Mega vazamento revela esquema da Uber para manipular leis com a ajuda de políticos influentes na Europa e nos EUA

Victor Farinelli
Victor Farinelli é jornalista residente no Chile, corinthiano e pai de um adolescente, já escreveu para meios como Opera Mundi, Carta Capital, Brasil de Fato e Revista Fórum, além do Jornal GGN
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The Guardian obteve 124 mil documentos que envolvem de chefes de Estado no lobby a favor da empresa, como Joe Biden e Emmanuel Macron

O jornal britânico The Guardian iniciou nesta segunda-feira (11/7) a publicação de uma série de reportagens chamada “Uber Files” (ou “Arquivos da Uber”), em parceria com o ICIJ (sigla em inglês do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos), que revela mais de 124 mil documentos expondo algumas práticas eticamente questionáveis ​​e que foram o pilar da sua transformação em empresa que revolucionou os aplicativos de transporte no mundo.

O vazamento abrange um período de cinco anos (entre 2013 e 2017) no qual a empresa Uber era administrada por Travis Kalanick, um dos seus fundadores, e realizou um fortíssimo lobby sobre governos municipais e até governos nacionais de diversos países, visando que seu serviço tivesse vantagens legais com relação aos taxis comuns, além de uma maior flexibilização das leis trabalhistas específicas para prestadores de serviços oferecidos por aplicativos e uma maior facilidade para enviar os lucros a paraísos fiscais.

Esse lobby liderado pelo próprio Kalanick e por seu assessor especial Mark MacGann, que conseguiram o apoio de políticos influentes, bilionários e barões da mídia, com destaque para algumas figuras que posteriormente se tornariam chefes de Estado em seus países, como o francês Emmanuel Macron e o estadunidense Joe Biden.

Como Macron ajudou a Uber na França

Em junho de 2015, ocorreu uma das primeiras grandes manifestações dos taxistas franceses contra os aplicativos de transporte, especialmente o Uber.

Entre as mensagens reveladas pelo Uber Files está uma conversa entre Kalanick, MacGann e outros executivos responsáveis pelas atividades da empresa na Europa, na qual o primeiro insistia de forma intransigente em não aceitar as advertências dos demais sobre os riscos da estratégia da Uber para jogar a opinião pública francesa contra os taxistas.

Segundo as mensagens, a ideia de Kalanick era enviar motoristas da Uber propositalmente para os atos dos taxistas. Os demais executivos diziam que haveria o risco de aquela estratégia ser vista como uma provocação e gerar violência, o que o empresário respondeu dizendo que “acho que vale a pena (…) a violência garante o sucesso” – no fim das contas, a estratégia foi colocada em prática e aconteceram mesmo as brigas e distúrbios, que resultaram em centenas de pessoas feridas, além da repercussão negativa para os taxistas, como queria o dono da Uber.

Já os documentos relativos às estratégias da Uber na França mostram como a empresa buscou apoio político para defender mudanças na legislação de forma a torná-la mais de acordo com os seus interesses, e que isso se tornou possível a partir da aproximação entre Kalanick e o então ministro da Economia francês, Emmanuel Macron.

Entre 2014 e 2016, o jovem político foi um importante aliado da Uber, atuou a favor da empresa no caso da greve dos taxistas, advogando por uma legislação trabalhista que exigia menos dos aplicativos de transporte – o que permitiu que estes oferecessem um serviço mais barato que o dos taxis. Em maio de 2017, Macron assumiu como presidente da França, mas o vazamento não inclui documentos a respeito do seu mandato, somente do período anterior.

Como Biden abriu portas para a Uber em Davos e no resto do mundo

Outro grande aliado político da Uber e de Travis Kalanick segundo os documentos do Uber Files foi o então vice-presidente estadunidense Joe Biden.

Durante a edição de 2016 do Fórum Econômico Mundial de Davos, Kalanick e Biden tiveram um encontro que, segundo os documentos vazados pelo ICIJ, fizeram com que o político mudasse o discurso que faria horas depois, durante um painel do evento suíço – ele incluiu em suas palavras alguns elogios à empresa e salientou que ela “oferece a milhões de trabalhadores a liberdade para trabalhar quantas horas quiserem, e gerenciar suas próprias vidas como quiserem”, muito parecido com o slogan dos primeiros comerciais da Uber, que a mostravam como uma alternativa para as pessoas que queriam uma renda extra.

Com a ajuda de Biden, Kalanick pode aproveitar sua presença em Davos para se reunir com outras figuras políticas de grande importância, como o premier israelense Benjamin Netanyahu e chanceler britânico George Osborne. Este segundo teria se tornado, segundo os documentos, um “forte defensor” dos interesses da Uber no Reino Unido, e chegou a utilizar a empresa como símbolo do seu discurso de “convencer as grandes empresas de tecnologia a investir em nosso país e criar empregos aqui”.

Os documentos indicam que, como se viu em Davos em 2016, a Uber era adepta de encontrar caminhos não oficiais para ter acesso a pessoas poderosas, apelando à influência de amigos e intermediários para se aproximar de políticos nas mais altas esferas de poder. Logo, transformava esses contatos em apoio político ao seu lobby por legislações mais favoráveis em diferentes países. Além dos casos já citados, essa estratégia também se reproduziu em países como Alemanha, Itália e Rússia.

A resposta da Uber

Os documentos vazados chegaram aos jornalistas investigativos através de Mark MacGann, que era o representante legal da Uber para Europa, África e Oriente Médio.

Em entrevista para o The Guardian, o lobista disse que “é o meu dever contar o que aconteceu e ajudar governos e parlamentares a corrigir alguns erros fundamentais”. Contudo, ele tenta se defender, ao falar sobre sua participação nos possíveis delitos cometidos pela empresa: “moralmente, eu não tinha escolha”, alega.

Os Uber Files contém mais de 124 mil documentos oficiais, além de 83 mil e-mails e mensagens enviadas pelos aplicativos WhastApp e IMessages, nos quais Travis Kalanick e Mark MacGann, em muitos casos, falam sem pudores com outros executivos da empresa sobre o caráter de suas atividades. Em alguns casos, eles brincam dizendo, por exemplo, que se tornaram “piratas” ou que “somos f`*** ilegais”.

Em um comunicado em resposta ao vazamento, a empresa Uber admitiu “erros e equívocos”, mas disse que a empresa vem sofrendo uma transformação desde 2017 – após o afastamento de Kalanick da administração e sua substituição pelo iraniano-estadunidense Dara Khosrowshahi, atual presidente-executivo.

“Não temos e não vamos dar desculpas sobre nosso comportamento no passado, ​​que claramente não tem nada a ver com os nossos valores atuais”, afirmou o documento publicado pela Uber nesta terça-feira (12/7). “Em vez disso, pedimos ao público que nos julgue pelo que fizemos nos últimos cinco anos e pelo que faremos daqui por diante”, completou.

Por sua vez, Travis Kalanick também se expressou através de um comunicado de imprensa, o qual afirmou que as atividades da Uber durante a sua gestão “foram lideradas por mais de uma centena de executivos, em dezenas de países ao redor do mundo, e que, em todos os momentos, contou com a supervisão direta e a total aprovação dos competentes grupos jurídicos que assessoram a empresa”.

Victor Farinelli

Victor Farinelli é jornalista residente no Chile, corinthiano e pai de um adolescente, já escreveu para meios como Opera Mundi, Carta Capital, Brasil de Fato e Revista Fórum, além do Jornal GGN

2 Comentários

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  1. Se a discussão é sobre Capitalismo, a palavra ‘ética’ não deve ser utilizada.
    Não há ética no Capitalismo. Falar sobre “práticas eticamente questionáveis” em uma análise de uma prática capitalista não chega a ser redundância – é tautologia.
    A chuva deixou a rua molhada.
    O capitalismo é exploração da força de trabalho.
    Tautologia.
    Ou, se preferem uma metáfora, digamos que o Capitalismo é impermeável à ética.
    Ou, se querem forma proverbial, ‘onde o Capitalismo entra, a Ética sai pela porta dos fundos’.
    Seja qual for a forma, o conteúdo é um só: onde há Capitalismo, não há ética.
    Não é possível servir a Deus e a Mamon; também não é possível ser Capitalista e ser justo.
    Exceções? O suficiente para confirmar a regra, já que estamos no reino dos truísmos.
    Somos o país dos eufemismos, o país das metáforas.
    Faz sentido: é preciso dar contornos suaves a uma realidade terrível, para poder suportá-la. Para aqueles a quem o espectro da fome ronda, servem os contornos da solidariedade, da repartição mútua de escassos bens; para os outros, a democracia, a liberdade, Deus, abstracões cômoda e indolores: qualquer sombra refresca.
    Para os primeiros, quando a dor da fome chega, o sonho conforta.
    Para os outros, a dor seria a da consciência: e dela eles se livram da forma mais simples possível: eles não a tem. E essa ausência a metáfora, o eufemismo, a tautologia, preenchem com perfeição. Sem remorsos, sem empatia, sem nada.
    Honestamente, me incomoda ver as duas palavras juntas: Capitalismo e Ética.
    Paciência.

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