A gourmetização da infraestrutura e dos serviços públicos, por André Castro Carvalho

Atualmente, muitos produtos tradicionais do mercado de alimentação estão surgindo em uma versão mais sofisticada. Picolés e sorvetes de massa, cervejas artesanais, bolos, brigadeiros, pastéis, tapiocas, chocolates, hambúrgueres, pizzas, cafés, tubaínas: hoje temos os produtos chamados “convencionais” e aqueles rotulados como gourmet ou premium, com ingredientes finos e de qualidade – e preço – superior.

Na infraestrutura e nos serviços públicos, tem-se seguido também essa lógica nos últimos anos. Existem as rodovias gourmet, duplicadas e com várias faixas de rolamento, e aquelas de baixo custo, com poucas faixas e engarrafamentos gigantescos. Há agora a possibilidade de existirem terminais portuários privados gourmet, fora da área do porto organizado (e sem a incidência do OGMO), em contraposição a terminais portuários na área de porto organizado, sujeitos a todos os tipos de entraves burocráticos que vêm causando os gargalos na infraestrutura logística do País. Temos também os aeroportos com terminais gourmet parecidos com os existentes na Europa, e outros de gestão deficitária que mais parecem rodoviárias mal cuidadas e abandonadas. Há linhas de metrô gourmet que nunca interrompem a operação por motivo de greve, e há aquelas que deixam a população “na mão” ano após ano – sem falar nas constantes falhas operacionais. Há companhias de saneamento com serviços gourmet e índices de desperdício de água de nível europeu, e outras que têm índices de perda próximos a 50%, causando constantes transtornos de falta d’água à população.

Os protestos de junho de 2013, em que um dos motes era lutar por melhoria nas infraestruturas e serviços públicos, demonstraram o início de uma transição irreversível – um fenômeno que vem sendo estudado pela literatura latino-americana: a passagem de uma sociedade de baixo custo para uma sociedade de classe média cada vez mais exigente e consciente da precariedade dos serviços públicos e da infraestrutura oferecida à sociedade brasileira. Com a elevação do poder de consumo desse segmento social, adveio a plena ciência de que, em outros países do mundo, o que é oferecido à população após o pagamento de seus impostos é de qualidade muito superior ao que se tem por aqui.

E nem é preciso ir muito longe para constatar essa realidade: basta uma viagem ao Chile, nosso vizinho “de rua”, para que se resgate o orgulho que é se locomover nos transportes públicos oferecidos por lá; por aqui, por outro lado, uma questão cultural de certa “vergonha” na utilização de serviços públicos, aliada à qualidade questionável em tudo o que é oferecido a nós, faz com que a sociedade cada vez mais se afaste do Estado e busque formas privadas de resolver esse déficit oriundo do Estado. Aliás, observem que contexto interessante: uma atriz famosa da Rede Globo foi ridicularizada recentemente nas redes sociais por estar utilizando transporte público no Rio de Janeiro. Entretanto, a primeira coisa que um turista brasileiro faz quando visita a Europa é andar de metrô e ônibus e, não raro, postar um selfie do feito nas redes sociais.

É o “serviço público ostentação”: no Brasil, deve ser evitado; na Europa, é glamour e deve ser ostentado. Mas não estou querendo julgar ninguém por esse tipo comportamento: isso é natural, haja vista que se um produto oferecido é de má qualidade, qualquer um terá vergonha de dizer aos outros que comprou uma porcaria, pagou caro e foi feito de bobo. Ninguém mais aguenta ser feito de bobo com o oferecimento de serviços públicos e infraestrutura porcaria, sem qualquer qualidade e conforto.

Isso mostra que hoje a infraestrutura e os serviços públicos estão cada vez mais orientados para o lado da demanda (demand side) – em contraponto ao supply side, que enfocava muito mais a questão da oferta à iniciativa privada –, o que mostra que a provisão de infraestrutura e os serviços públicos têm sido orientados sob a ótica do desenvolvimento econômico e social, em atendimento às demandas da sociedade.

Vivemos também, de forma cada vez mais exacerbada, o clássico trade-off (ou, mais especificamente, dicotomia) entre priorizar manutenção (fator qualidade) ou a expansão (fator quantidade) das infraestruturas. Se uma rodovia é estendida em quilômetros, a quantidade é priorizada. Se essa mesma rodovia, de pista simples, é duplicada, temos o fator qualidade evidenciado.

O problema é que o Estado brasileiro parece não ter se atentado ainda a esse novo paradigma para a prestação dos serviços públicos e da infraestrutura no País. Ao manter o “fetiche pelo menor preço” nas concessões e permissões de serviços públicos, priorizando justamente esse fator como critério de julgamento das propostas, a qualidade é fatalmente menosprezada – ela perde espaço no trade-off mencionado acima. Você passa a oferecer um produto convencional, não premium, à população.

O Brasil, sendo um dos poucos países – senão o único – a selecionar empresas para prestar serviços públicos à população por base em menor preço, parece negligenciar essa nova tendência na sociedade. Prioriza concessão comum por menor preço, incluindo poucos investimentos para a melhoria da qualidade do serviço a ser prestado, quando poderia se valer de Parcerias Público-Privadas, com projetos mais complexos e oferecendo uma tarifa subsidiada na sua modelagem. Prioriza contratação por preço unitário para controlar o custo quando poderia priorizar as por preço global ou a contratação integrada do RDC, muito mais orientadas para a eficiência e entrega de resultados. Modela os serviços públicos sempre pensando primordialmente no valor das tarifas, e se esquece de apropriar os ganhos com as chamadas receitas acessórias, que atualmente representam importante fatia comercial desses projetos. Prioriza o método do leilão em concessões para arrecadar recursos e fazer superávit primário quando se deveria priorizar uma escolha pela técnica e grau de transferência de tecnologia. Prioriza a prestação direta de serviços por estatais, sujeitas a todas as “intempéries políticas” possíveis, ao invés de deixá-las com uma função mais fiscalizatória e de planejamento do setor respectivo. Inclui a remuneração variável ao desempenho do contratado, mas só impõe ônus de reduzi-la, e nunca aumentá-la ao prestador, a fim de que ele se torne cada vez mais eficiente.

Fato é que, assim como os chocolates refinados, os serviços públicos gourmet ou premium também vão custar um pouco mais caro à sociedade. Cabe ao Estado perguntar: “Brasileiro, o que você quer para você e para seus filhos? Infraestrutura e serviços públicos ‘baratos’ – que na prática não são nada baratos –, feitos de gordura vegetal e cheios de açúcar, ou infraestruturas com ingredientes de qualidade e que não façam mal à saúde, porém um pouco mais caros?”.  Creio que seria uma boa discussão para uma pauta “pós-junho de 2013” em 2015.

 

André Castro Carvalho é mestre e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Autor do livro “Direito da infraestrutura: perspectiva pública”, publicado pela Quartier Latin. 

Redação

13 Comentários

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  1. Opa !

    Os serviços telefonicos moveis e internet bandalarga sao os mais caros do mundo e coinicdentemente estao entre os piores do mundo .

    palpite infeliz na copa do mundo nosa pior linha d metro foi muito elogiada pela gringolandia !

  2. É o “serviço público

    É o “serviço público ostentação”: no Brasil, deve ser evitado; na Europa, é glamour e deve ser ostentado. Mas não estou querendo julgar ninguém por esse tipo comportamento: isso é natural, haja vista que se um produto oferecido é de má qualidade, qualquer um terá vergonha de dizer aos outros que comprou uma porcaria, pagou caro e foi feito de bobo

     

    COm todo o respeito, mas natural uma OVA. Por mais que saibamos que os servicos nao sao de qualidade, e eu concordo plenamente com o autor de que se deveria se preconizar o mais eficiente em termos de qualidade do que o mais barato nas licitacoes, a questao para esse comportamento estah mais na criminalizacao de se POBRE. Segundo os liberal uma escolha. Nessa religiao, os “vencedores meritocraticos”  acreditam que os pobre, quando eram apenas luzes antes de encarnar, tiveram a escolha de abrir ou nao a porta para desembocar na vida de pobreza. Mas isso eh outro ponto. Ser Pobre no Brasil se tornou “erro”. Tant eh que POBRE eh usado como xingamento por muitos, ou seja, no sentido de pejarotivar o individuo, como feito por certo ex-presidente e ex-sociologo (se um dia isto o foi). Eh a babaquice e mesquiharia brasileiras sempre existentes, e que o PT fez sair de baixo do tapete. Uma das formas de desvalorizar a ascenscao social eh criando novos termos como “emergentes” ou dar conotacoes mais  pejorativas as coisas e pessoas que ameacam certo status quo.

  3. “O Brasil, sendo um dos

    “O Brasil, sendo um dos poucos países – senão o único – a selecionar empresas para prestar serviços públicos à população por base em menor preço, parece negligenciar essa nova tendência na sociedade.”

     

    E ainda assim, temos um sério problema de excluirmos boa parte da população com os altos valores das tarifas. Como ele explica isso? É necessária essa “gourmetização” dos serviços públicos? Tudo dependeria de milionária PPP para ser executado? Seria essa a solução mais adequada?

    “Prioriza a prestação direta de serviços por estatais, sujeitas a todas as “intempéries políticas” possíveis, ao invés de deixá-las com uma função mais fiscalizatória e de planejamento do setor respectivo.”

    E como que ficariam os lugares onde a iniciativa privada não tivesse interesse? Ele acha por acaso que a FEDEX ou outra empresa do tipo vai se animar de entregar correspondência em favela ou em algum lugar remoto no interior do Brasil? 

     

     

    A questão do orgulho tem uma explicação bem mais simples – complexo de viralatas.

    1. Concordo com você…

      Cara você expressou exatamente o que eu sentia mas não sabia dizer assim que cheguei ao final do texto! A verdade é que o cara não anda de ônibus e fica aí viajando… sem usar transporte público KKK

  4. pois é  maoria das

    pois é  maoria das deficencias citadas aí são

    provenientes da decantada “jestão” tucana em sp.

    o cara pede obras mais caras, gourmetizadas, perfumadas.

    essencias, meu caro, essencias,

    não perfumarias e cosméticas tucanóides….

     

  5. Tentativa de aumentar as margens de lucro?

    Em todo produto gourmet, as margens de lucro são maiores, por consequencia, as comissões ou taxas de sucesso?

    1. Que comissão, que taxa de
      Que comissão, que taxa de sucesso?

      Vc não entendeu o assunto em questão. Estamos falando de prestação de serviço público por empresas privadas.

      1. Parece que quem nao entendeu
        Parece que quem nao entendeu foi o senhor.Veja que o articulista representa um tal de instituto. Provável eh que seja apenas um lobista.O criterio do menor preco fixa no edital do leilão os parâmetros técnicos da obra. Leva quem apresentar o menor preço.

        1. Quem não entendeu foi

          Insisto…

          preço foi o primeiro e único parâmetro das primeiras concessões e o resultado não foi bom.

           

          Hoje, preço, não é o único parâmetro porque, com os dados das primeiras concessoes, pode-se comparar serviços oferecidos.

          Portanto, hoje, há o parâmetro qualidade do serviço.

           

          O assunto são parâmetros para concorrência por serviços públicos: preço e qualidade.

          Isso pe novidade e é sobre a novidade que ele fala.

  6. O pessoal vai entender o
    O pessoal vai entender o artigo quando a primeira conta de luz de 2015 chegar.

    Lembra aquela Tarifa de Iluminação pública?
    Não lembra quanto paga?

    A partir de 2015 vc vai saber o valor!

  7. Culpado

    Acho que devemos olhar no espelho e veramos que é o culpado por esta situação. Pois o povo brasileiro se conforma com pouco ou nada, e se conteta com obras e serviços mea boca.

    O caso mais recente de serviço porco e que custou bilhoes foi a construção de estadio do engenhao no RJ, que apos 6 anos de sua inauguração teve que ser fechado pois estava em risco de desabar.

  8. O problema não está na licitação pelo custo menor

    O problema não está na licitação pelo menor custo, neste modelo basta especificar a qualidade do serviço ou produto desejado, se básico ou mais sofisticado.

    No Brasil, o problema são as licitações onerosas. Que ganham aqueles licitantes que mais pagam o governo pela licença, independente da especificação feita.

    Essa arrecadação na essência funcionam como tributos, encarecem o serviço e seguem para os cofres públicos sem nenhuma obrigação de contrapartida pelo Estado, nem tão pouco se revertem em serviços e bens públicos na atividade licitada.

    Por isso nossos serviços são caros e ruins. Uma parte do valor pago refere-se a taxa de licença amortizada, além dos altos impostos.

    O segundo problema das licitações é se elas são feitas a valor justo ou se há vícios e apadrinhamento que favorecem um desvio, normalmente encarecendo o serviço em detrimento do usuário, em troca de favores ocultos. As regras devem garantir uma disputa justa, permitir muitos participantes, igualdade no acesso às informações etc.

    Valor justo é um conceito preço feito em condições de eficiência de mercado, onde haja vários competidores, independentes, conhecedores do assunto, sem informações preferenciais, etc.

    A questão da legitimidade e da lisura das licitações é mais importante do que a questão de privatizar ou não.

    Sérgio Torggler

     

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