O funcionamento do sistema monetário de acordo com Teoria Monetária Moderna, por Ulysses Ferraz

Um ponto importante da MMT é que ela sustenta que “o governo só não está sujeito à restrição financeira nos seus gastos em moeda nacional ”

O funcionamento do sistema monetário de acordo com Teoria Monetária Moderna (Modern Monetary Theory – MMT)

por Ulysses Ferraz

A abordagem da Teoria Monetária Moderna (MMT) desafia a lógica da teoria macroeconômica tradicional e apresenta o problema do gasto público com um enfoque semelhante ao de uma “revolução copernicana” no pensamento macroeconômico.

Conforme argumenta Stephanie Kelton (2020, p. 2), Copérnico e os cientistas que o seguiram mudaram nossa compreensão do cosmos, mostrando que a terra gira em torno do sol e não o contrário. Uma ruptura semelhante, defende Kelton, é necessária para entendermos o déficit público e sua relação com a economia. Com o uso das “lentes” da MMT, prossegue Kelton (2020, p. 2), é possível explicar essa revolução copernicana.

A MMT, segundo seus defensores, é aplicável a todos os países com soberania monetária – Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Austrália, Canadá, Brasil entre outros – em que os governos possuem o monopólio legal de emitir suas próprias moedas, sem a necessidade de lastro em mercadorias como ouro, ou em outras moedas soberanas estrangeiras (Ibidem).

A MMT, explica Kelton, altera a maneira como vemos nossa política e nossa economia ao mostrar que, em vez de buscarmos a equivocada meta de equilibrar os orçamentos, deveríamos equilibrar a atividade econômica de modo que a prosperidade seja amplamente compartilhada e não fique cada vez mais concentrada em poucas mãos (Ibidem).

E embora a abordagem da MMT tenha implicações políticas, trata-se de uma teoria descritiva do funcionamento da economia, e não normativa. Seus proponentes alegam descrever corretamente o real funcionamento das finanças públicas. De acordo com a teoria tradicional, o contribuinte é o centro do universo monetário por causa da crença de que o Estado não possui dinheiro a não ser aquele que é arrecadado por meio de tributos e por meio de emissão de títulos públicos (Ibidem).

Portanto, o único dinheiro disponível para financiar os governos vem do setor privado. Para a macroeconomia tradicional, o dinheiro do governo é o “nosso dinheiro”. Mas a MMT subverte radicalmente nossa compreensão acerca do funcionamento das finanças do Estado ao reconhecer que é o emissor de moeda – o governo federal – quem financia todas as despesas públicas (Ibidem).

E para que servem os impostos federais, de acordo com a MMT? Os tributos federais são importantes para fins redistributivos, para evitar grandes disparidades de renda e riqueza, também como instrumento de política econômica, para estimular ou inibir certos setores econômicos no interesse do país e, finalmente, como instrumento de controle da demanda agregada de modo a restringir a atividade econômica quando ela está muito aquecida e com riscos de inflação.

Por conseguinte, a função da tributação não é arrecadatória, mas a de funcionar com um meio para se atingir objetivos políticos, econômicos e sociais. Em vez de primeiro arrecadar para depois gastar, o governo gasta conforme seus objetivos institucionais e, ao fazê-lo, sempre o faz via “emissão” de dinheiro novo.

Nesse sentido, conforme explica André Lara Resende (2020, p. 68), a moeda nas economias modernas é “endógena e criada pela expansão dos gastos do governo ou pela expansão dos empréstimos bancários”. A arrecadação serve para “destruir” o dinheiro colocado na economia (pelo próprio Estado ou pela chamada moeda bancária ), seja para controlar a inflação, seja para reduzir a concentração de renda e riqueza, ou para promover incentivos e desincentivos setoriais. Assim, “os bancos […] podem se tornar insolventes e quebrar, mas o governo que emite a sua moeda não, pois pode sempre “emitir” para se financiar, o que nada mais é do que aumentar o valor do registro contábil do passivo do banco central” (Ibidem).

Um ponto importante da MMT é que ela sustenta que “o governo só não está sujeito à restrição financeira nos seus gastos em moeda nacional ” (Ibidem, 74). O endividamento externo, que é sempre denominado em moeda estrangeira, impõe limitações importantes nos gastos públicos, a menos que o país seja emissor de moeda de reserva como o dólar americano. Isso porque como “não é possível emitir moeda estrangeira, a dívida externa efetivamente corre risco de não poder ser refinanciada” (Ibidem).

Embora a MMT seja uma teoria descritiva, a sua aceitação traz implicações para as políticas públicas. Assim “a compreensão de que a moeda fiduciária contemporânea não é um estoque finito, pelo qual há oferta e demanda, e sim um índice da atividade econômico-financeira, tem implicações subversivas para o paradigma macroeconômico estabelecido” (RESENDE, 2020, p. 91). A proposição segundo a qual os gastos do governo, por serem análogos ao das famílias e empresas, devem respeitar as suas restrições financeiras, “embora não seja verdadeira, é um poderoso instrumento retórico” (Ibidem).

Essa analogia tem sido o grande refúgio conservador para bloquear investimentos públicos em saúde, educação, cultura, infraestrutura etc. e para declarar a insustentabilidade do fornecimento de serviços públicos pelo Estado. Supostamente sem dinheiro, endividado e “quebrado”, o Estado precisa se desfazer de seus ativos, de suas empresas públicas, cortar despesas de custeio, reformar a previdência, caso contrário entrará em colapso com perdas elevadas para toda a população.

E como a população não suporta mais impostos, alegam os conservadores, não resta alternativa a não ser privatizar serviços públicos e cortar gastos, sobretudo de setores do funcionalismo com menor poder de barganha na sociedade. Mesmo políticos progressistas trabalham de acordo com esse paradigma, sustentando que, se eleitos, governarão com responsabilidade fiscal de modo a equilibrar seus orçamentos. No caso brasileiro, se não o fizerem incorrerão em crime de responsabilidade e provavelmente serão depostos de seus cargos.

Afirmar que os gastos públicos são financiados pelo “o seu, o meu, o nosso dinheiro”, ainda que seja incorreto do ponto de vista da MMT, tem enorme apelo para o cidadão pagador de impostos e goza do respaldo da legislação vigente em muitos países democráticos. Para Rezende (2020, p. 91), essas são as razões pelas quais a MMT tem sido ser rejeitada “antes mesmo de analisadas pelos mais conservadores. Não podem, entretanto, deixar de ser enunciadas, pois, se bem compreendidas, ajudarão a formar um novo paradigma para a formulação de políticas macroeconômicas” (Ibidem).

De acordo com os pressupostos da MMT (DALTO et al., 2020, pp. 26-27), “o limite real para o gasto público é o limite de recursos reais disponíveis para serem empregados na produção de riqueza real da sociedade. […] O gasto público não deve ser nem maior nem menor do que aquele condizente com o pleno uso dos recursos produtivos”.

 Cortes de gastos e políticas de austeridade fiscal têm a função de manter taxas de desemprego elevadas o suficiente para disciplinar as classes trabalhadoras, de modo que seus integrantes aceitem a informalidade, a precarização e salários decrescentes e, a pretexto da falta de dinheiro por parte do Estado, abrir espaço para a mercantilização de direitos básicos via privatizações e venda de ativos públicos. Assim, de acordo com a MMT, os imperativos de austeridade fiscal não poderiam mais ser justificados com base em argumentos técnicos e teóricos. As exigências de equilíbrio fiscal seriam descartadas por serem desnecessárias e autoimpostas por razões políticas, seja por erro ou má-fé, e não uma decorrência da restrição real de recursos financeiros por parte do Estado.

Ulysses Ferraz, mestre em Lógica e Metafísica pela UFRJ e doutorando em Ciência Política pelo IESP-UERJ.

Bibliografia recomendada:

DALTO, Fabiano A. S. et al. Teoria Monetária Moderna: a chave para uma economia a serviços das pessoas. Fortaleza: Nova Civilização, 2020.

KELTON, Stephanie. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and How to Build a Better Economy. Londres: John Murray, 2020.

RESENDE, André Lara. Consenso e contrassenso: por uma economia não dogmática. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2020.

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Redação

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  1. “Aqui está o cadáver do meu prisioneiro. Agora eu vou desmembra-lo, jogar fora o que não presta e moquear tudo aquilo que puder ser devorado. A distribuição dos pedaços mais suculentos será feita de acordo com o prestígio dos meus convidados para reforçar nossas relações tribais e intertribais e garantir meu poder”.

    Essa fala poderia ser atribuída a um chefe Tupinambá do século XVI. Mas ela também explica como funciona o mercado sob o neoliberalismo. Estados inteiros são aprisionados, desmembrados e eventualmente destruídos para garantir os lucros financeiros de um punhado de bestas feras que vestem Prada. A ética neoliberal é semelhante à dos indígenas Tupinambás: o inimigo (seja ele um colono português, um indígena da tribo Guarulho ou Tupi ou um país desarmado ou governado por palhaços) pode e deve ser sacrificado, moqueado e consumido. A dor que isso provocará ao morto ou aqueles que dele dependiam é irrelevante.

  2. MAIS DA METADE DO ORÇAMENTO PREVISTO PARA O ANO DE 2023, É PARA PAGAMENTO DE JUROS E AMORTIZAÇÃO DA DÍVIDA PÚBLICA. MAS PARA O TENEBROSO MERCADO, O QUE PREOCUPA NAS CONTAS PÚBLICAS, É O RESTANTE DO ORÇAMENTO.

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