Por que os Estados Unidos e Israel precisam da guerra

Produção incessante de conflitos não é acidente – mas o centro da diplomacia e da própria política interna dos EUA

Benyamin Netanyahu e Joe Biden. Foto: Lior Mizrahi/Getty Images
Benyamin Netanyahu e Joe Biden. Foto: Lior Mizrahi/Getty Images

Por Jonathan Ng, com tradução de Outras Palavras

Em junho, a jornalista suíça Maurine Mercier encontrou diversos cidadãos dos Estados Unidos lutando na Ucrânia sob a fachada de “trabalho humanitário”. “Todos eles são veteranos, ex-soldados que combateram em todas as recentes guerras americanas: a Guerra do Golfo, o Iraque, o Afeganistão”, relata ela. Muitos sofrem de transtorno de estresse pós-traumático, carregando os fantasmas incorporados de conflitos passados e feridas psíquicas profundas.

Um veterano entrevistado por Mercier admite ser viciado em combate, lançando-se em missões suicidas na linha de frente. Ele já matou 13 pessoas na Ucrânia. A proximidade da morte permite que se sinta vivo, o choque de adrenalina o leva a “esse belo espaço escondido”, onde “as cores são mais brilhantes” e os sons são “diferentes, vibrantes”. Em casa, ele não sente um senso de pertencimento. Mas na Ucrânia, “há algo”.

Em um nível fundamental, esses guerreiros sem rumo são o símbolo de uma sociedade viciada em guerra. Eles refletem as tensões que o autor e ativista anti-guerra Norman Solomon desvenda em seu brilhante novo livro, “War Made Invisible”, que examina as causas profundas e os custos da intervenção dos EUA. Solomon oferece uma estrutura poderosa para entender crises geopolíticas, bem como os custos invisíveis, mas duradouros, do militarismo.

Enquanto a guerra na Ucrânia continua, Solomon destaca três facetas subjacentes do poder dos EUA especialmente úteis para interpretar o momento atual: uma intelligentsia incorporada, uma economia que exporta violência e a infraestrutura de um império global.

Mobilizando Mentes

O livro de Solomon revela a proximidade perturbadora entre a classe dominante e a mídia corporativa desde a Guerra do Vietnã, revelando como o “quarto poder” sustenta as suposições que tornam a intervenção possível na Ucrânia e em outros lugares. “A essência da propaganda é a repetição”, argumenta ele. “As frequências de certas suposições misturam-se em uma espécie de ruído branco”, condicionando o povo dos EUA a apoiar operações militares que ele nunca vê ou de fato entende.

Isso nunca foi mais claro do que durante a invasão do Iraque em 2003. Oficiais na coalizão militar liderada pelos EUA preocupavam-se em privado, com o risco de os jornalistas perceberem que não tinham “nenhum ‘fato matador’” que “provasse a necessidade de confrontar Saddam [Hussein]”. No entanto, o New York Times ecoou afirmações falsas de que o Iraque possuía armas nucleares e aplaudiu ativamente o esforço de guerra. Seu colunista Thomas Friedman chegou a defender o envio de soldados “de casa em casa de Basra a Bagdá”, em uma exibição nua de poder militar, enquanto “recomendava” aos iraquianos: “chupem aí!”.

De fato, em toda a paisagem midiática, intelectuais compromitidos mobilizaram suas canetas para solidificar o apoio público à guerra. ABC, NBC, CBS e PBS distorceram sua cobertura: nas duas semanas antes da invasão, as redes ouviram apenas um convidado que questionou a guerra entre 267 entrevistas. A MSNBC até cancelou o programa de Phil Donahue depois que o proeminente âncora questionou as motivações do governo Bush para a intervenção.

Em vez de incentivar a reflexão, a mídia corporativa reduziu a guerra a espetáculos sem sangue de poder patriótico e realizações tecnológicas. Solomon observa que o Pentágono “incorporou” cerca de 750 jornalistas, integrando-os diretamente na arquitetura do esforço de guerra.

Depois de promover a invasão do Iraque, muitas das mesmas vozes agora defendem uma maior intervenção da OTAN na guerra na Ucrânia. O New York Times chama o “apoio dos EUA à Ucrânia” de um “teste de seu lugar no mundo no século 21”. A maioria das empresas de mídia parece ignorar as semelhanças entre as duas guerras de agressão. No entanto, os paralelos são inescapáveis: Em maio, o ex-presidente George W. Bush erroneamente denunciou o presidente russo Vladimir Putin por sua “invasão totalmente injustificada e brutal do Iraque”(!), antes de esclarecer que estava se referindo à Ucrânia.

Ao ecoar os funcionários do governo, a mídia corporativa empresta à propaganda governamental a aparência de convicção privada e verdade objetiva. “No geral, os EUA foram condicionados a aceitar guerras contínuas sem realmente saber o que estão fazendo com pessoas que nunca veremos”, conclui Solomon.

Em particular, a cobertura da imprensa sobre a guerra na Ucrânia projeta a ilusão de consenso, mesmo à medida que o apoio público ao aumento militar da OTAN diminui. Ao apagar a dissidência, os conglomerados de mídia escondem os custos cruéis da guerra e o sistema imperial que a conduz, lucrando com conflitos ao vender narrativas que o tornam invisível.

Miséria Comercializada

De muitas maneiras, o militarismo é uma forma de guerra de classes. “As gordas margens de lucro obtidas pelas empresas que fornecem ao Pentágono e agências afins”, explica Solomon, agravam a desigualdade econômica e desviam recursos de programas sociais. Na prática, a guerra é perpétua porque é lucrativa, enriquecendo uma elite firmemente enraizada no complexo militar-industrial.

Confirmando a tese de Solomon, o Departamento de Defesa publicou um estudo de referência sobre contratados militares em abril que registrou “retornos de mercado excepcionais”, incluindo um aumento nas margens operacionais (lucro como porcentagem da receita) de 7-9% para 11-13% nas últimas duas décadas. Fabricantes de armas superaram pares comerciais devido a contratos governamentais que garantem lucros e fluxo de caixa.

Apesar de um aumento nos dividendos e recompras de ações de 3,7% para 6,4%, a indústria na verdade diminuiu o investimento em operações comerciais. As empresas recusaram-se a reinvestir os lucros em pesquisa, direcionando a receita, ao invés disso, para seus acionistas. Auditores compararam a enorme transferência de recursos para os investidores a “comer a semente”, “prejudicando as perspectivas futuras por consumir em excesso recursos críticos em lucros de curto prazo”.

Além de devorar a receita do governo, os investigadores também reclamam que as empresas se envolvem em manipulação de preços flagrante. O ex-diretor de Preços de Defesa Shay Assad relata que a “exploração de preços que ocorre é inaceitável” e generalizada. A Lockheed Martin e a Boeing cobraram fortunas do Estado pelo míssil PAC-3, obtendo lucros de 40% em vez dos 10-12% legais, de acordo com um relatório do “60 Minutes”. Durante a Guerra do Iraque, o TransDigm Group recusou-se a fornecer válvulas críticas para helicópteros Apache antes de aumentar os preços em 40%- uma prática que os auditores chamam de “extorsão”.

A concentração de poder nas mãos de conglomerados de defesa e a guerra na Ucrânia incentivam a exploração de preços. “Para muitas dessas armas que estão sendo enviadas para a Ucrânia agora, há apenas um fornecedor”, disse o ex-diretor de Preços de Defesa Assad ao “60 Minutes”. “E as empresas sabem disso.”

Enquanto isso, os contratados militares estão usando a Ucrânia e outros mercados estratégicos como campos de testes para sistemas de armas. O general Robin Fontes e Jorrit Kamminga, que dirigem a empresa de consultoria em armas RAIN, argumentam na revista National Defense que “a Ucrânia é um laboratório” para o futuro da guerra: “um esforço incessante e sem precedentes para ajustar, adaptar e melhorar sistemas habilitados por inteligência artificial…”. Mobilizando software de IA, empresas como a Planet Labs e a BlackSky Technology fornecem informações em tempo real aos soldados, funcionando como extensões dos EUA no esforço de guerra ucraniano, ao mesmo tempo em que criam um ambiente de combate fluido e rico em informações.

Neste mês, o governo Biden aprovou até mesmo bombas de fragmentação para a Ucrânia, depois de sugerir anteriormente que seu uso constituía um “crime de guerra”. As forças ucranianas e russas já as utilizam em combate, violando uma convenção internacional que proíbe explosivos indiscriminados. Em conflitos anteriores, os investigadores alegaram que as empresas ocidentais as fabricavam em formas lúdicas para atrair e ferir civis – incluindo crianças.

No entanto, para os fabricantes de armas, o Oriente Médio continua sendo o laboratório de armas por excelência. Israel foi o primeiro país estrangeiro a receber o F-35 Lightning, e seus pedidos financiaram o desenvolvimento da aeronave de combate. Em 2014, as forças israelenses arrasaram áreas inteiras da Palestina com os jatos, enquanto ajudavam a Lockheed Martin a aprimorar seu design. Durante a ofensiva, os EUA reabasteceram imediatamente os estoques de munição de Israel depois de bombardear uma escola primária, permitindo que suas forças superassem a potência de fogo do Hamas em uma proporção de 440 para 1.

Pouco antes de seus ataques em maio de 2023, os pilotos israelenses realizaram um “exercício em grande escala” nos F-35 com seus colegas americanos na base da Força Aérea de Nellis, em Nevada. “É uma rara oportunidade para combatentes de ambos os países integrar nossas capacidades mais avançadas”, exclamou o coronel Jared Hutchinson, comandante dos EUA que supervisiona a iniciativa.

Depois disso, Israel bombardeou Gaza com munições fornecidas pelos EUA, incluindo uma bomba Boeing GBU-39 que destruiu um prédio de apartamentos – matando várias pessoas, incluindo uma jovem que se preparava para seu casamento. A campanha militar danificou 2.943 unidades habitacionais, usando ataques “desproporcionais” que a Anistia Internacional considerou crimes de guerra.

Em vez de minar as relações, os fabricantes de armas dos EUA e Israel transformaram crimes em argumentos de publicidade. Apenas um mês depois, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, a Elbit Systems e a Israel Aerospace Industries participaram do Salão Aéreo de Paris para fechar novas vendas, orgulhando-se de que suas armas eram “testadas em combate”. É significativo que o Haaretz chame os territórios ocupados de “uma sala de aula” para o exército “testar seu equipamento”, que é amplamente subsidiado pela ajuda dos EUA.

O dinheiro continua a fluir. Solomon relata que os fabricantes de armas gastaram US$ 2,5 bilhões em lobby nas últimas duas décadas, financiando as campanhas de legisladores-chave, como o presidente do Comitê de Serviços Armados da Câmara, Adam Smith.

Ao globalizar o complexo militar-industrial, a classe dominante tornou a guerra ao mesmo tempo permanente e distante, sustentando a capacidade formidável de fazer guerras dos EUA com conflitos estrangeiros. Aliados como a Ucrânia e Israel tornam-se mercados e argumentos de venda para equipamentos testados em batalha. A agitação geopolítica sustenta a prosperidade dos conglomerados enquanto devora recursos para programas sociais e os mais pobres.

Imperialismo 100% mercenário

Por fim, a classe dominante torna a guerra invisível usando recrutas anônimos e empresas de contratação de mercenários para manter a infraestrutura difusa de um império global. Na década de 1970, o exército fez a transição para uma “força totalmente mercenária” para enfraquecer o movimento anti-guerra e isolar as forças armadas do escrutínio social. “O recrutamento do exército aprendeu a vender o serviço militar ao lado de sabão e refrigerantes no mercado de consumo”, observa a historiadora Beth Bailey.

Solomon enfatiza que os recrutadores têm explorado os vulneráveis, prometendo que “se alistar significa abrir portas para melhores oportunidades”. Ao introduzir incentivos econômicos e eliminar o recrutamento obrigatório, os funcionários criaram uma classe de guerreiros isolada do público em geral. O Pentágono agora a mobiliza para guerras que a maioria do público dos EUA nunca testemunhará, minimizando antecipadamente o revertério político.

À medida em que a desigualdade econômica aumenta, um analista da Instituição Brookings destaca que o exército é “um dos últimos redutos da mobilidade social para a classe média”, atraindo soldados com cuidados de saúde e mensalidade universitária gratuita. Ainda assim, o exército enfrenta uma escassez crônica de pessoal, incentivando os funcionários a visar crianças a partir dos 12 anos, bem como grupos marginalizados, incluindo comunidades indígenas no Canadá. Nos últimos anos, o exército tem oferecido cidadania a estrangeiros, aumentando sua presença nas redes sociais e até mesmo anunciando brindes falsos de Xbox para atrair jovens para seu site.

Solomon também aponta que esses funcionários supervisionam uma rede intricada de cerca de 750 bases em todo o mundo, permitindo às forças armadas exibir seus músculos em todos os continentes. Além de facilitar mobilizações em larga escala, as instalações militares norte-americanas no exterior tornam possíveis operações secretas e até mesmo intrigas políticas.

Repetidas vezes, bases na América Latina facilitaram golpes contra governos de esquerda. Depois que o presidente equatoriano Rafael Correa fechou uma instalação em Manta, seu sucessor lançou acusações legais infundadas contra ele, enquanto dava as boas-vindas às forças dos EUA e as chamava de volta ao país. Em 2018, o ministério da Defesa do Equador até anunciou planos para permitir que o exército dos EUA usasse as Ilhas Galápagos para operações, chamando o arquipélago de “um porta-aviões natural”.

Bases estrangeiras também permitem que os EUA garantam o controle sobre recursos estratégicos. Isso é especialmente verdadeiro no Peru, rico em minerais, e onde em dezembro passado autoridades dos EUA apoiaram a derrubada do presidente Pedro Castillo, um populista de esquerda que promovia a soberania econômica. Sua sucessora, Dina Boluarte, iniciou uma onda de repressão que matou mais de 60 civis, culminando no que o presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos chama de “massacre” contra a população indígena em Ayacucho.

Recentemente, Boluarte autorizou a entrada de 1.242 soldados dos EUA, enviando um sinal tenebroso aos manifestantes. Citando a mudança de regime no Peru, um coronel treinado pelos EUA na Colômbia anunciou planos para “defenestrar” o presidente de esquerda de seu país.

Na África e no Oriente Médio, as bases funcionam como plataformas de armas para ataques de drones. Desde 2007, a guerra aérea dos EUA na Somália contra o grupo al-Shabab matou pelo menos 90 civis, mas o Pentágono reconhece apenas cinco das vítimas e se recusa a compensar suas famílias.

Apesar das alegações de “precisão cirúrgica”, a precisão da guerra de drones intensifica os conflitos regionais. Em 2017, os EUA ajudaram equivocadamente autoridades nigerianas a bombardear um campo de refugiados que o próprio governo construiu, matando mais de 160 civis. Drones também bombardearam casamentos no Iêmen e no Afeganistão. Mais recentemente, um drone dos EUA permitiu que a França matasse “membros de grupos terroristas armados” em Bounti, Mali. Mais tarde, as forças das Nações Unidas descobriram que as vítimas eram membros de outra festa de casamento.

Os formuladores de políticas dos EUA retratam invariavelmente como “um imperativo de segurança” as ações “além do horizonte”, como o uso de bases militares e drones. No entanto, como argumenta Solomon, elas na verdade fomentam a insegurança, alienando comunidades em todo o mundo e alimentando um ciclo de violência.

Essas consequências não são apenas invisíveis, mas duradouras. Na primavera [nórdica] deste ano, a Universidade de Brown publicou um estudo estimando que os conflitos iniciados pelos EUA pós-11 de setembro mataram mais de 4,5 milhões de pessoas. Sob sanções de Washington, o artigo observa, a maioria dos afegãos sofre de desnutrição e está morrendo de causas relacionadas à guerra a taxas cada vez mais altas.

À medida que veteranos dos EUA da guerra no Afeganistão lutam na Ucrânia, o espectro de conflitos passados assombra o presente. Isso nos deixa com o que Solomon chama de cicatrizes profundas e “ausências trágicas”: mentes envenenadas e corpos destroçados, populações famintas e terras polvilhadas de munição. Do Afeganistão à Ucrânia, os mesmos argumentos, armas e soldados estão colhendo os mesmos resultados. Mais de duas décadas após a invasão do Oriente Médio, os EUA ainda anunciam a paz ao longo de um caminho para a guerra…

Redação

1 Comentário

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  1. Trajano começou a decadência de Roma. O Império Romano agigantou-se, combinando relativo espírito da res publica (coisa pública) com um estado interminável de guerra. Mas, em 126 Trajano resolveu que já bastava: guerras agora seriam para Roma uma mera diversão; reduzida, restrita à administração de fronteiras mais próximas. Diversionismo para o grupo dos manés. Só que isso deixou a nobreza ociosa. Do mesmo modo, a bomba soviética começou o fim do novo reinado da guerra: os Estados Unidos. E, acima de todos, aquele povo só se sente bem deixando cadáveres expostos, desde que longe de casa. Talvez por isso os ianques tanto estejam investindo em suas igrejas mundo afora: o soft power.

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