Marcha forçada e endividamento externo: o II PND, por Ivan Colangelo Salomão

O governo lançou, no final de 1974, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND). Tratava-se de um ambicioso pacote de investimentos

Marcha forçada e endividamento externo: o II PND*

por Ivan Colangelo Salomão

Com objetivos não exatamente lisonjeiros, a política econômica sob Dilma Rousseff (2011-2016) foi frequentemente cotejada à adotada durante o governo Ernesto Geisel (1974-1979). Inobstante as diversas particularidades que os respectivos momentos históricos naturalmente guardam, há semelhanças e eventuais influências que merecem, de fato, análise pormenorizada para que se possa compreender os fenômenos em sua totalidade. Menos pelos objetivos do que pelos resultados, a comparação deve ser assaz nuançada, uma vez que a equipe econômica de Geisel entregou crescimento médio próximo de 7% ao ano ao final de sua gestão, ainda que acompanhado de recrudescimento inflacionário e deterioração do setor externo.

Se o período do “milagre” (1968-1973) havia, de fato, registrado resultados positivos e inéditos na história do país, o lustro de crescimento acelerado também aprofundou determinadas fragilidades estruturais da economia brasileira. O I choque do petróleo (1973) expôs os limites da estratégia de desenvolvimento baseada em poupança externa. Isso porque o aprofundamento do processo de industrialização substitutiva de importações – baseada, naquele momento, no setor de bens de consumo duráveis – elevou a demanda de insumos (petróleo) e bens de capital (máquinas e equipamentos), subordinando ainda mais o crescimento econômico brasileiro à capacidade de importação.

Com efeito, o cenário internacional no primeiro semestre de 1974 exigia cautela das economias refratárias. O aumento de aproximadamente 200% no preço do barril de petróleo no final do ano anterior resultou aceleração inflacionária em todo o planeta. Diante da impossibilidade física de se atenuar tais pressões de custo no curto prazo, a resposta dos bancos centrais do mundo industrializado foi de aperto monetário. Medida que, de fato, conteve a absorção nesses países, que se transformou na queda agregada da atividade econômica mundial observada no biênio subsequente. Para o Brasil, a consequência imediata da política desinflacionária levada a cabo na Europa e nos Estados Unidos foi a diminuição significativa na taxa de crescimento das exportações, cujos resultados (em valores) haviam praticamente triplicado desde 1970. Assim, faltariam divisas para suportar as importações de que cada vez mais dependia a industrialização brasileira.

A restrição externa foi logo aliviada, no entanto, pela entrada dos chamados “petrodólares” – recursos oriundos das exportações dos países membros da OPEP reciclados em bancos europeus e norte-americanos. Naquele contexto de recessão mundial, poucos eram os países que se atreviam a captar empréstimos no mercado financeiro internacional; na América Latina, basicamente Brasil, México e Argentina. Se a abundância de liquidez contribuiu, de fato, para financiar os déficits em conta corrente por meio da conta de capitais, por outro lado, “anestesiou” os gestores de política econômica. Ainda que impopular, poder-se-ia ter optado por um ajuste estrutural, que atrelaria o crescimento brasileiro às condições externas, mormente, as da balança comercial. Conforme assinala Carneiro (1992), porém, o governo brasileiro parece não ter tomado a real dimensão do quadro dramático que se avistava, elevando a já vultosa dívida externa brasileira e contribuindo para reforçar a vulnerabilidade da economia do país em relação aos credores externos.

Mas diante das pressões internas – tanto políticas quanto econômicas – o governo que pretendia promover a abertura do regime não poderia fazê-lo em meio à recessão. Os empresários que haviam investido durante o “milagre” não compactuariam com uma recessão planejada no momento em que a maturação das inversões dependia ainda mais da demanda interna. Nesse sentido, Sallum Junior (1996) sugere que uma resposta ortodoxa à crise externa cobraria um preço demasiadamente elevado, acirraria conflitos distributivos e reduziria o raio de ação de um presidente compromissado com a distensão política. A legitimação de um governo ilegítimo deveria ser, antes de tudo, econômica.

Foi nesse cenário de restrição que o governo Geisel, empossado em março de 1974, lançou mão do último espasmo industrializante da história do Brasil. Sua equipe econômica supunha que a recessão mundial causada pelo choque do petróleo seria passageira e não se repetiria no curto prazo, previsões que se mostraram equivocadas. Diante de tal diagnóstico, decidiu-se descolar a economia brasileira do cenário internacional, ampliando a capacidade doméstica de produção de energia, bens intermediários e de capital (Hermann, 2011).

Para tanto, o governo lançou, no final de 1974, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND). Tratava-se de um ambicioso pacote de investimentos públicos e privados em setores que, de alguma maneira, obstavam o lado da oferta: infraestrutura, bens de capital e insumos básicos (com foco em metalurgia e petroquímica). De acordo com Tavares e Assis (1985, p. 43), a ousadia do intento repousava sobre seus objetivos: simplesmente concluir a planta da indústria pesada e internalizar a de bens de capital e de insumos básicos e de bens intermediários; paralelamente, pretendia-se reforçar a infraestrutura nos setores de energia, transportes e telecomunicações.

Frente à impossibilidade de se financiar um projeto de tal monta apenas com recursos do orçamento público e da ainda acanhada classe capitalista brasileira (Cardoso, [1964] 2020), o governo valeu-se da ampla liquidez no mercado financeiro internacional. Para Carneiro (1992, p. 298), os gestores de política econômica no Brasil não haviam se inteirado da gravidade da conjuntura de 1974. Caso contrário, “certamente a imagem da ilha de prosperidade, que só cairia no ridículo com a brusca desaceleração das exportações em 1975, não constituiria […] o deleite da oposição ao regime.” A crise dos anos 1980 mostrou que a conta, de fato, não tardaria a ser cobrada.

Já para os defensores da estratégia não-recessiva, a audácia do plano traria mais benefícios do que ônus para a economia brasileira. Castro (1985) não atenua os efeitos deletérios do crescimento significativo – e, em alguma medida, irresponsável – da dívida externa exigido pelos investimentos. Ainda assim, entende que a gravidade da crise não seria minimizada por uma simples contração da demanda agregada sem que fosse atacada a deficiência da estrutura produtiva brasileira. Nos termos do autor: “Travar a economia em 1974, depois de crescer 14% no ano anterior […] equivaleria a promover o desmoronamento do presente e o comprometimento do futuro.” Para João Paulo dos Reis Velloso, que, à frente da Secretaria do Planejamento, foi o principal gestor do II PND, “a crise do petróleo apenas tornou o programa de 1974 imperioso e inadiável.” (apud Castro, 1985, p. 32). Ao corroborar esse entendimento, Lessa (1978) adiciona um elemento de racionalidade política à decisão do governo. Para o autor, “o II PND faz da crise do petróleo a justificativa para a proclamação serena e não traumática do projeto de potência nascida no interior do aparelho do Estado”, de modo que o plano extrapolaria a legítima necessidade de se atenuar as restrições impostas pela crise externa.

Por outro lado, os efeitos deletérios de uma política de endividamento em cenário tão adverso como o daquele momento legítima as críticas à opção do governo. A começar pelas condições da contratação das dívidas – a juros flutuantes –, mas também pela própria retração do comércio internacional. Nesse sentido, Moura (1990) entende que estratégia adotada em 1974 dificultou o ajustamento do balanço de pagamentos. Na sua visão, “a política implementada pelo governo brasileiro ampliou em boa medida o desequilíbrio da economia, acentuando sua notória vulnerabilidade externa.” O autor critica o oportunismo do governo – “um exercício visando a acomodar objetivos econômicos conflitantes a curto prazo”, que teria “simplesmente transferido para o futuro o momento de enfrentar os encargos crescentes das obrigações internacionais.” (Moura, 1990, p. 41).

Inobstante as diferenças nas interpretações, a análise dos resultados do plano revela resultados positivos em pelo menos três dimensões: (1) o aprofundamento do processo de substituição de importações; (2) a redução da dependência em relação ao petróleo importado; e (3) o aumento na diversificação das exportações de bens manufaturados. No curto prazo, a elevada taxa média de crescimento econômico verificada entre 1974 e 1979 (quase 7% a.a.) teve nas inversões do II PND um de seus principais elementos.

As consequências deletérias do plano, por sua vez, são ainda mais consensuais. A primeira e mais importante, o aumento abrupto da dívida externa – de US$ 20 para US$ 56 bilhões entre 1974 e 1979. Quando do segundo choque do petróleo, a situação das contas externas tornou-se insustentável, obrigando o governo brasileiro a adotar um ajuste contracionista que esteve por trás do período conhecido como a “década perdida”. Eis o início da mais longa estagnação já registrada na história estatisticamente documentada do país, na qual a gestão Rousseff representa apenas mais um dos diversos elementos subjacentes à eterna crise econômica que acomete o Brasil desde o fim da era desenvolvimentista (1930-1980).

Referências

CARDOSO, Fernando Henrique. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [1964] 2020.

CARNEIRO, Dionísio D. Crise e esperança. In: ABREU, Marcelo de P. (Org.). A ordem do progresso. Cem anos de política econômica republicana. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

CASTRO, Antonio B. de. Ajustamento x transformação. A economia brasileira de 1974 a 1984. In: CASTRO, Antonio B. de; SOUZA, Francisco P. A economia brasileira em marcha forçada. São Paulo: Paz e Terra, 1985.

HERMANN, Jennifer. Reformas, Endividamento Externo e o “Milagre” Econômico (1964-1973). In: GIAMBIAGI, Fabio et al. (Orgs.). Economia Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2011.

LESSA, Carlos T. M. R. de. A estratégia de desenvolvimento 1974-1976 – sonho e fracasso. 1978. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

MOURA, Alkimar R. Rumo à entropia: a política econômica, de Geisel a Collor. In: LAMOUNIER, Bolívar et al. (Orgs.). De Geisel a Collor: o balanço da transição. São Paulo: Editora Sumaré, 1990.

SALLUM JUNIOR, Brasílio. Labirintos: dos generais à Nova República. São Paulo: Hucitec, 1996.

TAVARES, Maria da C. de A.; ASSIS, José Carlos de. O grande salto para o caos: a economia política e a política econômica do regime autoritário. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 

Ivan Colangelo Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (FEA/USP)


* Artigo originalmente publicado em Boletim Informações Fipe, n. 514, 2023.

Redação

1 Comentário

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  1. O pior foi a sequência. Com a segunda crise de petróleo em 1979, o Simonsen quis fazer uma pequena recessão. Não foi ouvido. Entrou o Delfim com o pé no acelerador, e com o aumento do juros dos petrodólares o país quebrou. Não tiveram outra alternativa a não ser entregar o poder.

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