O primeiro atlas geográfico do Brasil, publicado em 1868

Do Brasiliana USP

O primeiro atlas brasileiro (1868)

O primeiro atlas brasileiro (1868), na Brasiliana USP: Atlas do Imperio do Brazil […]. 1868. Mendes, Candido (org.).

André Nicacio Lima

Um atlas escolar traçando os limites externos e internos do Brasil. Em linhas precisas, separam-se em diferentes cores províncias, comarcas, distritos e dioceses que formam o território nacional. Definida desta maneira, a obra pode parecer banal nos dias de hoje, quando atlas escolares existem nos mais variados formatos e vão perdendo espaço com a generalização do uso da Internet. Não era assim em 1868, ano de sua publicação.

Destinado à instrução pública no Império, o Atlas do Imperio do Brazil foi iniciativa de Cândido Mendes de Almeida, professor de geografia e história de São Luís. A obra impressiona já pela riqueza das fontes utilizadas, listadas num inventário com praticamente tudo que de essencial se tinha produzido sobre o território brasileiro: mapas de todas as épocas e procedências; tratados diplomáticos; legislação; debates parlamentares; relatórios oficiais; itinerários e relatos de viajantes; projetos de estradas e de outras obras; livros de geografia, história e estatística; crônicas de colonos e missionários; estudos das comissões demarcadoras. Como revela o autor nos agradecimentos, o acesso às fontes envolveu contatos políticos e pessoais com os que guardavam documentos então inacessíveis. Abriram suas portas tanto cientistas e estudiosos, quanto altos funcionários da burocracia estatal — destes especialmente os diplomatas e militares, tradicionais detentores do saber sobre o território.

Ocorre que além de professor, Cândido Mendes acumulava outros ofícios, numa trajetória que entrelaçou a dedicação aos estudos e a atuação política — o que, aliás, foi regra geral na elite letrada do Brasil oitocentista. Formado em Direito, ele exerceu diversos cargos na magistratura e na administração pública, além de cinco mandatos como deputado geral entre 1843 e 1871, quando foi escolhido para o senado, nele atuando até a morte, em 1881. Deixou muitas obras, dedicando-se especialmente ao Direito e à Geografia, sendo reconhecido por sua produção nessas áreas.

Assim, o material preparado para fins didáticos era o que de mais completo e de mais preciso havia no Brasil. Obra monumental, síntese de um conhecimento disperso e descontínuo sobre o território, e um grande passo no sentido de tornar público o que, a princípio, se restringia aos gabinetes de diplomatas, administradores e comandantes militares. Cada vez mais aberto à curiosidade do cidadão, o conhecimento geográfico avançava, com o Atlas, para as (poucas) salas de aula do Império.

É evidente que, com tais qualidades, a obra extrapolava o uso didático. A dedicatória do exemplar da Biblioteca Mindlin atesta que ela teve como destino o consulado do Brasil em Portugal. Manuel de Araújo Porto Alegre, conhecido por sua produção literária e artística, assina como secretário daquela repartição. Elaborada para a instrução pública, a obra atendia a demandas do Estado e tinha utilidade nas mãos de particulares, fosse por razões profissionais ou para saciar a curiosidade.

O Atlas é composto por vinte e sete grandes mapas coloridos e em escalas diversas, sendo o primeiro deles um mapa-múndi. Seguem as cartas gerais do Império, com a divisão eclesiástica (por dioceses), político-administrativa (por províncias) e eleitoral (por distritos), além de uma sem subdivisão ou legenda, pois destinada a testar os conhecimentos dos estudantes. Finalmente, são representadas as vinte províncias então existentes, o Município Neutro (a Corte fluminense) e uma província em projeto (a Pinsonia). Ao lado dos mapas principais, constam cartas das viagens de “descoberta” da América e do Brasil, representações das principais ilhas, lagos, montanhas e rios e as plantas das capitais provinciais, da Corte Imperial e de outras localidades. O Atlas inclui também tabelas com dados sobre as províncias, dioceses, distritos eleitorais, comarcas, bem como sobre os países limítrofes, e quadros com o histórico das antigas capitanias.

Cerca de metade das páginas, porém, são ocupadas por textos, sendo estes tão interessantes quanto o conjunto de mapas. Além de citar as fontes, o autor disserta sobre as justificativas e os objetivos da obra e expõe os métodos para a definição dos limites internos e externos do país. Nessa exposição, a imagem cristalizada do território nacional dividido por linhas precisas revela-se inteiramente ilusória. Dentre outras coisas, percebe-se que dos dez países limítrofes, apenas o Uruguai possuía fronteiras demarcadas com o Império, e que havia impasses e litígios importantes — situação ainda mais presente nas divisões internas, por vezes totalmente indefinidas. É também revelador o silêncio do autor quanto à Guerra do Paraguai no ano em que a Tríplice Aliança tomou a ofensiva, até o cerco a Assunción. Ou seja, quando Cândido Mendes traçou uma linha nítida sobre o papel, ela não representava uma fronteira referendada por tratado, menos ainda documentava uma situação de fato. O traço dizia respeito a uma proposta brasileira rejeitada pelo governo de Solano López antes da guerra. Era uma afirmação de soberania no momento em que esta era disputada no campo de batalha.

O autor não esconde o caráter nacionalista da obra ao justificar e definir seus objetivos. A opção por certos contornos em detrimento de outros é também uma escolha pela imaginação territorial que melhor atenda ao “interesse nacional”. Naturalizadas, as fronteiras entram para o conjunto de símbolos que nos definem. Muitos cidadãos não saberiam hoje dizer quem foram os heróis tradicionais da narrativa nacional brasileira. O número dos que não saberiam localizar os contornos do Brasil num mapa é certamente menor, talvez porque sejam as ideologias geográficas essenciais para a conformação da nossa identidade nacional.

Mas a imaginação nacional não apenas elabora o passado, como projeta o futuro. Crítico ferrenho da organização territorial de seu tempo, Cândido Mendes também utiliza seu Atlas para propor ou reforçar ideias para uma nova geopolítica. Sugere, dentre outras coisas, o redesenho de todos os limites internos (dos quarteirões às províncias), a transferência da Corte para a região do Araguaia e a criação imediata da província da Pinsonia. Originalmente denominada Oyapockia e tendo por capital Macapá, ela havia sido defendida anos antes pelo autor no parlamento. Incluída no primeiro Atlas escolar brasileiro, a Pinsonia documenta uma imaginação territorial que não se limitava a representar o presente e construir um passado. Projetava no futuro uma nação territorialmente nova, prática recorrente desde a geração que construiu o Estado nacional, ela mesma herdeira da vigorosa tradição geopolítica do Reformismo Ilustrado
português.

Sugestões de leitura:
BORGES, Maria Eliza Linhares. Atlas históricos: com eles também se escrevem memórias nacionais. In: DUTRA, Eliana R. de Freitas; MOLLIER, Jean-Yves. (Org.). Política, Nação e Edição. O lugar dos Impressos na Construção da Vida Política. Brasil, Europa e Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, 2006, p.369-390.

GUERRA, Amanda Estela; SANTOS, Márcia Maria Duarte dos. O “Atlas do Império do Brazil”: uma proposta de definição dos limites do Brasil no século XIX. IV Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia Histórica. Porto: 2011.

MAGNOLI, Demétrio. O Corpo da Pátria. Imaginação Geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: EDUNESP/Moderna, 1997.

MORAES, Antônio Carlos R. Ideologias geográficas. 5ª ed. São Paulo: Annablume, 2005.

SENRA, Nelson. História das Estatísticas Brasileiras. Vol.1. Estatísticas desejadas (1822-1889). Rio de Janeiro: IBGE. 2006.

André Nicacio Lima é mestre e doutorando em História pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de História do Brasil na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

Luis Nassif

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