Janet Yellen e a Defesa do Dólar, por André Moreira Cunha e Luiza Peruffo

Cresce contestação do uso como “arma política” em disputa que se orienta para preservação da posição dos EUA como poder hegemônico global.

Janet Yellen e a Defesa do Dólar

por André Moreira Cunha e Luiza Peruffo

In Dollar We (no longer) Trust

Há 53 anos, o então Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, John Connally, informou ao resto do mundo que seu país não mais sustentaria a paridade fixa diante do ouro. Para ilustrar o “Choque Nixon” na reunião do G-10, em Roma, Connally cunhou uma frase que ficou notória: “o dólar é a nossa moeda, mas o problema é de vocês”. Hoje, o problema do dólar já não é somente dos outros. Cresce a contestação do seu uso como “arma política” em uma disputa que se orienta para a preservação da posição dos Estados Unidos como poder hegemônico global. Conforme sugeriu J. W. Sullivan, ex-analista sênior do Conselho de Consultores Econômicos da administração Trump, “as conversas sobre desdolarização estão no ar”. A ampliação das capacidades econômicas, tecnológicas e militares de outros países, particularmente da China, redesenha os horizontes da ordem internacional. O futuro mudou e com ele as expectativas de cristalização de um sistema monetário e financeiro internacional (SMFI) dólar-cêntrico.

O passado e o presente são claros. Nos últimos setenta anos, os EUA moldaram as relações financeiras internacionais à luz dos seus interesses. Sua moeda se consolidou com o principal veículo para a realização de transações comerciais e financeiras. É a moeda internacional “de facto”, ainda que não “de jure”. Seus ativos, particularmente da dívida pública federal, são os mais demandados e representam os instrumentos mais líquidos e seguros disponíveis. Os demais ativos se “precificam” em comparação com as treasuries de dez e trinta anos. Com cerca de 20% do PIB global e um pouco menos do comércio de mercadorias, os ativos denominados em dólares conformam ao redor de 60% das reservas oficiais, dos créditos bancários e demais instrumentos de dívida gerados por instituições financeiras em nível internacional. Metade das transações realizadas internacionalmente são liquidadas em dólares.

Já o futuro transmuta-se a olhos vistos. Com o fim da Guerra Fria, imaginava-se que o século 21 seria uma vez mais, “americano”. Agora, a perspectiva do convívio de distintos polos de poder desperta a perspectiva de uma “ordem multipolar”. Esta, se vier a se concretizar, não necessariamente eliminará hierarquias e assimetrias, as mais diversas. Porém, a simples possibilidade de que haja outra distribuição dos fluxos e estoques de renda e de riqueza, de geração e controle das tecnologias-chave, de poder militar, de capacidade de projeção de valores e, assim, de outras perspectivas sobre a própria humanidade, já causa perturbações em múltiplas dimensões do presente. Dentre elas, o desconforto do atual hegemon, cujas elites querem determinar, com exclusividade, os destinos do planeta. 

Ainda assim, cresce a desconfiança quanto à estabilidade do sistema político e das instituições econômicas dos EUA, com consequente busca por “diversificação de riscos”. E emergem novos poderes, interesses e planos para viabilizar alternativas ao “poder americano”. A redução em dez pontos percentuais no uso do dólar como ativo de reserva nas últimas duas décadas, conforme sugere estudo recente publicado pelo Fundo Monetário Internacional (IMF), já aponta em uma nova direção. Este movimento de diversificação seguirá na próxima década, caso se concretize o planejamento dos bancos centrais consultados na edição de 2023 do “Global Public Investor”. A moeda chinesa deverá aumentar sua participação no portfólio de 40% dos BCs consultados. No caso do dólar, predomina a tendência de manutenção dos volumes atuais, o que implicaria perda relativa de participação. Assim, é possível que, ao se adentrar a terceira década deste século, a moeda estadunidense tenha uma participação no total dos ativos oficiais de reservas 30 pontos percentuais abaixo dos níveis observados em 2001.

O establishment estadunidense sabe disso e tenta evitar o pior. O Secretário de Estado de Biden, Antony John Blinken, circula pelo mudo tentando convencer parceiros tradicionais e estados vassalos a manterem distância de seus “rivais estratégicos”. Para Blinken: “A China é o único país com a intenção de reformular a ordem internacional e, cada vez mais, com o poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para fazê-lo… A visão de Pequim nos afastaria dos valores universais que sustentaram grande parte do progresso mundial nos últimos 75 anos.”

Se Blinken demanda alinhamento automático à luta do Ocidente contra as potências que contestam o “status quo, Janet Yellen toca as trombetas do Apocalipse e anuncia que sem o dólar – e a liderança estadunidense – a economia global definhará.

Paris e o Pacto Financeiro Global

Yellen, a superpoderosa Secretária do Tesouro dos EUA, entrou em campo para defender a posição hierarquicamente superior da moeda estadunidense e da infraestrutura institucional que a viabiliza. Ao término da Cúpula de Paris por um “Novo Pacto Financeiro Global”, declarou: “Há uma boa razão pela qual o dólar é amplamente utilizado no comércio e é porque temos mercados de capitais abertos, líquidos e profundos, garantias legais e instrumentos financeiros longos e profundos.”

Na plateia, havia dezenas de líderes globais, presidentes e ministros de Estado,  representantes de instituições multilaterais e outros atores, muitos dos quais dispostos a repensar os limites do sistema financeiro internacional para enfrentar problemas estruturais comuns, como as mudanças climáticas, o excesso de endividamento e a instabilidade financeira. O encontro tinha por lema “construir consensos para um sistema financeiro mais inclusivo”. Para Yellen, o único consenso a ser mantido é o da manutenção da hegemonia do dólar.

Ainda assim, a Secretária do Tesouro dos EUA conviveu em um ambiente onde os debates colocaram ênfase nos efeitos das mudanças climáticas sobre os países mais vulneráveis. E, como tem sido usual, não faltaram críticas ao dólar e ao status quo criado pela maior potência global. Macron, o anfitrião, enfatizou a necessidade do desenvolvimento de mecanismos alternativos que permitam mitigar os efeitos já vividos por muitos países, antes da realização da Cúpula do Clima em 2028 (Cop28). Os custos para descarbonizar a economia global foram estimados em 2% adicionais do PIB do conjunto das economias, recursos que seriam destinados a investimentos em novas energias, de modo a triplicar o nível atual 1% do PIB). Com a vantagem de que tais processos gerarão efeitos multiplicadores positivos sobre empregos, rendas e impostos. A grande questão é como financiar tal impulso nos marcos do sistema financeiro altamente rentista, concentrador de recursos em atividades especulativas, centrado no dólar e em suas instituições e, no caso de muitos países emergentes e em desenvolvimento, em um contexto de sobre-endividamento recente e fortes restrições fiscais. A tributação adicional dos combustíveis fósseis e dos setores intensivos no seu uso pode ser uma saída. Esta, por sua vez, esbarra em interesses fortemente arraigados nos países de alta renda e suas elites, especialmente nos EUA.

Para além deste tema, Macron tem sido cada vez mais explícito em sua defesa de que a Europa deve reduzir sua dependência do dólar e das armas estadunidenses. A cada nova declaração, o presidente francês flerta com a ideia de que os países europeus não devem ser seguidores passivos dos interesses estadunidenses, assumindo crises que não são suas. E, mais, que a região não deve ficar à margem de um novo mundo com duas grandes superpotências, EUA e China. Para ele, há lugar para mais um, a Europa unida, no centro do poder global.

Tão longe, tão perto

A reunião em Paris frustrou quem imaginava ser possível o anúncio de medidas concretas, como o perdão de dívidas dos países mais pobres e sujeitos aos efeitos mais disruptivos das mudanças climáticas. Todavia, não faltaram momentos simbólicos. O Le Monde destacou o encontro entre os presidentes do Brasil e da França. Luiz Inácio Lula da Silva tem sido uma das vozes mais críticas à hegemonia do dólar e, também, um defensor da ampliação do comércio internacional com o uso de moedas locais e da construção de novos arranjos monetários e financeiros, como a moeda de reservas dos BRICS ou a moeda comum para os países da América do Sul.

Yellen passou seu recado de confiança no dólar para um público que está, pelo menos parcialmente, inquieto com as ações de Washington. Nos mercados financeiros, impera o pragmatismo. Conforme sintetiza Kathy Jones, estrategista e gestora da Schwab Co., empresa financeira que administra US$ 7 trilhões em ativos: “Tem havido uma tendência de longo prazo em direção à diversificação de moedas nas transações financeiras e comerciais globais, mas não vemos o dólar estadunidense perdendo seu domínio tão cedo”. Já o futuro, cada vez mais nebuloso, dependerá da emergência de alternativas robustas e críveis; e da capacidade de Washington reverter a visão de que sua moeda e infraestrutura financeira são, de fato, “bens públicos” e não armas a serviço de sua guerra contra os rivais estratégicos. Elon Musk, que não ganhou notoriedade por ser discreto, sentenciou em sua conta no Twitter em 25 de abril do corrente ano: “Se você usar sua moeda como uma arma de forma recorrente, outros países pararão de utilizá-la.”

O futuro multi-monetário, com a moeda estadunidense importante, mas não dominante, pode estar longe. Próximos e palpáveis são os temores de que a hegemonia do dólar será eterna.

André Moreira Cunha e Luiza Peruffo – Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais UFRGS

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