Ronaldo Bicalho
Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[email protected]

Eletrobras: como se constrói uma picaretagem, por Ronaldo Bicalho

Da Eletrobras, o contrato que garantia acesso dos consumidores residenciais a essa energia mais barata pelos próximos trinta anos foi rasgado

do Instituto Ilumina

Como se constrói uma picaretagem

por Ronaldo Bicalho

Alguns sites financeiros (*) anunciaram a possibilidade de uma trégua entre o Governo e a Eletrobras a partir da antecipação de pagamentos à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). Pagamentos esses relativos à contrapartida do aumento da tarifa de energia elétrica que virá da mudança do regime de comercialização de cotas para preço de mercado advinda da privatização da empresa. 

Esse aumento de tarifa sempre esteve claro durante todo o processo de privatização. O regime de cotas garantia a existência de uma energia barata fruto da consideração de que uma parte das usinas da Eletrobras já tinha sido amortizada completamente, portanto, inteiramente paga, e não havia necessidade de seguir incorporando à tarifa dessas usinas uma remuneração ao capital nelas investido. Face a isto, a tarifa deveria cobrir apenas os custos de operação e manutenção. Essa energia barata era destinada às distribuidoras e, ao fim e ao cabo, aos consumidores residenciais, que constituem a maioria esmagadora das unidades de consumo do país. 

No processo de privatização, o contrato que garantia o acesso dos consumidores residenciais a essa energia mais barata pelos próximos trinta anos foi rasgado e mudou-se o regime de comercialização da empresa, de tal forma a permitir que ela passasse a cobrar o preço de mercado pela energia antes cotizada. 

Para reduzir o impacto do aumento da tarifa esperado, definido e precificado ficou determinado que a Eletrobras ao longo dos próximos 25 anos irá depositar 32 bilhões de reais na Conta de Desenvolvimento Energético. 

A CDE cobre uma série de gastos que vão da conta de consumo de combustíveis (que subsidia o gasto de combustível para geração de eletricidade em regiões isoladas) à tarifa social, passando pelos subsídios às fontes renováveis. Quem sustenta essa conta são os consumidores de todo o país e o aporte da Eletrobras a essa conta reduziria, de forma correspondente, a parcela paga pelos consumidores e, portanto, a tarifa desses consumidores. 

Pelo cronograma decidido no processo de privatização, a descotização começa agora em 2023 a um ritmo de 20% ano, de tal forma que a partir de 2027 a Eletrobras poderá vender toda a sua antiga energia cotizada pelo preço de mercado. 

Dito isso, a primeira questão que se deve ter em mente quando se discute a possibilidade de antecipação desses recursos associados à descotização é que eles estão relacionados à tentativa de amenizar um aumento de tarifas que virá inevitavelmente do próprio processo de descotização. Em consequência, a própria existência desses recursos está ligada a esses aumentos futuros e foram concebidos para fazer face a esses aumentos futuros. 

Independentemente de que esses recursos são capazes, ou não, de atenuar o impacto do aumento das tarifas gerado pela descotização, é para isso que eles foram criados. 

Usar esses recursos para fazer face a pressões de custos, passadas e presentes, que nada tem a ver com as pressões futuras reais associadas à descotização é simplesmente despir um santo para cobrir um outro. É simplesmente pegar o dinheiro destinado a pagar a mensalidade da escola das crianças e gastar no supermercado. E o pior é achar que está tudo bem e que depois a gente resolve. 

O governo Bolsonoro fez exatamente isso ano passado quando antecipou cinco bilhões de Reais, dos 32 bilhões, à CDE, para reduzir as tarifas em ano eleitoral. 

Essa proposta de antecipação engana o consumidor, dando a ele com uma mão aquilo que já está previsto que será retirado dele com a outra. Portanto, trata-se de uma falta de respeito com esse consumidor, já achacado por tarifas cada vez mais elevadas. 

Associar, então, essa antecipação à desistência do Governo à luta contra uma privatização espúria é um despropósito nascido da ignorância ou da má fé de determinados personagens que arrastam as suas correntes no cenário tenebroso do setor elétrico brasileiro atual. 

Se querem realmente discutir à vera, vamos colocar na roda a própria descotização. Vamos, de fato, respeitar os contratos. Façamos o seguinte, a Eletrobras pode ficar com os seus 32 bilhões em troca de não rolar a descotização. Essas tristes figuras ficam com os seus bilhões e o polvo brasileiro fica com a energia barata. 

O resto é picaretagem.

Ronaldo Bicalho é pesquisador do IE-UFRJ e Diretor do Ilumina

(*) Eletrobras (ELET3): sinal de que governo pode desistir de reestatizar companhia traz dois catalisadores para ações – InfoMoney

Eletrobras (ELET3)(ELET6) e União estão perto de acordo para evitar reestatização, diz colunista – SpaceMoney

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador