Politizar os afetos faz-se necessário, por Bruno Vieira

Foi quando, com seis anos de idade, eu me peguei raspando as minhas pernas com as unhas, numa vontade decidida de me tornar branco para parar de ouvir dos meus colegas de jardim que eu era como o Cirilo (o menino negro da novela Carrossel, o mais bobo e humilde da turma, apaixonado por uma menina branca)

do Brasil Debate

Politizar os afetos faz-se necessário, por Bruno Vieira

No ano de 1991 (se minha memória não falha), o Brasil tomou conhecimento de uma novela que iria encantar toda uma geração com o seu enredo. Seu argumento eram as histórias das crianças do segundo ano do ensino fundamental na Escola Mundial. Seus protagonistas eram Laura, Cirilo, Maria Joaquina, Carmen, Jaime e a inesquecível Professora Helena.

Sim, se você é nascido na década de 1980 deve se lembrar de Carrossel e da sua afetuosa porém controversa trama. Eu era uma das crianças que mais adorava assistir à novela. Era exibida pelo SBT na parte da tarde para a noite (se minha memória não falha). E foi nessa época, 1991, que tomei ciência da minha condição pessoal.

Um ano depois, eu comecei a estudar onde hoje se localiza uma Unidade Municipal de Educação Infantil (UMEI) – antigamente, convencionava-se chamar essas escolinhas aqui em Belo Horizonte de “jardim”. Eu estudava no jardim mais próximo ao meu bairro, que ficava 12 quarteirões afastado de casa (se minha memória não falha). Meu pai me levava e buscava na sua Caloi Barra Forte, bicicleta da época em que ainda não existia essa moda de pensar na bicicleta como meio de transporte – eram épocas de vacas mais magras que gordas.

Por estudar nesse jardim, com seis anos de idade (sou de junho de 1986, se minha memória não falha) eu tomei o primeiro conhecimento do que viria a ser um sentimento interior de raiva e angústia. Por eu ser negro, era lógico e notório que os outros garotos do jardim iriam associar o personagem Cirilo à minha pessoa.

Cirilo, que na trama era o mais bobo da turma. Cirilo, o mais pobre e humilde, que não tinha condições de entregar seu amor à sua amada Maria Joaquina. Maria Joaquina, essa guria, que era rica e branca, sempre desdenhava do amor que Cirilo tinha a oferecer. Cirilo, bobo e ingênuo, corria atrás de Maria Joaquina como se estivesse montado num cavalo correndo num turfe. Maria Joaquina, do alto da sua arrogância de menina “bem criada” – e bem mimada –, sabia se safar desse amor platônico.

Eu me sentia como o Cirilo, via a sua necessidade de sair daquela sua condição de pobreza. E mais: da sua condição racial, que era o que inerentemente o afastava da Maria Joaquina. Tá, tudo bem, eu não gostava da Maria Joaquina, mas eu percebia que ela era o padrão a ser seguido – não o Cirilo, que era que nem eu, inclusive. Eu não queria ser visto como aquele “negrinho”.

Foi quando, com seis anos de idade, eu me peguei raspando as minhas pernas com as unhas, numa vontade decidida de me tornar branco para parar de ouvir dos meus colegas de jardim que eu era como o Cirilo. Quanto a isso, minha memória não falha.

Da primeira à quarta série, desenvolvi uma paixonite platônica aguda grave por uma menina da minha turma. Coincidentemente, a menina era branca e loira, tal como a Maria Joaquina de Carrossel. Pulando para a quarta série, no meio do semestre, chegou uma aluna de classe média que (sei lá por que) veio estudar na nossa escola, um educandário estadual relativamente pequeno.

Claro que todos os meus olhos se voltaram para aquela que eu considerava a musa da sala – imagino que vocês já devem ter imaginado o fenótipo dela: branca e loira, assim como a Maria Joaquina. Cheguei ao ridículo de sair da escola um dia cantarolando uma canção italiana brega do Peppino di Capri que meu pai escutava e cujo nome era o nome da guria em questão.

É sobre isso que pretendo falar. Este texto não tem por finalidade ser um roteiro de regras a serem cumpridas para que se adentre ao universo do “politicamente correto”, como alguns gostam de dizer. Tampouco é um guia de comportamento que deve ser seguido à risca. Pretendo, meramente, só fazer uma explanação sobre o que é o afeto em uma sociedade tão complexa como a nossa.

E aí eu te pergunto: essa história de, enquanto criança negra, só “me apaixonar” por um único fenótipo feminino (por algum acaso, o fenótipo branco-loira) é tão somente “algo da minha cabeça”? Essa história de Cirilo e Maria Joaquina nunca sai de moda. A princípio, não haveria uma regra geral que orientasse nossos sentimentos. Se a gente gosta dessa ou daquela pessoa? “Não sei, só sei que foi assim”, responderia Chicó se João Grilo o questionasse sobre essa questão. Mas acho que alguns aspectos da nossa afetividade merecem, sim, ter destaque e processo crítico.

Depois de velho (estou quase chegando aos 30) e de levar vários escrachos, apanhar muito de várias pessoas (que hoje, inclusive, deixaram de ser pessoas amigas e se afastaram por causa dos meus vacilos), pude perceber em que redemoinho eu me encontrava. Desenvolvi o que se convencionou chamar “Síndrome de Cirilo”, termo alcunhado pelas Blogueiras Negras em um texto da Mabia Barros.

Complementando, eu posso dizer também que se trata um sentimento de negação sobre a sua (no caso, minha) condição e o caloroso afeto de se enquadrar em “outra seção” que não àquela onde você se encontra. Uma angústia misturada com raiva. Um comportamento aflorou em mim de não assumir meu corpo tal como ele era – rechonchudo, com a bunda grande e língua travada. E, claro, negro.

É errado um Cirilo se apaixonar por uma Maria Joaquina? Eu creio ser um reducionismo gritante se nos atentarmos apenas a essa pergunta – e, se dicotomicamente, dizemos sim ou não. A questão que deve ser engendrada é: o que faz o Cirilo se apaixonar apenas pela Maria Joaquina?

Que questões estão colocadas atrás do fermentado desse sentimento que faz com que se sinta a necessidade de anular seu corpo tal como é a fim de equiparar com um padrão disforme? Por que só enxergamos a Maria Joaquina como padrão a ser seguido, se apregoamos aos quatro ventos que o mundo é um lugar diverso?

Na novela, vemos um Cirilo que nega a si mesmo enquanto garoto pobre e negro. A negação não se dá (como eu fiz aos seis anos de idade – e gostaria de reiterar isso, aos seis anos de idade – e de novo, aos seis anos de idade) utilizando uma estratégia de embranquecimento físico da pele.

A sua negação é espiritual – e eu prefiro usar esse termo em vez de psicoemocional porque espiritual converge boa parte daquilo que acredito: que estamos num amálgama social, político, econômico e cultural que nos é subjacente à nossa inconsciência. Seu espírito não se vê relacionado com o seu corpo – donde vem a estranheza e o afeto pelo diferente não pelo anseio do desejo da diferença, mas pelo anseio do desejo da anulação de tal “corpo estranho”.

E espiritual também é a relação que o ser humano africano estabelece consigo e com o mundo – não falo somente da espiritualidade religiosa, manifesta no candomblé e afins, mas na própria constituição da ideia africana do que significa ser uma pessoa. Diferentemente do pensamento ocidental – cogito, ergo sum, ou seja, penso, logo existo; sentença na qual se manifesta uma carga alta de individualidade, singularidade e particularidade dos sujeitos –, o pensamento africano concebe o “indivíduo” como parte de um todo, de uma coletividade que é maior que a soma das partes.

Ser humano em tal visão é “ser uma ‘pessoa’ que é um sol vivo, possuindo um espírito (essência) cognoscente e cognoscível por meio do qual se tem uma relação duradoura com o universo total”, como bem disse o Dr. Wade Nobles (1). Quando o Cirilo se nega, ele diz não a toda essa espiritualidade inerente à ancestralidade africana e abre as portas para o individualismo euro-caucasiano – o que o faz adoecer e perder o sentido sobre si próprio.

Faço-me prolixo, eu percebo. Mas só faço isso para que o título do texto se faça inteligível. Quando falo da necessidade de “politizar os afetos”, não falo de segregação somente à nossa casta social. Não falo de guetizar relacionamentos ou de confrontar em polos opostos posições sobre ser Cirilo e ser contra Maria Joaquina.

Temos que necessariamente sair de um paradigma reduzido, reducionista e bi-polar ao abordarmos a questão afetiva dos nossos relacionamentos. Entender que o fato de você ser branco e conviver afetivamente com pessoas negras não te faz menos racista do que uma pessoa declaradamente racista. Que os nossos desejos e afetividades são também uma construção embasada pela relação dialética, dialógica e diuturna que o capital (lato sensu) tem nas nossas vidas, nos nossos corpos, nos nossos jeitos de ser.

É muito mais fácil consumir aquilo que nos é fartamente oferecido – no caso, uma cultura centrada no ser humano euro-caucasiano. Como bem disse a Mabia Barros no seu texto, há uma “historicidade das relações ‘amorosas’”: “estar com uma mulher branca é mudar de status, é evoluir, é ser aceito na roda dos ‘bem nascidos’”. Se dizemos que “gosto não se discute”, eu vejo a necessidade de pararmos de, obstinada e cegamente, apontar tal ditado como única possibilidade possível para entendimento e interpretação dos nossos afetos – pois estes também são uma construção social.

Nossas preferências são, desde muito cedo, talhadas exatamente por meio de tal construção. São as mídias, são os gibis, são as músicas, tudo isso calcado num padrão de beleza euro-caucasiano. É preciso entender que os nossos gostos, que tanto dizemos que “não se discute”, são construídos socialmente. É preciso entender que o nariz de batata é preterido ao nariz fino. Que o cabelo liso é priorizado ao crespo. E assim vai, mas não fazemos isso apenas pelo nosso querer, mas fazemos isso também como forma de demonstrar a influência externa nos nossos quereres.

“Pele clara e cabelo liso tornaram-se, e de muitas formas ainda são, os distintivos inquestionáveis da bondade e da beleza. A cor clara e a proximidade da brancura tornam-se o padrão do ser humano. Tornam-se a licença para o privilégio baseado na condição racial e a inegável evidência de que se é valoroso e bom. Por ser uma negação fundamental do mérito e do valor intrínseco da pessoa, o resultante ‘desejo de se aproximar da brancura’ se torna uma condição psicológica debilitante, patológica e destrutiva. ‘Embranquecimento’, ‘blanqueamiento’, vergonha da cor, ‘quero ser branco’, ódio de si – tudo isso resulta numa condição psicológica movida pelo desejo disfuncional de ser branco.” (Dr. Wade Nobles)

Não tem resposta à pergunta se pode ou se não pode um Cirilo ficar com uma Maria Joaquina. E vai ficar sem resposta, porque para cada relacionamento existe uma relação que, esta sim, precisa ser alvo da reflexão. Eis o mistério da fé que eu gostaria de colocar.

A questão principal é pensar por onde nossos afetos andam. Se nós somos um constructo do que sentimos por dentro com o que é construído fora, então podemos dizer que o Cirilo gostar da Maria Joaquina não é somente coisa da cabeça dele, mas sim coisas da cabeça dele mixadas com um tanto de informação que chega (direta ou indiretamente) a ele. E vice-versa, porque o fetiche é construído e existe.

Não é proibido que ambos se relacionem, porém estamos num estágio do universo que não é possível mais que absolutamente tudo seja apenas da ordem do inconsciente. Precisamos urgentemente sair desse orbe do inconsciente coletivo e dialetizar, polemizar e refletir constantemente sobre nossos afetos. Se ambas as pessoas (independente da cor da pele) estiverem dispostas a fazerem isso, estamos ganhando uma filigrana nessa batalha homérica.

Para aprofundar nessa questão, indico fortemente os textos da Mabia Barros (no Blogueiras Negras) e o da Daniela Gomes (no AFROatitudes). Há também um documentário realizado a partir da abordagem do livro “Pele negra, máscara branca”, do Frantz Fanon que vai ao encontro desse princípio de discussão que quis propor aqui. E reitero: a proposta aqui é meramente trazer à reflexão elementos que, de tão arraigados, viraram rotina na nossa vida.

“Quando me amam, dizem que é apesar da cor da minha pele. Quando me detestam, se justificam dizendo que não é pela cor da pele. Em uma ou outra situação, sou prisioneiro de um círculo infernal”. (Frantz Fanon)

Nota

Wade N. Nobles, Saktu Sheti: retomando e reapropriando um foco psicológico afrocentrado. Texto integrante do livro “Afrocentricidade”, quarto volume da Coleção Sankofa, organizada pela profa. Elisa Larkin Nascimento, publicada pela Selo Negro Edições.

Bruno Vieira é jornalista

Redação

5 Comentários

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  1. Prezado Bruno,
     
    Texto

    Prezado Bruno,

     

    Texto impecavel, e devo dizer toca no cerne da questão….se voce se interessa por diversidade cultural, sexual…..e zumbis, assista ao seriado “Walking Dead” que está na sua sexta temporada e acaba de quebrar mais um paradigma em relação as relações afro-americanas (não vou usar o termo interracial que é fora de proposito), principalmente por ser veiculado em um canal de Tv a cabo considerado de “direita”. Vá e veja….

  2. a última frase do fanon é de

    a última frase do fanon é de uma crueldade extrema, parece que sem saídas,

    a não ser a política ou filosófica,

    ambas, parece-me saídas para ele…..

  3. Mais do mesmo

    Nada de novo no front. É engraçado que sempre quando se aborda esse tipo de assunto sempre se procurar colocar o homem negro como o protagonista de tudo, muitas vezes colocando-o como vilão da história ou então como o alienado ou sem consciência do mundo que o cerca. Como se a questão do amor e do sexo fosse uma coisa meramente unilateral e que dependesse única e exclusivamente da vontade de uma das partes (no caso o homem negro).

    Nunca vejo ninguém falar por exemplo falar por exemplo sobre as mulheres não negras e suas razões pelas quais se interessam por caras negros sejam, para namoro, casamento, sexo casual , o que for, Claro não incluo aqui os famosos clichês envolvendo pagodeiros, jogadores de futebol e suas mulheres. O universo dos relacionamentos é muito maior que isso. 

    A propósito: se o autor do texto só se interessava por mulheres loiras, problema dele. Na prática, os homens negros, em geral são bem mais ecléticos do que isso. 

  4. Não é só uma questão racial, é socioeconômica também!

    Eu entendo perfeitamente a argumentação do autor, no entanto faço uma ressalva, com base na minha experiência própria: mesmo se eu tivesse feito um esforço na minha juventude para buscar mulheres afrodescendentes para me relacionar, o fato é que, na região em que eu morava, elas praticamente não existiam, ao menos não no meu círculo de convivência. Então a opção por uma mulher branca (ou até mesmo oriental, muito comum no interior do Paraná) era natural, a não ser que eu optasse por, para evitar um relacionamento “interracial”, buscar um relacionamento “interssocial”. O problema aí é que, sem nenhum preconceito, muitas vezes a diferença de classes leva também a uma enorme diferença de interesses e afinidades (sem contar que os próprios lugares de convívio são diferentes). Talvez se eu tivesse nascido na Bahia ou no Rio de Janeiro a história teria sido diferente …

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