Andre Motta Araujo
Advogado, foi dirigente do Sindicato Nacional da Indústria Elétrica, presidente da Emplasa-Empresa de Planejamento Urbano do Estado de S. Paulo
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Miséria na estação das águas, por André Araujo

A tragédia das águas é um somatório de muitas outras tragédias do Estado brasileiro

Foto G1

Miséria na estação das águas

por André Araujo

As tragédias humanas noticiadas por causa das chuvas são de cortar um coração de pedra. Casinhas modestas erguidas sabe-se lá com que sacrifício são levadas na enxurrada com tudo que está dentro, móveis, aparelhos domésticos, roupas, cadernos das crianças, até comida. Em minutos uma vida familiar destruída, virando um nada. Como o chefe da família vai trabalhar, se é que tenha emprego, nessas condições?

A tragédia das águas é um somatório de muitas outras tragédias do Estado brasileiro. 

  1. Falta de interesse das Prefeituras em obras de contenção e drenagem. O Brasil é destaque mundial em muitas áreas da engenharia, mas é pobre em outras, uma delas é a DRENAGEM , uma técnica e arte conhecida há milênios por todas as civilizações, os pré-colombianos incas e astecas eram peritos em drenagem e controle das águas. A engenharia hidráulica é a mais antiga de todas as áreas de engenharia, até castores sabem lidar com as águas. Povos antigos, como árabes e romanos, eram mestres em drenagem. Somos muito bons na engenharia de levar água às casas. São Paulo tem fornecimento de água para quase 100% das residências, coisa que poucas cidades de países emergentes podem se orgulhar, é um sistema complexo e de ótima performance numa cidade de pavorosa topografia.  Água de excelente qualidade é fornecida (por uma estatal) para 20 milhões de pessoas, não só São Paulo mas também nos municípios vizinhos. Já no escoamento de esgotos somos péssimos e na drenagem de água de chuva, piores ainda.
  2. Mau uso de verbas do orçamento. A União disponibilizou, nos últimos dez anos, R$ 8,5 bilhões para obras de drenagem nos municípios. Só foram utilizados R$ 3,3 bilhões. O valor disponibilizado já é ridículo. Precisaria ser dez vezes maior para atender um País com as dimensões do Brasil. As tragédias das águas atingem o País inteiro, inclusive cidades médias, como Vitória da Conquista. Mas mesmo esse valor irrisório não foi utilizado por falta de projetos ou por problemas burocráticos, mas, especialmente, porque na cultura política de obras no Brasil, DRENAGEM não se vê e, portanto, não dá votos.
  3. O cinismo de governadores, prefeitos e secretários ao darem entrevistas jogando a culpa nas vítimas porque construíram casas em áreas de risco. NINGUÉM CONSTRÓI EM ÁREAS DE RISCO PORQUE QUER e sim porque não tem alternativa, dada a carência de políticas habitacionais para a baixa renda.
  4. Obras de contenção de encostas habitadas e de drenagem não são das mais caras, são relativamente simples, mas nunca são feitas. Deveria ser uma prioridade em tempos de mudanças climáticas. O Brasil regrediu nessa área de obras. No começo do século XX, em Santos e no Rio de Janeiro, CANAIS de regulação de águas e de marés foram executados de forma primorosa. Depois dos anos 10 e 20, pouca coisa mais foi feita no tópico de canais bem planejados. Em São Paulo, o prefeito Paulo Maluf construiu dezenas de piscinões que resolveram grande parte dos problemas de drenagem na área central de São Paulo. Mas os problemas hoje estão nas periferias e nas cidades-dormitório, como Mauá.

Enquanto não se resolvem os problemas habitacionais com políticas apropriadas, como a volta de loteamentos para as classes pobres, odiosamente proibidos pela absurda Lei Lehman, que matou uma solução habitacional vitoriosa nos anos 40 a 60 pelos mutirões de vizinhos construindo suas próprias casas, restando como moradia popular os pavorosos conjuntos verticais que fizeram um bilionário FORBES (o dono da MRV), a solução europeia de moradia por aluguel, mantidos os conjuntos como propriedades das prefeituras.

Enquanto isso não for feito a drenagem e a contenção de encostas são obras de engenharia simples, relativamente baratas e que salvariam vidas e esperanças das classes pobres brasileiras. Não há esse problema para os abonados.

 

Andre Motta Araujo

Advogado, foi dirigente do Sindicato Nacional da Indústria Elétrica, presidente da Emplasa-Empresa de Planejamento Urbano do Estado de S. Paulo

6 Comentários

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  1. André quanto ao iten 3 gostaria de fazer adendo. Aqui em BH e redondezas foram e são feitos loteamentos, legais e ilegais, que são verdadeiras obras primas do Urbanismo. Áreas viram favelas sem a mínima estrutura, que a prefeitura poderia ter uma política, se não de impedir a proliferação, de ao menos estruturar minimamente a ocupação.

  2. Prezado André, grande artigo.
    Permita uma observação, como engenheiro:

    Estabilizar encostas, causa dos acidentes terríveis que matam nossos compatriotas e arrasam seu patrimônio, é possível fazer. Há várias técnicas para isso. Estas encostas são as doações à adminsitração pública municipal, obrigatórias pela Lei Lehmann e pelas posturas do GRAPOHAB (órgão estadual que regula loteamentos em SP), que devem existir em todos loteamentos. São cerca de 20% da área total do empreendimento, o que com mais 15% para circulação e sistema viário; totalizam cerca de 1/3 de área doada à municipalidade.
    Estas áreas destinam-se à construção de praças e equipamentos urbanos (escolas, creches, postos de saúde, postos policiais, etc). Sempre ficam nas áreas de declividade mais elevada ou fundos de vale. Como as prefeituras não ocupam as áreas, a população as ocupa.
    Concordo que a falta de propostas que elevem a renda das pessoas, permitindo a aquisição de lotes adequados, é a única proposta decente a ser feita. Mas enquanto isso, façamos as intervenções para IMPEDIR que nossos compatriotas continuem a morrer por descaso, omissão e indiferença. O acúmulo de água no solo potencializa a instabilidade de encostas, e propostas simples (proteção do solo contra escoamentos danosos, estabilização de taludes e boa drenagem resolvem os problemas. Trabalhei há uns 20 anos atrás na Prefeitura de Mauá urbanizando favelas, e foi possível utilizar soluções mutio boas e baratas

  3. O nascimento de bairros populares no arco metropolitano de SP – vídeo do canal youtube da EMPLASA – Empresa Paulista de Planejamento Urbano S/A

    https://www.youtube.com/watch?v=-L1CVRw14J0

    O documentário de 30 minutos abaixo é um síntese explicativa daquilo que foi o fenômeno da emergêncvia milhares de bairros periféricos e populares do arco metropolitano de SP nos anos de 1970. Muitos deses bairros hoje já são de classe média. No entanto, é importante destacar o enorme sacrifício que milhões de populares dispendiam para ter o almejado teto próprio, construido admiravelmente sob o sistema “formiguinha” e emanado sob sentimento de ajuda mútua e do espírito “mutirão”. Vários aspectos apresentados neste post são relevados neste documentário.

    1. Agradeço o comentario, lembrando que um organismo de essencial importancia para o planejamento
      urbano, como a EMPLASA, da qual fui Presidente nos anos 90, tenho sido juntada como arquivo morto
      com outras entidades sem nenhuma conexão (CPOS e CODAG), mostrando o desprezo com essa
      fundamental função do Estado.

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