Os 20 anos do fim da URSS

Do Valor

Ex-URSS continua com déficit democrático

Neil Buckley | Financial Times
19/08/2011

Pouco depois das seis da manhã de 19 de agosto de 1991, Vytautus Landsbergis, líder pró-independência da Lituânia, recebeu um telefonema. Um colega deu-lhe notícias de Moscou. Houvera um golpe de Estado; o líder soviético, Mikhail Gorbachev, estava sob prisão domiciliar.

Landsbergis temia que algo assim acontecesse desde que a Lituânia se tornara o primeiro Estado soviético a declarar independência, não reconhecida por Moscou, um ano antes. Ele logo recebeu um telefonema do distrito do Exército soviético do Báltico. “Nós somos o poder agora”, disse a voz.

No entanto, pouco mais de 48 horas depois, o golpe fracassou; em poucos meses, também a União Soviética foi ao colapso. Landsbergis colocou a Lituânia no caminho da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental) e da adesão à União Europeia. Aos 78 anos, ele agora tem assento no Parlamento Europeu. Sua visão sobre a transformação da Lituânia é, porém, obstinada. “Isso poderia ter acontecido ainda mais cedo”, diz o deputado Landsbergis. “Para isso, bastaria a Rússia ter obtido sucesso em construir uma democracia europeia.”

Seu comentário enfatiza uma característica marcante das mudanças ocorridas no antigo bloco oriental. Duas décadas após o fracassado golpe, seu legado é muito mais indefinido do que as revoluções que varreram o Leste Europeu comunista dois anos antes. 

Apesar de catástrofes, como as guerras na antiga Iugoslávia, a maioria das ex-economias socialistas fora da União Soviética são hoje democracias de mercado; sete delas são membros da União Europeia (UE).

A maioria das 15 repúblicas que formavam a União Soviética também trocou o planejamento centralizado por economias de mercado. No entanto, com exceção da Lituânia e de seus vizinhos bálticos, Letônia e Estônia, a maioria dos ex-Estados soviéticos ainda opera sob sistemas autoritários, permeados de corrupção. A Cortina de Ferro pode ter sido sucateada, mas a Europa tem hoje uma divisão mais ao leste, menos bem definida, mais porosa e fluida, porém, ainda assim, real, entre democracias e países que de fato nunca se democratizaram.

Esses países constituem lições potencialmente importantes para as atuais democracias incipientes do norte de África e para a comunidade internacional, num momento em que buscam-se maneiras de apoiá-las.

A mais recente classificação de países democráticos da Economist Intelligence Unit posiciona seis ex-repúblicas soviéticas como regimes “autoritários” – sendo que duas delas, o Uzbequistão e o Turcomenistão, estão classificadas entre os quatro regimes mais repressivos do mundo. Outros quatro países, entre eles a Rússia, são considerados regimes “híbridos”, com graves deficiências na cultura política e no funcionamento do governo.

No entanto, todos os Estados ex-socialistas que não faziam parte da União Soviética estão nas duas categorias mais altas da EIU – democracias “plenas” ou “imperfeitas” – com exceção da Albânia, um dos mais pobres 20 anos atrás, e da Bósnia-Herzegovina, devastada pela guerra.

“A maioria dos países pós-soviéticos são Estados corruptos que têm como finalidade permitir que as elites enriqueçam explorando a corrupção”, diz Anders Aslund, economista sueco que assessorou os governos russo e ucraniano no início da década de 90. “O autoritarismo é o meio de garantir que as elites possam manter esse estado de coisas.”

Nikolai Petrov, do think-tank Carnegie Moscow Center, diz que, com algumas exceções, as ex-repúblicas soviéticas fora do Báltico dividem-se em dois grupos. Primeiro, nos Estados ex-soviéticos da Ásia Central, como o Cazaquistão e o Uzbequistão, líderes da era soviética adaptaram velhos métodos para permanecer no poder. Um segundo grupo realizou eleições livres até surgir um líder que “expulsou todos os demais”.

Isso se aplica, diz Petrov, Belarus sob Alexander Lukashenko, qualificado pelos EUA como “o último ditador da Europa”; e se aplica, de forma um pouco menos repressiva, à Rússia sob Vladimir Putin, ex-presidente e hoje primeiro-ministro. 

Também a Ucrânia, após relativa abertura política depois da Revolução Laranja, em 2004, está se movendo em direção similar sob o presidente Viktor Ianukovich, que derrotou Iulia Timoshenko, ex-premiê e colíder da Revolução Laranja, nas eleições do ano passado. Timoshenko está, agora, sob julgamento, sob a questionável acusação de firmar com Moscou um acordo de compra de gás economicamente prejudicial à Ucrânia.

Algumas das razões pelas quais os ex-Estados soviéticos acabaram tomando esse rumo derivam de fatores culturais, históricos e geográficos; outras resultam de diferenças na forma da transição pós-comunismo. A diferença mais básica é o tempo de permanência sob o comunismo. Na maioria das repúblicas da URSS, o tempo foi de sete décadas após a revolução de 1917; os países do Leste Europeu ficaram sob a influência soviética somente após a Segunda Guerra Mundial. A maioria das ex-repúblicas soviéticas também não tinha uma história como nações independentes, tendo antes feito parte do império czarista russo.

Países socialistas da Europa Central, como a Hungria e a Polônia, conservaram elementos de iniciativa e propriedade privadas, e vestígios de sociedade civil independente. A Igreja Católica polonesa proporcionou um ponto focal alternativo [para a população] e uma bússola moral.

“A influência da religião é subestimada”, diz Radoslaw Sikorski, ministro das Relações Exteriores polonês. “As pessoas presumem que basta criar as instituições certas [para que a democracia tenha sucesso], mas as instituições só funcionam se houver pessoas éticas para dirigi-las.”

Não é coincidência que os Estados bálticos, anexados pela União Soviética apenas em 1940, tenham seguido um caminho mais próximo ao modelo centro-europeu. Eles não se consideravam “repúblicas soviéticas, mas sim países europeus empenhados em restaurar a democracia, e não em construí-la da estaca zero”, diz o deputado Landsbergis.

Graças a esses fatores, o Ocidente sempre considerou os Estados não soviéticos como parte da Europa. Isso não valeu para a União Soviética, diz Olexii Haran, um cientista político em Kiev. “No caso da Ucrânia, ficou para nós a tarefa de provar que não somos a Rússia.” Disso resultou que o Ocidente proporcionou muita ajuda, e rápida, para a transição, ao Leste Europeu. Mas, diz Aslund, em parte devido à relutância entre as altas autoridades em Washington, os americanos “não deram nenhuma ajuda à reforma russa durante o primeiro ano”.

A UE também rapidamente abriu seus mercados aos vizinhos orientais, proporcionando um destino para as exportações, o que ajudou a dar um empurrão inicial em suas economias. Em meados da década de 90, a Ucrânia estava caminhando rumo a negociações de adesão à UE, como muitos desses países, provendo um modelo, objetivo e incentivo para reformas necessárias às ex-repúblicas soviéticas.

“Recém começáramos a executar cirurgias em nós mesmos – simultaneamente em nossos cérebros, nossos estômagos, em tudo”, brinca Alexander Rondeli, da Fundação Georgiana de Estudos Estratégicos e Internacionais. “E é realmente difícil, sem um apoio generoso.”

Para complicar as coisas, acrescenta Aslund, muitos ex-Estados soviéticos permaneceram na zona do rublo até 1993. Fora do controle dos jovens reformadores que cuidavam da economia, o banco central da Rússia estava cunhando mais moeda e subsidiando empresas estatais. Isso ajudou a alimentar a hiperinflação e tornou impossível uma estabilização macroeconômica.

As reformas foram também mais lentas nas ex-repúblicas soviéticas do que na Europa Central, frequentemente devido a um consenso mais débil a seu favor. Empresários privados e funcionários desejosos de enriquecer encontraram maneiras de explorar a situação – e conceberam de modo imperfeito os programas de privatização – acumulando enormes riquezas. Como resultado, uma oligarquia emergente constituída por clãs empresariais e políticos foi capaz de capturar o Estado na Rússia e em outros países pós-soviéticos. Eleições eram cada vez mais manipuladas para manter o poder nas mãos de um grupo ou, na melhor das hipóteses, transferi-lo de um grupo para outro.

Iaroslav Romanchuk, um economista dissidente que participou das eleições presidenciais disputadas em Belarus em dezembro, diz que o efeito foi corrosivo. “Quando as pessoas viram que sob a bandeira da liberdade temos degradação moral, enorme desigualdade, absurdos exemplos de propriedade sendo roubada por alguns autonomeados políticos e burocratas, evidentemente disseram: ‘Se isso é democracia e capitalismo, nós não queremos’.”

Apesar dos reveses, a causa da democracia pós-soviética não está morta. As revoluções “coloridas” de Geórgia, Ucrânia e Quirguistão, entre 2003 e 2005, ajudaram a inspirar a Primavera Árabe, que ainda poderão reverberar no antigo império soviético. O país que atrai maior atenção da comunidade internacional é Belarus. À violenta repressão à oposição após as eleições, seguiu-se uma crise econômica resultante da elevação, por Lukashenko, de pensões e salários para níveis insustentáveis às vésperas das eleições. Manifestações pacíficas vêm sendo realizadas. Mas Romanchuk sugere que a Rússia proverá uma ajuda condicionada: a compra de empresas estatais para prover dinheiro a Minsk, o que poderia ajudar a Lukashenko a se manter no poder.

As repúblicas da Ásia Central, com líderes envelhecidos e populações jovens de maioria muçulmana, refletem os mais fortes paralelos com o Oriente Médio. Porém, no país mais repressivo, o Uzbequistão, o islamismo radical está fervilhando, apesar das tentativas de “mão pesada” do autocrata Islam Karimov de suprimi-lo. Hoje com 73 anos, ele pode não ser sucedido por uma democracia, mas por instabilidade ou até a tentativa islâmica de tomada do poder.

O Ocidente ainda está apostando suas esperanças na Ucrânia e na Geórgia, apesar da reversão na revolução ucraniana e de acusações de que o presidente georgiano, Mikheil Saakashvili, apesar de reformas pró-mercado e anticorrupção, tem utilizado métodos beirando o autoritarismo.

Tentativas de colocar os dois Estados a caminho de ingressar na Otan se dissiparam após o conflito da Geórgia com a Rússia em 2008. Mas esforços estão em andamento para uma integração mais íntima com a UE. A Polônia está funcionando como ponta de lança de um programa visando oferecer a meia dúzia de ex-países soviéticos, em troca de reformas, o tipo de cooperação da qual beneficiou-se duas décadas atrás.

Como ocupante da presidência rotativa da UE, a Polônia está avançando com os esforços para concluir com a Ucrânia um acordo de “associação” com a UE e um de livre comércio. Isso é tema de controvérsia, porém, após Ianukovich ter revertido as conquistas democráticas. Sikorski, ministro das Relações Exteriores polonês, disse que o acordo de comércio extrairia a Ucrânia da órbita da Rússia.

À Geórgia será oferecida a chance de iniciar conversações semelhantes numa cúpula especial da UE com participação de países ex-soviéticos, em Varsóvia, no próximo mês. Caso algum desses países alcance uma democracia duradoura, tornando-se a primeira república pós-soviética fora do Báltico a consegui-lo, isso poderia gerar um poderoso modelo para os outros.

Mas a Rússia não abandonará as tentativas de manter as outras repúblicas sob seu domínio. Com Belarus e o Cazaquistão, os russos formaram uma união aduaneira que, a partir do próximo ano, será aprofundada na forma de um mercado comum – e Putin tentou seduzir a Ucrânia a aderir com ofertas de gás barato.

Outras capitais ex-soviéticas estão receosas de uma “retomada”, pelo presidente dos EUA, Barack Obama, das relações americanas com Moscou e da preocupação dos EUA e da Europa com os seus próprios problemas econômicos. O efeito, diz Landsbergis, da Lituânia, é que o Ocidente concedeu efetivamente aos líderes russos a “zona de interesse privilegiado” que estes exigiam. Duas décadas após o golpe de Moscou, isso poderá atrapalhar a adoção da democracia por muitos e muitos anos.

“A Rússia está afirmando abertamente que todos esses países pertencem à zona russa. Mas o Ocidente deve lembrar-se de uma coisa”, diz o deputado Landsbergis. “Na velha gíria soviética, ‘zona’ significava prisão.”

(Tradução de Sergio Blum) 

É hora de mudar, diz Gorbachev

Para o último líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev (foto), a Rússia hoje precisa de um novo comando político e de eleições livres para sair do retrocesso. “Precisamos de uma mudança na alta liderança. Chega uma hora em que você tem que sair da mesmice”, disse em entrevista coletiva sobre os 20 anos da tentativa de golpe que iniciou o processo de dissolução da URSS. Para ele, as “atuais propostas políticas e o atual governo são um caminho para trás”. No entanto, Gorbachev, que está com 80 anos, admite que Putin teve um papel importante quando assumiu o poder, ao evitar que a Rússia fosse tomada pelo caos. “Pelo que fez no seu primeiro mandato, se tivesse desistido e não feito mais nada, já teria um lugar na história.” Segundo Gorbachev, que no passado já declarou que o seu maior feito foi ter colocado a Rússia na “estrada para a liberdade”, o país ainda não atingiu a democracia plena. Apesar de popular no Ocidente, Gorbachev é muito mal visto na Rússia, onde muitos o culpam pelo dissolução caótica da URSS. 

“Maldição do petróleo” favorece governos autoritários

Financial Times
19/08/2011 

Entre os maiores fatores que impedem o desenvolvimento da democracia na ex-União Soviética há duas palavras: petróleo e gás.

Das seis repúblicas pós-soviéticas classificadas como autoritárias pela Economist Intelligence Unit (EIU), três – Cazaquistão, Turcomenistão e Azerbaijão – possuem grandes reservas de hidrocarboneto. A Rússia, com as maiores reservas, é um Estado “híbrido”, com características autoritárias.

Até certo ponto, todas sofreram com os sintomas clássicos da “maldição do petróleo”. As receitas obtidas com o petróleo e o gás possibilitaram às lideranças de compadrio se estabelecer ou manter um controle rígido, ao mesmo tempo em que compravam a oposição aumentando os salários e as aposentadorias. Além do Cazaquistão, que realizou algumas reformas favoráveis aos mercados, a riqueza energética também atrasou o crescimento de outros setores.

A Rússia talvez seja o melhor exemplo. Ao longo da década de 1990, quando os preços do petróleo estavam baixos, o país foi uma democracia, embora altamente imperfeita. Nos primeiros três anos da última década, sob o presidente Vladimir Putin, as reformas liberais prosseguiram. “Mas finalmente os preços do petróleo subiram e a Rússia ficou rica demais”, afirma Nikolai Petrov, do centro de estudos Moscou Carnegie Center, “e o governo decidiu que não havia mais necessidade de novas reformas, uma vez que eles estavam recebendo muito dinheiro do nada”.

O petróleo e o gás vêm tendo um papel importante não só nos países que os possuem, mas também como uma alavanca que a Rússia vem usando para manter sua influência sobre os países vizinhos que carecem desses recursos.

A Ucrânia, a maior ex-república soviética em população depois da Rússia, depende do gás natural russo barato para mover sua indústria pesada. Duas vezes desde 2006 a Rússia cortou o fornecimento no inverno, em meio a disputas de preços. Em Belarus, a menor das três repúblicas eslavas, os subsídios à energia fornecidos pela Rússia vêm mantendo o autocrático Alexander Lukashenko no poder. Eles também vêm obrigando Lukashenko, apesar das relações pessoais não muito boas com Putin e com o presidente russo, Dmitri Medvedev, a continuar sendo basicamente um vassalo de Moscou.

A indústria bielorrussa, assim como a da Ucrânia, se beneficia do gás barato russo. A Belarus também recebe petróleo barato da Rússia, o processa em duas refinarias construídas durante o regime soviético, e vende os produtos para a Europa ocidental com lucros gordos. “Quem sabe como a Ucrânia ou Belarus teriam se desenvolvido se a Rússia não tivesse exercido tal influência usando o petróleo e o gás?”, especula Petrov.

Pela mesma medida, porém, a falta de receitas com energia vem impedindo os líderes da Ucrânia de estabelecer um regime tão autoritário quando Moscou. Analistas locais citam isso como um importante fator limitador às tentativas do presidente ucraniano, Viktor Ianukovich, de criar um sistema ao estilo de Putin.

Enquanto isso, na Rússia, partes das elites política e empresarial vêm percebendo que, sem uma modernização para alimentar outros setores, elas correm o risco de cair no mesmo tipo de estagnação econômica do período soviético. Medvedev se apresenta como um reformista que vai tentar ajudar a Rússia a escapar da maldição do petróleo, se conseguir um segundo mandato como presidente no ano que vem. Mas as receitas do petróleo poderão ajudar novamente a impelir Putin, hoje primeiro-ministro, de volta ao Kremlin. 

Luis Nassif

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