OPEB - Observatório da Política Externa e Inserção Internacional do Brasil
O Observatório da Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB) foi criado no início de 2019 por um grupo de professores e alunos ligados ao curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), com o objetivo de acompanhar e analisar de forma sistemática a nova dinâmica internacional do Brasil.
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Afinal, qual o status legal da maconha na América Latina?

Na América Latina, o Uruguai foi o primeiro país a aprovar, em 2013, legislação para uso medicinal e não medicinal da Cannabis.

OPEB – Observatório da Política Externa e Inserção Internacional do Brasil

Afinal, qual o status legal da maconha na América Latina?

por Acauã Alexandre José dos Santos, Gabriel N. Silva, Ivan Cersosimo Valverde, Luiza Rodrigues, Mônica Almeida Peña e Tatiane Anju Watanabe

Recentes controvérsias ocorridas no STF e no poder Legislativo brasileiro buscam atualizar o olhar institucional para diferentes aspectos ligados à Cannabis, seja como entorpecente, remédio e/ou matéria prima. O Supremo está a apenas um voto de formar maioria em favor da descriminalização do porte de pequenas quantidades de maconha. O Brasil não é o primeiro país da região a realizar tal feito. A ação está paralisada devido ao pedido de vista de um dos ministros, o placar está 5 a 1. Paralelamente, tramita no Senado o PL 399/2015 que visa a regulamentação medicinal e industrial da planta, além de existirem diversas leis estaduais de distribuição de manipulados da droga no SUS. Na América Latina, o Uruguai foi o primeiro país a aprovar, em 2013, legislação para uso medicinal e não medicinal da Cannabis. Países como Argentina, Chile, Colômbia, México, Paraguai e Peru permitem alguma forma de Cannabis medicinal.

Status legal da Cannabis nos países latino-americanos e a possibilidade de comércio na região para fins industriais e medicinais

A controvérsia sobre a legalização da maconha no Brasil ganhou relevância a partir de uma ação em tramitação no Supremo Tribunal Federal e controvérsias com o Senado sobre a instância adequada para decidir a questão. No Brasil, o porte de qualquer quantidade de Cannabis é considerada crime e não há diferença substancial entre porte e comércio. O debate brasileiro apresenta dissonâncias em relação a alguns países do continente.

Na América Latina coexistem vários componentes específicos para cada país nas questões que giram em torno da legalização/proibição prolongada da Cannabis. Essas questões, sem dúvida, permeiam a capacidade de avaliação de políticas de “abertura” para um assunto que é visto como um tabu na história recente.

Entre os países da América do Sul, Brasil, Uruguai, Colômbia,  Chile,  Argentina, Paraguai e Peru já flexibilizaram em alguma medida o uso da Cannabis.

Dentre as modalidades adotadas na região, a descriminalização do porte permite que o usuário compre, guarde e transporte uma quantidade pequena da droga e a legalização implica na existência de uma legislação que contemple toda a possibilidade de uso dentro de um conjunto de regras de regulamentação, considerando-se onde se compra e como é feito o uso da droga, que passa a ser encarada como uma questão de saúde pública.

Na proibição, não se considera o estado de saúde do usuário, que acaba por consumir uma droga despadronizada (que pode conter qualquer substância adicional, por não ser fiscalizada), e não se instrui a dose ou formas de uso menos danosas. A exceção se dá pelas políticas de redução de danos, que representam o fim do incentivo puro e simples da abstinência ao usuário pelo Estado e a instrução de maneiras menos danosas para o consumo de substâncias, sejam elas lícitas ou não. No Brasil, o governo de Dilma Rousseff implementou políticas desse tipo, que foram descontinuadas na gestão Bolsonaro.

O Uruguai se tornou o primeiro país do mundo a legalizar a maconha em sua plenitude, ou seja, medicinal, industrial e recreativa (para uso adulto), em 2013, através da Lei 19.172/13 que regulamentou o cultivo de 6 plantas nas residências autorizadas e em clubes de sócios. Além disso, quatro anos depois, o governo disponibilizou 2 cepas da planta nas farmácias uruguaias, “registrando compradores e controlando de perto a produção e a venda para fins recreativos e medicinais”. Cepas são linhagens genéticas de características distintas, que fazem parte da mesma espécie de planta.

Todavia, o tráfico não foi completamente destruído no Uruguai, e muito do mercado ainda ocorre de modo irregular, através do cultivo não autorizado, e pelo próprio prensado paraguaio, que é presente no consumo social e relacionado a usuários de baixa renda, e também é a principal forma disponibilizada no mercado ilegal da planta no Brasil. Nesse contexto, cultivadores não autorizados oferecem cepas com um teor de THC mais elevado, o que levou as farmácias a acrescentarem uma nova cepa com THC um pouco mais elevado em 2023.

De acordo com o Secretário Nacional de Drogas do Uruguai, Julio Heriberto Calzada, o país zerou as mortes decorridas do tráfico da maconha, fato que reflete uma ação que afastou a planta do comércio relacionado ao tráfico clássico, em que se oferece todo tipo de drogas mais pesadas, além de expor o usuário ao contato com criminosos armados que controlam a distribuição das substâncias. O Secretário Nacional comunicou o dado referido em um debate da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa no Senado uruguaio, em 2 de junho de 2014.

A economia uruguaia soma, desde sua legalização, US$ 20 milhões com o comércio de Cannabis. A legalização também permitiu a exportação para uso medicinal e tem como principais destinos Estados Unidos, Suíça, Alemanha, Portugal, Israel, Argentina e Brasil. Em 2020, as exportações dobraram em relação ao ano anterior, chegando a 7,3 milhões de dólares. Em 2021, a receita foi de 8,1 milhões de dólares e, no primeiro semestre de 2022, de 4,4 milhões de dólares. Apesar de ter sido pioneiro, o Uruguai ainda exporta menos do que outros concorrentes na América Latina, como Chile, que em 2020 faturou 59 milhões de dólares, Peru (US$ 40 milhões) e Colômbia (US$ 37 milhões).

A Colômbia descriminalizou o uso e o porte de todas as drogas em 1994, permitindo a sua população a possuir até 20 plantas para consumo pessoal. No entanto, tentativas de legalizar a planta não têm sido bem sucedidas, como visto com a votação no Senado, em 20 de junho, da reforma constitucional que buscava legalizar o comércio da maconha e que, apesar do apoio do presidente Gustavo Petro, não foi aprovada, por margem de 1 voto.

Em 2009, a suprema corte da Argentina descriminalizou a erva para consumo próprio, desde que em ambientes privados e, em 2022, regulamentou a Cannabis medicinal através da Lei 27.669/22.

O Chile também permite o uso da substância de maneira privada e o cultivo caseiro não é criminalizado, todavia, sua Constituição é do período da ditadura de Pinochet e, com a negativa no plebiscito sobre a aprovação da nova Constituição elaborada durante o governo de Gabriel Boric, não há previsão para uma nova regulamentação sobre a planta.

O Paraguai, por sua vez, é o terceiro maior país industrial do mundo na produção de cânhamo (planta com baixo nível de THC), sendo o maior produtor e exportador da região latino-americana da planta, seja em sua faceta legal ou ilegal, todavia seu uso adulto segue proibido.

Mais ao norte, o México derrubou as leis que criminalizam o uso pessoal da maconha, não limitando-se ao consumo caseiro, em 2021, se tornando o segundo país latino-americano a atingir esse feito.

Entre os países caribenhos, destaca-se a Jamaica, que legalizou a utilização da planta para fins religiosos. Lá, o porte de até 56g não é mais considerado crime e o cultivo e venda da Cannabis medicinal são liberados. Também vale citar a Costa Rica, que liberou o uso medicinal e industrial da planta e a descriminalizou para uso pessoal.

Apesar dos avanços em relação ao uso da planta nesses países latino-americanos e caribenhos citados, ainda há diversos países que criminalizam o uso pessoal e medicinal da Cannabis, como é o caso da Bolívia, Cuba, Guatemala, Honduras, Nicarágua, El Salvador, República Dominicana e Venezuela. Outros, como o Brasil, permitem apenas o uso medicinal, com certa burocracia.

Observa-se então que não existe um consenso na região sobre como os países devem lidar com a situação das drogas, ficando a cargo dos mesmos legislar sobre o assunto. No entanto, deve-se lembrar que essa legislação não ocorre com a ausência de influência externa, uma vez que as leis e políticas proibicionistas no que tange as drogas foram guiadas e embasadas por convenções internacionais, desde as primeiras convenções do ópio até a formação da ONU e do UNODC, sendo que o desenvolvimento desse cenário internacional levou cientistas políticos, como Robert Cox, a questionarem se há uma influência hegemônica americana que interfere no atual Sistema ONU e no legado da Liga das Nações e das Convenções Internacionais através do Século XX.

Ao longo de décadas, as ações contra a Cannabis movidas pelo proibicionismo foram reforçadas após a declaração americana de 1971 proferida pelo Presidente Richard Nixon de “Guerra às Drogas”, declarando-as como “inimigo público número um”. Esse fato determinou políticas públicas e leis presentes em diversas nações, contudo movimentos políticos mais recentes reforçaram novas abordagens para enfrentar o problema e buscar alternativas para a forma como a substância pode desempenhar papéis positivos dentro dos países.

Pensando nisso, importantes empresas do ramo no Uruguai trouxeram para o Brasil uma edição da Expo Cannabis em 2023, maior evento sobre a planta na América Latina. É uma importante sinalização da vontade de troca entre esses mercados da maconha, de forma a se integrarem e buscarem resoluções úteis e ajuda mútua.

O STF está legislando? [1] 

O tema central do debate em torno da descriminalização da maconha no STF é a possível reinterpretação da legislação já em vigor sobre uso e tráfico de drogas, a Lei 11.343/2006, estabelecendo que a posse de tais produtos é crime, embora não haja punição por aprisionamento para usuários, teoricamente. A lei prevê penas educativas e/ou serviço comunitário, além de assinar o referente ao artigo 28 (que prevê o enquadramento como usuário), caso seja de fato enquadrado. A questão é que a lei deixa a cargo do juiz estabelecer o acusado como usuário ou como traficante, e a interpretação é relacionada ao local que habita, onde foi encontrado e, de maneira mais velada, aqueles enquadrados como traficante são, historicamente e majoritariamente, jovens negros.

Além disso, o referido artigo violaria o princípio constitucional da intimidade, garantido no artigo 5º, inciso X da Constituição de 1988, que estabelece que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

A pedido da Defensoria Pública de São Paulo, foi dada entrada em um processo a partir de um caso específico, quando um usuário preso em 2009 com 3 gramas de maconha atestou que, em seu caso, a droga se destinava a uso pessoal, assim, o processo nas demais instâncias judiciais antes de chegar ao Supremo Tribunal Federal. O julgamento de longa duração, que tramita no STF desde 20 de agosto de 2015, sofre no que tange à opinião pública, geralmente movida pelo preconceito acerca do debate sobre drogas no Brasil.

Seis dos 11 ministros já votaram, sendo eles: Gilmar Mendes (relator do caso), Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Rosa Weber. Os que ainda não votaram são: André Mendonça, Nunes Marques, Cármen Lúcia, Dias Toffoli e Luiz Fux.

Na sessão de votação mais recente, no mês de agosto, o ministro Zanin se manifestou a favor, em seu voto, de que houvesse a adição do critério objetivo de 25g, menor que o critério objetivo máximo sugerido anteriormente pelos ministros (100g), para aplicação da legislação como está atualmente, ou seja, para considerar o indivíduo como usuário e aplicar as medidas punitivas, mantendo a criminalização. A ex-presidente do Tribunal, ministra Rosa Weber adiantou seu voto, posicionando-se a favor da inconstitucionalidade do artigo, e o ministro André Mendonça fez pedido de vista, portanto o julgamento foi adiado em 90 dias, sendo assim, deve ser retomado em novembro.

O atual placar, portanto, é de 5 a 1 para o porte de maconha (exclusivamente) não ser mais considerado crime. A proposta dos ministros abrange de 25 a 100g da planta para uso pessoal, além de 6 plantas fêmeas (é referenciado o gênero da planta pois apenas as plantas fêmeas possuem flores que contém os tricomas onde se aglutina o THC, que é a principal substância psicoativa da planta, enquanto as plantas macho produzem “sacos” de esporos e servem para polinizar a planta fêmea). É necessário mais um voto a favor para formar maioria em prol da inconstitucionalidade do trecho.

Uma das polêmicas é a acusação de que o STF estaria usurpando as prerrogativas do Legislativo. O presidente do Congresso, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), se pronunciou enfaticamente para defender que a decisão de descriminalizar ou não a posse de drogas deve caber ao Legislativo federal, exclusivamente.

Como mencionado anteriormente, o STF não estaria legislando, uma vez que a discussão gira em torno da constitucionalidade da lei aprovada em 2006 pelo Legislativo, que é responsável pela diferenciação entre usuário e traficante no país,  a pedido de outro órgão (Defensoria Pública de São Paulo), sendo assim, a adequação aos regulamentos de tramitação dos processos foi seguida e, portanto, não houve escolha arbitrária do Foro. Já a discussão sobre o Projeto de Emenda à Constituição que Pacheco media, se tornou uma proposta para considerar a posse/porte de entorpecentes para quaisquer fins como crime, que ainda será apresentada por líderes partidários, e nos resta acompanhar os próximos capítulos.

Histórico da maconha no Brasil

A história da proibição da maconha no Brasil remonta ao final do século XIX. Até então, seu consumo já era relativamente comum.

Desde o período colonial, a Cannabis era utilizada tanto na indústria de cordame, quanto como medicamento, por exemplo sendo distribuído como “cigarros índios” nas farmácias brasileiras, uma herança da farmacopeia europeia. A partir do século XIX, foi utilizada também para uso psicoativo, muito ligado às camadas subalternas da população, como afrodescendentes e nordestinos.

Pesquisadores da criminalização da maconha no Brasil, como Henrique Carneiro, professor de História da USP, argumentam que a sua proibição se deu e perdura até hoje por ser uma “substância alteradora da consciência identificada com a cultura negra”. É por isso então que nomes dos derivados da Cannabis tem origem africana, como é o caso da “Liamba”, proveniente da língua Quimbundo, de Angola, e “Maconha” que é um anagrama de “Cânhamo”, utilizada pelos escravizados para que terceiros não identificassem do que falavam, também similar à palavra “Ma’kaña”, do Quimbundo.

No dia 4 de outubro de 1830, num pioneirismo brasileiro quanto a proibição do uso da maconha, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou a “Lei do Pito do Pango”, que criminalizou o cultivo e o consumo da planta. Enquanto o vendedor era punido somente com uma multa, o usuário (negro e pobre) era punido com prisão.

Em 1890, um ano após a proclamação da República, o artigo 159 do Código Penal proibiu o comércio de “substâncias venenosas”, e mesmo sem mencionar a maconha, a Inspetoria de Entorpecentes, Tóxicos e Mistificações (que era um departamento da polícia, também responsável por “combater” a umbanda, o curandeirismo e o espiritismo) começou uma perseguição aos usuários da planta.

No século XX, a primeira “lei de drogas” federal do país foi assinada em 1921 pelo presidente Epitácio Pessoa, proibindo “a venda de cocaína, ópio, morfina e seus derivados”.

Além disso, o Brasil protagonizou a primeira indicação da Cannabis como substância mencionada entre as resoluções da II Conferência Internacional do Ópio, em 1924, em Genebra, quando o Dr. Pernambuco, delegado brasileiro, afirmou para as delegações de 45 outros países: “a maconha é mais perigosa que o ópio”. Mesmo com o passar do tempo, a legislação brasileira continuou a reprimir o cultivo e o consumo da maconha, deixando uma escala local e indo para uma adesão a tratados internacionais.

Percebe-se como exemplo disso a edição do Decreto-Lei n°20.930 do Governo Vargas que alinhava o Brasil junto às disposições da Liga das Nações, informação que está na íntegra da lei, mesmo sendo póstuma à saída do Brasil da Liga, em que “fiscaliza o emprego e o comércio das substâncias tóxicas entorpecentes, regula a sua entrada no país de acordo com a solicitação do Comité Central Permanente do Ópio da Liga das Nações, e estabelece penas”.

Na ditadura militar, entre 1964 a 1985, o encarceramento relacionado a drogas aumentou em 312%. Em meio a isso, em 1976, o Brasil, em alinhamento com a política de drogas do governo Nixon nos EUA, entrou efetivamente na guerra às drogas com a Lei 6.368, que instituiu medidas de repressão aos vendedores e consumidores de substâncias consideradas ilícitas. Segundo o historiador Athos Vieira, que coordena o projeto “Drogas Quanto Custa Proibir”, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Candido Mendes, “a política de repressão norte-americana foi exportada para toda a América Latina. No Brasil, o governo militar aproveitou desse momento para alterar a lei colocando o consumidor como criminoso. Antes só os fornecedores de drogas eram colocados como infratores. Isso certamente foi uma influência dos EUA aqui”.

Com a nova Constituição brasileira de 1988, o tráfico de drogas foi classificado como “crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia”, juntamente a tortura e terrorismo. Mais postumamente, a Polícia Militar cria o PROERD, política pública que importa o DARE dos estadunidenses que já teve resultados questionados por especialistas, levando a polícia a ir às escolas conscientizar jovens. O programa brasileiro, que também possui resultados questionáveis, está no país desde a década de 90 e, a partir de 2019, o programa passou a ser instituído como lei no Estado de São Paulo.

Dessa forma, a Cannabis, que fora um dia um importante remédio nas farmacopéias oficiais do Brasil, passou a ser utilizado cada vez mais na clandestinidade, aprofundando a sua estigmatização como “planta perigosa que levaria ao crime a à loucura, característica das camadas mais subalternas, especialmente no recorte racial”.

A medicina, por sua vez, teve relevante contribuição nessa narrativa com discursos racistas, como o do médico brasileiro João Rodrigues Dória, no início do século XX, que afirmou que “o uso da Cannabis seria uma característica ‘maligna’ dos negros, que transmitiam seu ‘vício’ aos brasileiros”. Esse e outros discursos ajudaram na legitimação da ideia de inferioridade dos negros frente aos brancos, que, por sua vez, deu assisência no controle a esse povo, considerado “perigoso”, já que não ganharam nenhuma reparação pelos séculos de escravização.

A discussão em torno da maconha no Brasil, portanto, precisa passar por uma análise que vá à raiz do problema, que é racial.

A “Cannabis medicinal” e industrial e o PL 399

O termo “Cannabis medicinal”, ou o uso medicinal da maconha, se refere aos medicamentos que têm por base duas substâncias extraídas da Cannabis sativa, o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC), além de outros canabinoides menos relevantes. A Anvisa permitiu, desde 2015, a importação de produtos que têm princípios ativos extraídos da planta, chegando até a autorizar por breve período e, depois, proibindo novamente a importação da Cannabis in natura. E, a partir de 2019, passou a permitir a venda nas farmácias de produtos elaborados com substâncias extraídas da Cannabis, o Mevatyl (um dos remédios em questão), que chega a custar até 2 mil reais em farmácias pelo país.

A Anvisa permite produtos elaborados até o limite máximo de concentração de 0,2% de THC, uma vez que essa substância é a principal responsável pelos efeitos psicoativos e esses efeitos só ocorrem em quantidades superiores a essa. Somente são autorizados produtos com teor de concentração de THC acima de 0,2% para pacientes em estados irreversíveis e terminais para cuidados paliativos. Segundo a Anvisa, até 28 de novembro de 2022, tinham sido aprovados 23 produtos de Cannabis, 14 à base do canabidiol e 9 à base de extratos da Cannabis sativa.

Todas essas aprovações foram feitas tendo por base a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 327, de 9 de dezembro de 2019 que dispõe sobre os procedimentos para a concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação, de produtos de Cannabis para fins medicinais e estabelece os requisitos para comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização desses produtos. A Anvisa disponibiliza a consulta aos produtos de Cannabis aprovados no seu portal.

Estudos realizados com a Cannabis apresentam resultados no tratamento de várias doenças, como epilepsia, autismo, Alzheimer, Parkinson, dores crônicas e câncer, entre outras situações, segundo publicado na Agência Câmara de Notícias.

Mas o potencial da Cannabis é enorme, não se restringindo apenas ao uso medicinal. De acordo com a Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis, “A Cannabis é matéria para mais de 5 mil produtos em 21 setores da economia”. A fibra do cânhamo, variante da Cannabis sativa, pode ser utilizada nas indústrias têxtil, alimentícia, de combustível e da construção civil, em mais de 50 mil formas diferentes. Essa associação reúne empresas e técnicos que trabalham pelo desenvolvimento industrial, empresarial, de educação, pesquisa clínica e desenvolvimento de soluções em torno da Cannabis medicinal e do cânhamo industrial.

No Brasil, tramita, desde 2015, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) nº 399, para incluir no artigo 2º, da “Lei de Drogas”, o parágrafo 2º, cujo teor seria o seguinte: “Os medicamentos que contenham extratos, substratos, ou partes da planta denominada Cannabis sativa, ou substâncias canabinóides, poderão ser comercializados no território nacional, desde que exista comprovação de sua eficácia terapêutica, devidamente atestada mediante laudo médico para todos os casos de indicação de seu uso”. O PL já passou por várias comissões, foram apresentados substitutivos e emendas e se encontra aguardando deliberação de recurso, apresentado pelo deputado Pastor Eurico, na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, desde 17 de novembro de 2021, para, em seguida, ser encaminhado ao Senado Federal para apreciação.

Dentre os substitutivos apresentados e aprovados em 2021, um inclui a legalização do cultivo no Brasil da Cannabis sativa exclusivamente para fins medicinais, veterinários, científicos e industriais, desde que feito por pessoas jurídicas (empresas, associações de pacientes ou organizações não governamentais). De acordo com notícia veiculada pela Agência Câmara de Notícias, no dia 19 de setembro desse ano, foi pedido por parlamentares e convidados, em audiência realizada na Comissão de Legislação Participativa (CLP) da Câmara dos Deputados, que o Plenário da Casa vote o recurso ao substitutivo que se encontra parado desde 2021.

O debate foi proposto pela deputada Taliria Petrone (PSOL), que disse que “seis milhões de brasileiros poderão ser beneficiados no tratamento de diversos tipos de doenças em virtude do enorme potencial medicinal da Cannabis sativa”. Presente na reunião, o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT-SP), aproveitou a ocasião para dar seu testemunho. Após receber o diagnóstico de Doença de Parkinson no final do ano passado, Suplicy iniciou tratamento com Cannabis medicinal, que é usado junto com o medicamento habitual para a doença. Como o medicamento prescrito não é industrializado no Brasil, o deputado precisa importá-lo para realizar seu tratamento.

É importante lembrar que a democratização da Cannabis terapêutica em território nacional deveria perpassar, necessariamente, pelo auto cultivo e pelo envolvimento mais intenso das associações do que proposto pela PL 399/2015, segundo especialistas. Hoje, as associações são responsáveis pelo fornecimento mais barato dos remédios. No entanto, ativistas insistem que o PL 399 é comparável à Lei que criminalizava o usuário do pito do pango, de modo que o grande capital pode cultivar, tratar e vender e o jovem negro e pobre continua sendo criminalizado.

Além disso, a proibição da planta atrapalha os pacientes medicinais, como a Dona Cleuza, que tratava legalmente (possuía Habeas Corpus para plantio) seu filho Samuel, e teve sua residência invadida pela polícia que foi respaldada com um mandato judicial, as plantas confiscadas e seu marido foi preso “preventivamente”.

Guerra às drogas e encarceramento em massa

A Lei de Drogas (11.343/06), já mencionada, buscava romper com a pena de encarceramento aos usuários de drogas, diferenciando-os dos fornecedores, esses sim com punições que levariam à prisão. No entanto, ao não serem estabelecidos critérios objetivos quanto à quantidade de droga que classificaria uma pessoa usuária ou traficante, foi aberto margem para uma série de abusos de autoridade por parte dos agentes da lei.

Dessa forma, uma lei que parecia ter um caráter progressista, na realidade, fez com que houvesse um aumento do número de pessoas presas por tráfico, que tem cor e classe social. Segundo Rodrigo Murad do Prado, defensor público de Minas Gerais, “são raros os casos de pessoas de classe média ou ricas condenadas por tráfico. E por que isso acontece? Primeiro porque elas têm mais acesso a bons advogados. Depois, porque o policial não entra em um apartamento de classe média sem mandado judicial, mas muitos fazem isso na periferia“.

O Brasil é o terceiro país com a maior população carcerária no mundo, somente atrás da China e dos Estados Unidos, em termos absolutos. Dados do final do ano passado relatam que há mais de 832 mil encarcerados no Brasil, e desse total 68,2% são negros, explicitando então que o encarceramento tem cor.

Além disso, um terço da população carcerária se encontra nas prisões por conta da Lei de Drogas, e esse tipo de encarceramento atinge as mulheres de forma desproporcional. Segundo dados da Secretaria de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Senad/MJSP), 54% das mulheres encarceradas se dão por motivos relacionados a drogas, enquanto a taxa cai para 27,65% em relação aos homens encarcerados.

De acordo com a jornalista Anita Krepp, a aplicação da Lei de Drogas do governo Lula ocasionou em um aumento de 70% da população carcerária, superlotando os presídios brasileiros, já que a sua capacidade máxima é de 596.162 vagas. Além do mais, cerca de 30% dos presos ainda não foram julgados.

A guerra às drogas no Brasil gera, então, diversas consequências sociais para a sua população. Enquanto há diversos problemas sociais que o país enfrenta, os custos aos cofres públicos da manutenção dessa guerra é de 15 bilhões de reais. Em uma guerra que não diminui o tráfico, e aumenta a violência nas ruas, com o alvo sendo corpos negros e periféricos.

É por isso que especialistas têm apontado que o caminho para o fim da guerra às drogas é a sua descriminalização, como o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, que defendeu que “o uso de drogas deve ser tratado como um problema de saúde pública e não como uma questão criminal”.

Avaliações técnico-científicas interpretam, portanto, que estes argumentos são suficientes para se descriminalizar a Cannabis e seus derivados. Porém, a discussão no campo da política, muitas vezes, desqualifica as avaliações científicas, pois lida com a dimensão cultural que o tema alcança entre vários setores da população.

Para boa parte da população brasileira, os assuntos que cercam a maconha se resumem à propagação como ela poder levar ao vício (há discordância entre especialistas) e como utilizá-la financia o tráfico, mas se a substância vêm através do cultivo de uma planta que poderia ser feito em casa, não faz sentido falar que o usuário (necessariamente) financia o tráfico, afinal, se quem proíbe é o Estado, impedindo o usuário de realizar cultivo próprio, quem financia o tráfico, por consequência, é o proibicionismo.

Através da narrativa proibicionista exposta, presente nas ideias conservadoras sobre a questão da maconha, seja medicinal, industrial ou para uso recreativo, podemos avaliar, segundo especialistas, que o pânico sobre a planta é moral e não científico. Afinal, possuímos drogas legalizadas muito mais danosas que a maconha, como o tabaco ou o próprio álcool, substâncias que representam, geralmente, o primeiro contato com as drogas, algumas pesquisas revelam que 80% dos jovens “visualizam cigarros quando vão à padaria, 70% quando vão ao supermercado, 37% na banca de jornal, 58% em bares, 38% em lojas de conveniência”, está muito mais normalizado e presente na cultura e vida cotidiana brasileira e, pelo menos 71% dos jovens podem sentir vontade de fumar ao ver os cigarros expostos em vitrines ou prateleiras.

Contudo, o debate que está acontecendo sobre a legalização da maconha pelos poderes é bem mais complexo, levando em conta os desencadeamentos sociais da Lei de Drogas de 2006. A descriminalização do uso pode reduzir o estigma e, nesse sentido mais amplo que envolve o mercado medicinal e industrial,  levar à uma potencial regulamentação e, a partir disso, à exportação da planta para o uso medicinal e industrial, como a de cânhamo para produção de cordas, plástico, tecido, tijolos, carros e, inclusive, combustível. Esse novo cenário também pode abrir novas oportunidades para deixar as economias da região mais verdes, já que esses materiais, em sua maioria, causam impacto ambiental reduzido e as plantas são fixadoras de carbono.

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