A anulação da política, por Franco Cassano

Da Carta Maior

Assim o indivíduo sem sociedade anulou a política 

Há cada vez menos lugares de formação das demandas coletivas e cada vez mais interesses privados. Por que as democracias estão perdendo força? E como eles podem reencontrá-la? Há a necessidade de superar a ideia de que só a afirmação do indivíduo é o que importa. A irresponsabilidade do capital financeiro tornou-se indecente, e a timidez com que ela é enfrentada pelos governos é cada vez menos aceitável. O artigo é de Franco Cassano.

Os fluxos do capital financeiro se subtraem cada vez mais do controle dos Estados nacionais e, livres de qualquer vínculo, multiplicam desmedidamente sua própria força. A política, ao invés, permanece ancorada na velha casa do Estado nacional, obrigada a enfrentar, com orçamentos cada vez mais reduzidos e contestados, as pressões que vêm dos cidadãos. No novo quadro da economia globalizada, a sua tarefa principal não é o de dirigir, mas sim de garantir um certo grau de coesão social; ela não pode mais cultivar projetos ambiciosos, mas apenas remendar e tampar.

É então que a política e os seus intérpretes começam a perder autoridade e qualidade: as suas “desenvolturas” ética, que as ideologias haviam permitido resgatar e transformar, não podem mais se esconder debaixo da saia de uma grande justificação. E essa política degradada e improdutiva parece ser, ao senso comum, cada vez mais apenas o instrumento através do qual uma “casta” defende a sua própria autorreprodução. É uma espécie de crime perfeito: a decadência da política, que nasce sobretudo do fato de que o grande capital a abandonou à sua sorte, é tranquilamente imputada ao insaciável apetite dos seus protagonistas, enquanto o verdadeiro poder goza da máxima liberdade de movimento e de todos os privilégios.

Mas seria profundamente equivocado limitar-se a observar só o que acontece nas altas camadas da sociedade, o conflito entre as elites. Se a contraofensiva liberal tivesse ficado nas instâncias do novo poder não teria conseguido se afirmar, como aconteceu depois, e teria se encontrado diante de uma imensa massa de inimigos. Em vez disso, ela desbaratou o adversário porque se mostrou capaz de produzir uma forte e capilar hegemonia. A grande narrativa que ela propõe sabe falar também ao povo, porque colocou no centro do imaginário o tema da afirmação individual, do sucesso: para realizar os nossos sonhos, não precisamos dos outros, mas só de uma grande confiança em nós mesmos. O vínculo com os outros pode apenas nos bloquear, enquanto, se formos completamente indivíduos, um mundo inteiro está à disposição.

Não é por acaso que, precisamente nos anos 1970, esse mito conquistou o centro da cena: Rocky Balboa e Tony Manero são os protagonistas de dois filmes famosos, duas fábulas populares sobre o tema do sucesso e da redenção individual. Stallone e Travolta (testemunhas perfeitas enquanto filhos de imigrantes) se tornam estrelas porque os seus filmes falam de heróis que provêm das camadas baixas da sociedade. E, mesmo que seja verdade que apenas “um em cada mil consegue”, são milhares que sonham em conseguir, especialmente quando as outras vias não parecem viáveis.

É essa irrupção do indivíduo que completa de baixo aquele redimensionamento da política ao qual o grande capital havia iniciado de cima. “A sociedade não existe, existem apenas os indivíduos”, dizia Thatcher, e a única mediação possível entre indivíduos sozinhos diante do próprio destino é a do mercado. O primado do mercado une os capitais sem fronteiras e os sonhos dos indivíduos.

E uma sociedade assim, que não vê mais contradições sociais, mas só sucessos ou derrotas individuais, não parece precisar mais da política. Do Quarto Estado de Pellizza da Volpedo (imagem acima) passamos às solidões de Hopper (imagem ao lado). Os projetos e o coração dos homens se transmigraram para fora da política. A esta última cabe apenas a tarefa de garantir a liberdade de movimento dos indivíduos e das mercadorias, e um grau mínimo de ordem pública. A sociedade civil não é mais o lugar de formação das demandas coletivas, mas sim a trama dos interesses privados, não é a ágora, mas sim o mercado.

Mas, depois de três décadas de hegemonia incontestada, esse tratamento fundamentado na liberdade dos capitais e do indivíduo, começa a dar sinais de desgaste. A nossa sociedade é atravessada por dilacerações e por desigualdades crescentes produzidas em grande parte pelos jogos imprudentes do capital financeiro. Mas a hegemonia liberal começa a se desgastar também nas camadas baixas, porque a carta do individualismo não consegue mais suportar o peso que lhe foi descarregado em cima, não consegue mais subir mais o plano inclinado das desigualdades crescentes. Certamente, ela ainda consegue manter os homens longe uns dos outros, impedir que reconheçam o que eles têm em comum, mas remunera cada vez menos.

Também não será a ideologia fraca e ambígua da meritocracia que reparará o edifício. Certamente, ela pode lubrificar os canais da mobilidade social, mas se trata de muito pouco, já que tanto rigor comovido só serve para cooptar os melhores nas áreas mais fortes, enquanto deixa cair com a outra mão todo o resto, as Grécias do mundo. Mas são justamente as Grécias que desmascaram o jogo, que se joga só até quando apraz os mais fortes. Se tivermos a força de não deixá-las sozinhas, poderiam se tornar o início de uma outra história.

Por seu lado, o indivíduo, obrigado a viver em uma constante precariedade e incerteza, começou a suspeitar que não é mais aquele que consegue, mas sim um dos 999. Também por isso, de vez em quando, uma política difundida parece reaparecer na sociedade: por manchas, por ondas que, embora se dispersando, mostram que as rachaduras do edifício em que vivemos estão se ampliando, embora a orquestra tenha a ordem de continuar tocando.

No entanto, essas tensões fluem novamente muito frequentemente sobre si mesmas, não conseguem decolar e se expandir, não conseguem construir um quadro teórico e prático estável para a política, um novo paradigma de referência. E aqui voltamos ao que se disse no início: enquanto a política se confrontar com as tensões sociais permanecendo isenta de todo peso sobre as grandes decisões, não conseguirá produzir soluções e acabará se unindo à espiral de descrédito.

Se quiser iniciar novamente, a política democrática deve fazer com que todos entendam qual é o ponto crucial: ela deve voltar a ter poder, construir mecanismos de controle sobre os movimentos do capital financeiro, pôr fim à inação deste último com relação aos sofrimentos daquele planeta sobre o qual paira como uma ave predadora. Ela deve mudar a sua relação de força com a economia, reconstruir uma relação equilibrada entre capitalismo e democracia, entre consumidores e cidadãos, entre liberdade e igualdade, entre o presente e o futuro.

Trata-se de um passo nada simples: um paradigma em declínio, como se sabe, continua tendo influência e sendo popular, enquanto aquele que está em gestação é visível apenas a poucos, que é fácil de confundir com visionários. Mas a direção de marcha está traçada porque a irresponsabilidade do capital financeiro tornou-se indecente, e a timidez com que ela é enfrentada pelos governos do mundo é cada vez menos aceitável.

O que parece inegável é que confiar na política sem colocar a questão da sua reunificação com o poder é tempo jogado fora. Quem hesita e tem medo lembra aquela poesia de Brecht em que os habitantes de uma casa em chamas, ao invés de sair, demoram perguntando a Buda que tempo está fazendo lá fora, se está chovendo ou ventando. Para eles, responde Buda, não temos nada a dizer.

(*) Sociólogo italiano, professor da Universidade de Bari.

(**) Tradução de Moisés Sbardelotto para o IHU-Online/Unisinos.

Luis Nassif

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