desastrosa para o incipiente processo de desenvolvimento industrial brasileiro, pois que impediu o seu desenvolvimento tecnológico, já que indústrias de fundo de quintal invadiam o mercado protegido com quinquilharias para as quais não havia opções.

    Seguiu-se a isso, o desmoronamento do processo educacional tecnológico como consequência da falta de estímulo ao desenvolvimento de novos processos competitivos, já que essas indústrias de fundo de quintal aproveitavam-se apenas de um câmbio totalmente desvalorizado e não tinham nem interesse, nem capacidade técnica e nem dinheiro para mudar seus incipientes processos industriais.

    A partir de 1980, declina o desenvolvimento industrial Brasileiro e o próprio processo de desenvolvimento econômico, pois que esse processo de desvalorização cambial absurdo provocou desequilíbrios imensos na balança comercial do país, já que nosso processo competitivo estava sendo ditado por industriais de fundo de quintal, sem capacidade séria de competitividade no mercado externo, a menos por preços aviltantemente baixos, resultante do baixo nível de desenvolvimento de seus processos industriais que mantinham seus custos muito baixos. O resultado desse coquetel econômico foi o processo inflacionário vertiginoso como descrito acima.

    A partir do “Real” essas indústrias tipo “fundo de quintal” colapsaram e a falta de uma infraestrutura de ensino tecnológico com Universidade que estavam igualmente sucateadas, tais como nossas indústrias, tivemos que importar novos processos industriais, criando-se, assim, indústrias montadora. Por essa época, início da década de 2000, os investimentos no agronegócio começaram a dar resultados e a perda de capacidade competitiva das indústrias foi substituída pela alta competitividade da agricultura, não apenas resolvendo os desequilíbrios crônicos com a balança de pagamentos, mas também, produzindo sólidos superávits.

    Esses superávits do agronegócio passaram a pagar a importação de peças e partes usadas nos novos processos industriais implantados no Brasil com a diminuição das alíquotas de importação e a instalação de novas indústrias montadoras nacionais e estrangeiras.

    Terminou, assim, o período intervencionista militar tanto na economia quanto na política. O ano de 2016, simbolicamente, reflete o fim dessa tutela militar sobre a República Brasileira, mostrando o nível de decadência que se chegou com esse processo político do Presidencialismo de coalização do General Golbery e da necessidade de se aposentar em definitivo as ideias de desenvolvimento industrial da década de 1950.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador