Meu nome é Enéas!, por Jacques Gruman

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Sugerido por Webster Franklin

Da Carta Maior

Meu nome é Enéas!

Para ser vitrine de bordões ridículos e propostas vazias que ninguém presta atenção, o horário político custou cerca de R$ 840 milhões em isenções fiscais.   

Por Jacques Gruman

Questionar não é falta de convicção, ao contrário, é a corajosa determinação de não sossegar (Alberto Dines)
 
Nebraska é um filmaço. Dos melhores que assisti ultimamente. Não passa de um fiapo de história, mas mexe, com extrema delicadeza, em questões muito mobilizadoras. O protagonista, magistral interpretação de Bruce Dern, está numa fase da vida em que lucidez e perda de memória convivem em aparente harmonia. Um jogo de empurra, ainda sem vencedores. Recebe, pelo correio, uma propaganda maliciosa, avisando que acabara de ganhar um milhão de dólares. Claro que, em letras miúdas, estão as condições impossíveis para se papar aquela fortuna. Ignorando os alertas da família, resolve viajar a Nebraska para receber a dinheirama. Mesmo ciente da arapuca, o filho mais novo o ajuda. Seria, afinal, uma oportunidade para passar um tempo com o velho. Tempo escasso, o velho já dava os primeiros passos para a estrada sem volta. A história, belíssima e repleta de pequenos e definitivos detalhes, não acaba quando o velho descobre a farsa e vê desmoronar o que parecia a última oportunidade para deixar marcas antes de sair da vida. Não havia almoço grátis, é certo, mas o verdadeiro prêmio não era um pote de ouro no fim do arco-íris. Melhor ver o filme para entender o que quero dizer.

 
Não foi à toa que pensei em Nebraska quando assisti os primeiros programas da chamada propaganda eleitoral gratuita na TV. Era como um transplante do universo delirante do velho. Um mundo de faz-de-conta. A começar pela falsa gratuidade. Para permitir a exibição destes programas, os donos de redes de rádio e televisão têm isenção fiscal equivalente, em 2014, a cerca de R$ 840 milhões. Em 2012, mais de R$ 600 milhões em impostos deixaram de ser recolhidos para bancar a propaganda eleitoral. Esta renúncia tem baixíssima eficiência. De acordo com pesquisa realizada pela UFMG, praticamente metade dos eleitores sequer assistem ou ouvem os programas. “Os dados indicam que o programa eleitoral tem baixo impacto no eleitor, baixa audiência e, no entanto, é muito caro”, observou o cientista político Aldo Fornazieri. Concebidos idealmente como ferramenta de consolidação democrática, viraram uma patética comédia de erros, simulação ridícula de pluralismo ideológico, trampolim para toda espécie de bizarrice. Vale a pena descer no detalhe.

Grosso modo, desfilam três grandes blocos para ouvintes e telespectadores. O primeiro congrega os exóticos. Com poucos segundos para aparecer, multiplicam-se tipos e nomes cômicos, como se estivessem em disputa vagas para substituir Carequinha, Fred e Oscar Polidoro, debaixo de uma lona de encerado Locomotiva. Agitam-se, num gestual caricato, Barak Obama, ET, Super Zefa, Tadeu Tô Contigo, Mortadela, Tiririca do Amazonas, Bin Laden, Me Ajuda Aí, Dengue, Cigano Igor, Jamelão da Poesia. Eles e outros só conseguem balbuciar clichês inúteis, carregados de conteúdos conservadores (“Para Deus nada é impossível” é o campeão, numa confusão rotineira entre religião e política) ou indecifráveis (como o candidato que, Bíblia na mão, se refere a um versículo, sem dizer o que contém e como aquilo serve como plataforma eleitoral). Repetem, também, suspeito que inconscientemente, a imagem que a população tem dos políticos. “Não prometo, faço” (político é dissimulado, só sabe prometer), “Você me conhece” (político só dá as caras quando precisa pedir voto), “Sou diferente” (políticos são todos farinha do mesmo saco), “Sou a renovação” (político não passa de múmia que tingiu o cabelo e fez as unhas), “Sou ficha limpa” (político é corrupto). Se você não está preso numa camisa de força, votaria nesta patacoada? Só dói quando eu rio.

O segundo grupo funde cacoetes hierárquicos e moral conservadora. O resumo poderia ser o oceano de doutores, professores e pastores que assim se apresentam no horário “gratuito”. Reparem, não estão em consultórios, salas de aula ou templos, mas o título tem grande serventia. O povo, despolitizado e desinformado, replica a síndrome bacharelesca. Somos o país do “sabe com quem está falando?”. Pendurada neste desvirtuamento elitista, surge a moral conservadora. Perdi a conta dos que juram que vão “defender a família” e os “valores cristãos”. Não especificam, claro, o que é isso, mas dá para desconfiar que, eleitos, se alistarão no exército retrógrado que sufoca qualquer discussão sobre aborto, homoafetividade, pesquisas com células-tronco.
 
O terceiro bloco vem armado de detergente, borracha e tesoura. Muito encorpado, tem alas distribuídas pela maioria dos partidos. A Comissão de Frente anuncia: vamos apagar a História! Quando não der, a gente corta. Logo na primeira ala, um boneco amarrado num poste. É mestre Tostão, que teve a ousadia de escrever que “hoje, na sociedade do espetáculo, cada vez é mais difícil separar o que parece e o que é”. Candidatos a cargos executivos parecem quase todos iguais. Na propaganda, vomitam números e estatísticas. Se comportam como empresários lendo relatórios de atividades para acionistas. Tudo limpinho, filtrado, sem contradições, previsível. Polianamente previsível. Detergente na política, as questões dos “doutores” são meramente técnicas, de eficiência gerencial. No Brasil, as fronteiras ideológicas dos chamados grandes partidos são cada vez menos visíveis. Vejamos. A socialdemocracia europeia foi, na origem, uma doutrina revolucionária. Era socialdemocrata, por exemplo, o partido bolchevique. O que há em comum entre esta tradição e o PSDB, que, supostamente, carrega a socialdemocracia desde a pia batismal? Alguém acredita que Aécio Neves é um Lênin tropical? O PT, nascido das lutas populares, vestiu terno Armani no poder. Sua candidata fala em crise mundial, sem ao menos conceder que esta crise tem nome, sobrenome e circunstância histórica. Não é um raio em céu azul. Foi parida nas imensas contradições do capitalismo, modo de produção que se sente muito à vontade com a doutora e seu partido. Esconder isso do debate eleitoral mostra bem os compromissos do neopetismo. O que dizer dos socialistas? Antes de morrer, Eduardo Campos, olho gordo nas urnas, lutava para eliminar do programa do PSB os últimos traços de identidade socialista. Eram “arcaicos”. O socialismo libertário jamais poderia conviver com as interdições, de base religiosa, propostas pela candidata pessebista (nunca é chamada de socialista, o que é, a rigor, verdadeiro). Já acenou para os usineiros. Nisso, abraça Lula, que, em 2007, disse que “os usineiros estão virando heróis nacionais e mundiais”. Os dois ex-companheiros omitem as condições degradantes de trabalho em numerosas usinas, em algumas das quais há trabalho escravo. A riqueza gerada na produção de açúcar e álcool mal chega aos trabalhadores.
 
Houvesse seriedade e a propaganda política obrigatória desapareceria ou, pelo menos, mudaria drasticamente. Neste último caso, ao invés de produções luxuosas, pilotadas por marqueteiros regiamente remunerados, o tempo seria utilizado para duas finalidades: explicar ao povo as diferenças entre os cargos em disputa e, com distribuição equitativa de oportunidades, divulgar a base ideológica de cada partido. Assim, a gente saberia, por exemplo, por que um candidato a senador no Rio coloca em seu programa a luta pela dignidade dos portadores de deficiência. Ele, que já é deputado federal, não poderia fazer a mesma coisa na Câmara dos Deputados? Partidos invertebrados teriam enorme dificuldade para mostrar o que são. Seria uma boa aula de educação política, dentro das limitações da democracia burguesa. Sonho? Pode ser. Fico, aqui e acolá, com o poeta Mário Quintana: “Se as coisas são inatingíveis … ora! Não é motivo para não querê-las. Que tristes os caminhos, se não fora a presença mágica das estrelas”.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

4 Comentários

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  1. IDEM !

    Também gosto muito de “Nebraska” , mas nem me passaria peça cabeça a analogia que você fez. Me deu o que pensar…

    Quanto ao horário político fico perplexa com os analistas que vivem dizendo que Dilma tem muito mais recursos de divulgação do que a pobre Marina, pois o tempo de televisão de Dilma é muito maior!! Eles que são “especialistas” acreditam realmente que o horário “gratuito” arrebanha eleitores, que muda votos ??? Então não entendo mais nada…

  2. Ha anos venho ouvindo esse

    Ha anos venho ouvindo esse trololo “acadêmico” sobre o horario politico. Não tenho mais paciência pra isso. Ninguem propõe uma alternativa exequivel. Nem os anlistas, nem os insatisfeitos, nem os puritanos, que acham que os politicos são de marte e a sociedade é de venus. A sociedade brasileira tem os politicos que merece. Portanto eu fico perplexa com determinadas exigencias desses analistas. Eu também acho estranho o PSB dizer que é sociaista e o PSDB que é social democrata. Mas em se tratando de Brasil, o significado não é o mesmo que na Alemanha, por que nós não somos a Alemanha. E por que cargas d’agua Dilma tem que dar aulas de contradiçoes do capitalismo? Tenha santa paciência … Essa foi de doer.

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