Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O Ceticismo Gnóstico de Jean Baudrillard (parte 2): os simulacros nada têm a esconder

 

Sucesso de público e de crítica, as palavras “simulacro” e “simulação” foram a parte mais mal compreendida do pensamento de Jean Baudrillard. Ele jamais procurou encontrar a “realidade” ou a “verdade” por trás das ilusões do mundo como faz a crítica ideológica tradicional. Seu projeto era de um ceticismo mais radical: denunciar os discursos que afirmam dizer sobre alguma coisa, mas que, na verdade, apenas escondem que nada têm a esconder, seja na Política, Economia ou na Mídia.

Simulacro e simulação tornaram-se os mais conhecidos conceitos dentro do pensamento de Baudrillard, chegando até ao mainstream hollywoodiano na célebre passagem do filme Matrix (1999) onde o protagonista, Neo, esconde programas piratas dentro de um livro oco cuja capa é do célebre livro “Simulacros e Simulações”. Talvez o sucesso de público desses conceitos se deva menos à compreensão dentro da teoria não materialista da linguagem defendida pelo autor e, muito mais, pela sua tradução feita pelo tradicional discurso da crítica da ideologia como falsa consciência. Muitos autores ignoram a idéia da simulação original, preferindo interpretar a bem conhecida três ordens do simulacro através de uma leitura ortodoxa como abaixo:

“Baudrillard argumenta que há três níveis na simulação, onde o primeiro nível é uma óbvia cópia da realidade e o segundo nível uma cópia tão boa que suspende as fronteiras entre realidade e representação. O terceiro nível é a da produção da realidade sem se basear em qualquer elemento do mundo real. O melhor exemplo é provavelmente a ‘realidade virtual’ onde um mundo é gerado por meio de linguagens ou códigos.”[1]

É como se, no início existisse a realidade e o signo que fizesse sua cópia por meio da representação.  A partir daí é como se a espiral dos simulacros e da simulação se apossasse dos signos, corrompendo-os, instaurando uma representação ideológica do mundo. O simulacro e a simulação, além de serem tomados como sinônimos, passam a ser interpretados como uma disjunção entre forma e conteúdo, infraestrutura e superestrutura. Ou seja, estes conceitos são aprisionados dentro da crítica da dissimulação, da manipulação,  da mentira, da denúncia contra todas as formas de falsa consciência.


Porém, como vimos até aqui, não existe uma teoria da representação em Baudrillard. Portanto, não há propriamente uma crítica ideológica, pelo menos não no sentido de crítica à falsa consciência.

“A ideologia é, de fato, todo o processo de redução e abstração do material simbólico numa forma – mas esta abstração redutora dá-se imediatamente como valor (autônomo), como conteúdo (transcendente), como representação de consciência (significado)”[2]

A crítica ideológica tradicional encontra-se no paradigma da dissimulação: denunciar que por trás do discurso que esconde existe algo real. Há algo para ser escondido. Ao contrário, a crítica ideológica baudrillardiana está no campo da simulação: denunciar os discursos que afirmam dizer sobre alguma coisa, mas que, na verdade, apenas escondem que nada têm a esconder. A simulação está nas próprias origens da linguagem, na sua própria abstração redutora da dimensão simbólica, negando a transitividade sujeito/objeto e instaurando a precessão do modelo e da binariedade do código.


O Duplo Sentido da Simulação


 

Os simulacros religiosos: a imagem é
reflexo de uma realidade profunda

 

Segundo Baudrillard a simulação, embora esteja a serviço do aniquilamento da dimensão simbólica e a favor da ordem do signo nos sistemas, testemunha a própria ilusão do signo e da representação. A representação tenta absorver a simulação ao rotulá-la como falsa representação, mas encobre o fato de que a simulação envolve todo o edifício da representação como um simulacro.


Para compreender este duplo sentido da simulação (estar a serviço da reprodução dos sistemas e, simultaneamente, testemunhar a miragem da representação) precisamos entender a sutil diferença entre simulacro e simulação. Simulação tem a ver com a sedução original do mundo e da própria linguagem. É o pressuposto Maniqueísta gnóstico de Baudrillard da luta e reversibilidade entre o Bem e o Mal. Já o simulacro envolve as diferentes maneiras ou fases dessa simulação se manifestar no transcorrer da história.


“Seriam essas as fases sucessivas das imagens que conduzem à formação dos simulacros: 

– ela [a imagem] é o reflexo de uma realidade profunda  

– ela mascara e deforma uma realidade profunda

– ela mascara a ausência de realidade profunda

– ela não tem relação com qualquer realidade: ela é o seu próprio simulacro puro”[3]

Na primeira fase temos o simulacro como boa aparência: a certeza de que um signo possa remeter para a profundidade do sentido, o partido da representação. Existe uma suposta equivalência do signo e do real. Alguma coisa serve de caução para essa troca: Deus, Realidade, Valor de Uso, etc. O realismo de uma fotografia baseia-se na certeza da troca entre a foto e a pessoa fotografada. O Real é a sua caução. Da mesma forma, se temos uma nota de um real (um signo monetário) sabemos que ela é verdadeira por possuir uma equivalência correspondente ao seu valor no Banco Central. O valor econômico é a caução.


A segunda fase corresponde ao simulacro como falsa aparência ou ao sortilégio. Ainda dentro do regime da representação, é o momento em que o signo dissimula, mente ou deforma uma realidade profunda. Uma fotografia pode ser manipulada através de processos de retocagem seja analógica ou digital. Uma nota de um real pode ser falsa. Nestes casos, pressupõem-se existir ainda uma realidade a qual se renuncia ao produzir uma falsa aparência. É como se ocorresse uma clivagem entre o signo e a realidade. Mas ainda existe a oportunidade de desmascarar esta mentira e revelar-se o segredo.


A terceira fase é a do simulacro como ilusão de aparência. O signo simula ter algum referencial ou estar ancorado em um objeto real quando, na verdade, tudo não passa de um blefe. Sua aparência é a da representação, mas nada consegue do que remeter-se a si mesmo. Não há profundidade, mas apenas um discurso metonímico: signos que espelham outros signos, cópias de cópias que se refletem mutuamente. A fotografia não consegue mais capturar o real a partir do momento em que a pessoa sabe que ali está a câmera e posa para ela, simulando personas ou atitudes. Quem representa o quê? O dispositivo fotográfico representa a pessoa diante dela ou aquela espelha a presença do próprio dispositivo? Ao mesmo tempo, qual a diferença entre uma nota de um real falsa e verdadeira em uma ordem econômica onde a riqueza não é mais produzida a partir da atividade produtiva, mas a partir de papéis ou títulos artificialmente valorizados em bolhas especulativas nas bolsas de valores e falcatruas contábeis em empresas? A nota falsa remete à nostalgia de um referente que não existe mais nas notas verdadeiras, e as notas verdadeiras remetem-se às falsas para afirmar, de forma negativa, a sua “realidade”.


A quarta fase é a do simulacro como pura aparência. Fase decisiva para Baudrillard por ser uma fase terminal a qual se refere como o “assassinato do real”, “o crime perfeito” ou à “greve dos acontecimentos”: é o regime dos simulacros puros, o momento em que a própria realidade é substituída pela sua contrafação, o simulacro substitui o real criando a hiper-realidade. Se na fase anterior o simulacro blefava (ou simulava), ou seja, ainda havia no horizonte a nostalgia de um referente real a que ele queria se assemelhar, agora o mundo torna-se cada vez mais parecido com modelos artificialmente produzidos, como os parques temáticos, por exemplo. De tanto o indivíduo posar para a câmera simulando atitudes ou personas cujos modelos vêm da mídia, tais modelos acabariam confundindo-se com a própria personalidade criando uma situação onde se esquece onde termina a realidade e começa a ficção, o Eu e o não-Eu. Distinção ociosa para o indivíduo que não se importa mais com isso: inconsciente ou imaginário são substituídos pela “brancura total” do modelo[4]


Ou, então, na infogenética onde o modelo algorítmico ameaça substituir o próprio processo evolutivo. O DNA humano poderá ser sequencializado para, a partir daí, criarem-se matrizes supostamente perfeitas para gerarem cópias ou clones. A replicação substituirá a evolução. O modelo que precede o real não necessita mais do antigo horizonte referencial para a simulação. Roga-se como o único princípio de realidade, sem mais o intercâmbio entre real e imaginário. Transparência absoluta: o simbólico e o imaginário são absorvidos pelo modelo e o seu código.


O “assassinato do real”


 

Guerra do Golfo (1992): o “não acontecimento”

 

Para demonstrar esta fase terminal do “assassinato do real” Baudrillard nos oferece os casos da cobertura televisiva da Revolução Romena em 1989 e da Guerra do Golfo em 1992 fatos que, para ele, se inscrevem no regime do virtual, dos “não acontecimentos”. Durante a cobertura televisão da revolução romena contra a ditadura de Ceausescu mostraram-se imagens da suposta descoberta de um ossário de mais de quatro mil vítimas da ditadura. Outros corpos teriam sido dissolvidos em ácido. O total de mortos chegaria a 60.000 ou 70.000. Tudo era uma encenação: os cadáveres em lençóis brancos não eram das vítimas dos massacres de 17 de dezembro de 1989, mas mortos desenterrados do cemitério dos pobres, oferecidos à necrofilia da TV.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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