A doutrina sexista também é ideologia de gênero?, por Eliana Pires Rocha

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Eliana Pires Rocha

No Conjur

É com perplexidade e irresignação que vemos o noticiado avanço de projeto de lei no Congresso Nacional que quer proibir o debate sobre gênero nas escolas. Sabe-se que o projeto neoconservador[1] tem amplo apoio de bancadas e parlamentares alinhados a doutrinas neopentecostais e que estão unificados em torno da recusa a uma suposta “doutrinação” baseada no que denominam “ideologia de gênero” e a defesa da “família”.

É provável que o fator determinante para o modo de filosofar politicamente na modernidade tenha sido justamente a secularização do pensamento. Num giro antropocêntrico, o movimento renascentista abandonou uma visão divina, naturalista e cíclica do mundo e depositou no sujeito, fundamentalmente na razão humana, a responsabilidade pelo seu futuro.

Em resposta ao que seria a Ilustração que sobreveio àquele movimento, Kant[2] afirmou que se tratava da saída do homem da menoridade. O homem precisa se valer de uma estimação racional para pensar por si mesmo. No caso, é a educação que viabiliza esse esforço criador. Para Kant, “toda educação é uma arte, porque as disposições naturais dos homens não se desenvolvem por si mesmas”[3]. Aliás, Rousseau já havia tratado do mesmo tema um pouco antes. Na obra Emilio ou Da Educação, o filósofo idealiza a formação do homem, que, livre e igual aos seus pares no estado da natureza, se degenera em meio à sociedade. É a educação que deve promover a reconciliação entre cultura e natureza.

Como herdeira dessas filosofias, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) reconheceu que todos têm direito à educação. Declarou ainda que todas as pessoas são iguais e merecedoras de igual proteção, sem distinção de sexo, o que foi incorporado à Constituição brasileira (1988)[4].

Ou seja, as filosofias de Kant e de Rousseau mostram que a educação foi um elemento-chave para as transformações buscadas pela modernidade ocidental. Mas, paradoxalmente, Rousseau, o “igualitarista”, não incluiu a mulher entre os beneficiários dessa pedagogia. É no último capítulo de Emílio ou Da Educação, ao introduzir a figura de Sofia, que Rousseau desvela toda a sua misoginia. Vale a pena reproduzir alguns fragmentos: Emilio é “forte”, Sofia, “passiva e fraca”; “é necessário que um [Emílio] queira e possa, basta que o outro [Sofia] resista pouco”. Segue-se disso que “a mulher é feita especialmente para agradar o homem”. Feita para “agradar” e ser “subjugada”, a mulher “deve tornar-se agradável ao homem ao invés de provocá-lo”[5]. Seguro da superioridade de Emílio, Rousseau defenderá uma educação libertadora para os homens — que são livres e iguais — e outra subserviente para as mulheres — que são ontologicamente dependentes e subordinadas.

Kant é mais sutil. Sob influência da filosofia rousseauniana[6], dirá, em relação ao “belo sexo” (a mulher), que ele “possui inteligência como o masculino; mas é uma inteligência bela, enquanto a nossa deve ser uma inteligência profunda”, isto é, “sublime”. A “meditação profunda” e o “exame prologado” são exercícios “árduos” que, por isso, não convêm à mulher, na qual “os estímulos espontâneos não têm que mostrar mais que uma natureza bela” e “debilitam o encanto graças ao qual a mulher exerce seu forte poder sobre o sexo oposto”[7]. Por certo, os dois discursos aniquilavam qualquer pretensão de empoderamento individual da mulher.

Essas referências não constituem um presentismo mal articulado. Repassar a história desde a Antiguidade revela que o conjunto cultural considerado filosófico foi basicamente produzido pelos homens e que uma ideologia sexista[8], detectada entre inúmeros filósofos, além de Rousseau e Kant, sustenta até hoje, ainda que em variados graus, uma organização social discriminatória em relação às mulheres. Por isso, Amorós redefiniu a razão iluminismo como uma razão patriarcal[9], já que, sob a universalidade contida nos lemas da Ilustração (liberdade, igualdade e fraternidade), se mantem uma estrutura social baseada em relações desiguais de gênero. Em suma, a Declaração de Direitos Humanos é universal, mas não aplicável a todas.

O vocábulo gênero no sentido acima empregado diz respeito a uma construção cultural do feminino e do masculino por meio de processos de socialização que formam os indivíduos desde a infância. A ideia é mostrar que a desigualdade e a opressão impostos historicamente à mulher têm uma causa social, e não biológica, natural. Ou seja, não existe passividade, emotividade, amabilidade, subserviência, entre outros atributos subjetivos, inerentes e próprios da mulher, que justificariam a sua exclusão da esfera pública (cultural) e um consequente protagonismo nos limites do mundo privado (natural). Além disso, a igualdade não é inimiga das diferenças que existem entre homens e mulheres, mas dos privilégios espúrios.

É importante ter claro que o feminismo, em suas muitas linhas, é um fenômeno social tematizado conceitualmente desde a Ilustração nos escritos de François Poullain de la Barre, Mary Wollstonecraft, Diderot, Condorcet, Von Hippel, entre outros[10]. A partir daí foram criados vários esquemas conceituais para analisar a realidade que provocaram importantes mudanças históricas na relação sexo e gênero. No século XX, já existia uma rica epistemologia capaz de identificar as concepções e as práticas de atribuição de conhecimento, aquisição e justificação vigentes nas ciências, na arte e na filosofia que discriminam sistematicamente as mulheres e outros coletivos que não se ajustam à subjetividade dominante[11].

Logo, desqualificar as reivindicações feministas sob a tese de “ideologia” (de gênero), neste caso ideologia como distorção da realidade, encobre um longo e rigoroso processo cognitivo e a autoridade epistemológica que o sustenta. Também denota uma renovada misoginia e uma vontade de poder denunciada em milhares de obras filosóficas, científicas e em dados empíricos que atestam a desigualdade entre mulheres e homens e a dominação masculina[12].

Números recentes produzidos por Unicef[13], Ipea[14], Unesco[15] e Mapa da Violência 2015[16] relativos à desigualdade de gênero e de raça atestam isso. Eles mostram, por exemplo, que as mulheres trabalham 7,5 horas semanais a mais que os homens; que o trabalho gratuito (tarefas domésticas e cuidados) ocorre sem divisão paritária; que as mulheres recebem salários mais baixos, especialmente as mulheres negras; que a família prioriza a educação dos meninos; que as meninas têm menos possibilidades de acesso à escola; que há mais analfabetismo e desemprego entre mulheres; enfim, todos aspectos que geram um maior desnivelamento e empobrecimento da população feminina. Números de 2015 referentes à violência, no que se inclui o feminicídio, indicam que 50,3% das mortes violentas de mulheres no Brasil foram cometidas por familiares e 33,2% por parceiros ou ex-parceiros.

Mesmo com a Lei Maria da Penha, persistem as altas taxas de abuso e violação sexual, maus-tratos e assassinatos, largamente praticados na privacidade da “família” contra meninas e mulheres. Não é sem razão que para muitas feministas a “família” é uma das instâncias essenciais da dominação masculina, porque nela esse poder, por ser invisível à esfera pública, atua intensamente e de múltiplas maneiras.

Por outro lado, não tem sentido empregar um conceito universalizado de família como fazem os neoconservadores. A própria Constituição reconhece diferentes configurações familiares, inclusive aquelas formadas exclusivamente pela mulher, ou pelo homem, e seus descendentes (artigo 226, parágrafo 4º), o que, a julgar pelos dados acima, agudiza a desigual realidade por ela enfrentada.

A conclusão a que se chega é que mesmo sociedades democráticas ocultam mecanismos que criam e recriam desigualdades e discriminações em razão de sexo — potencializadas por motivos de classe e raça —, e que se agravam pela infrarrepresentação político-partidária de mulheres.

Particularmente a escola, depois da família, sempre foi um importante aparato reprodutivo desses (des)valores. Ciente disso, a partir de diretrizes fixadas em conferências e encontros nacionais de mulheres ocorridos desde 2004, e na linha do artigo 1º da Lei Maria da Penha[17], o governo federal estabeleceu como meta dos Planos Plurianuais da União, inclusive para o período de 2016-2019, fortalecer a democracia com igualdade de gênero. Isso foi transposto para o Plano Nacional de Educação, com a finalidade de implantar novos valores éticos entre alunos e alunas capazes de extirpar as desigualdades e a violência misógina.

Doutrinação!, esbravejam os neoconservadores contra as políticas educativas estatais. Mas não há lugar para fundamentalismos[18] ou ingenuidades!

Existe um curriculum oculto que reforça condutas hegemonicamente dominantes[19]. Isso ocorre até mesmo por meio da transmissão involuntária e sub-reptícia de estereótipos do professorado nas suas práticas discursivas, que desde cedo inclinam os meninos a intervir ativamente no mundo e as meninas a priorizar o amor e os cuidados da família[20]. Bello e Galdo[21] descrevem assim esses estereótipos:

“Os estereótipos masculinos estão ligados a atividades profissionais, ao âmbito do público, do poder, sendo designados com as seguintes características: atividade, agressividade, autoridade, valentia, risco, competitividade, dotes de mando, atitudes para as ciências e amor ao risco. Os estereótipos femininos, entretanto, estão relacionados a atividades de cuidado, ao desenvolvimento da privacidade, a falta de controle sobre o poder que são destacados através das seguintes peculiaridades: passividade, ternura, submissão, obediência, docilidade, medo, timidez, falta de iniciativa, tendência a sonhar, dúvida, instabilidade emocional (representada como histerismo), falta de controle, dependência, aptidão para letras e debilidade”.

E não poderia ser diferente. Afinal, as relações sociais de poder também penetram nas instituições educativas e se reproduzem ali. Isso significa que nem projetos curriculares nem conteúdos nem materiais didáticos nem modelos de organização da escola nem as condutas do professorado e do alunado devem ser analisados de forma neutra[22], isto é, à margem de uma doutrina sexista que impregna há séculos, explicita ou subliminarmente, o mundo da vida.

Lembrando o que diz a Constituição Federal, a educação, como direito de todos e dever do Estado e da família, junto com a sociedade, visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Esse direito pressupõe pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas e liberdades de ensino e de aprendizagem. É evidente que a Constituição fala de algo que excede a capacidade de leitura, de escrita, de formulação de cálculos e técnico-profissional. O direito à educação tem a ver com a aquisição de conhecimentos e valores morais que correspondem, em boa medida, ao modelo que se quer de sociedade e sob o qual se formarão os seus integrantes.

Por isso, a teoria crítica feminista concluiu que não basta o pleno acesso das meninas à escola. Altos índices de acesso escolar e a capacidade econômica das famílias não explicam, por exemplo, porque os ingressos laborais das mulheres são menores ou porque elas são submetidas à dominação masculina[23]. Tendo isso claro, Fraser propôs, como igualação substancial de direitos, uma distribuição de recursos e serviços básicos às mulheres associada a uma implementação de políticas de reconhecimento[24], sendo a escola um importantíssimo veículo para isso.

Resgatando Kant a tempo e naquilo que é devido, acreditava ele que somente a reunião da arte de governo e da arte de educação poderia conduzir as crianças e o povo à liberdade. É a educação pública — mais propensa, segundo ele, a desenvolver as habilidades e o caráter sem as falhas da educação doméstica[25] — que favorece o desenvolvimento das capacidades moral e cultural de quem participará da ordem estatal republicana, atuando para a emancipação política de toda a sociedade.

Mas distinguir o que é moralmente correto do que é espúrio requer que se desenvolva, nos alunos e alunas, a capacidade de pôr em xeque a idoneidade dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens, desativando a doutrinação sexista que desiguala, empobrece, exclui, explora, subjuga, violenta e mata.

[1] GRANGE, Juliette, Les néoconservateurs, Pocket, Paris, 2017, p. 11.
[2] KANT, E., Respuesta a la pregunta: ¿Qué es la Ilustración?, En defensa de la Ilustración, Alba, Barcelona, 1999, 63-71, p. 63.
[3] KANT, E., Pedagogia, www.philosophia.cl, Escuela de Filosofía Universidad ARCIS, https://pt.scribd.com/document/377767537/Immanuel-Kant-Pedagogia, acesso em 10/5/2018, p.3.
[4] CARÚS GUEDES, Jefferson, Igualdade e desigualdade: introdução conceitual, normativa e histórica dos princípios, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2014, p. 105.
[5] ROUSSEAU, Jean-Jacques, Emilio ou Da educação, 2. Ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 424.
[6][6] CASTRO DE PROBERT, Dulce Maria Granja, Estudio Preliminar, KANT, E., Observaciones sobre lo sentimiento de lo bello y lo sublime, FCE/UAN/UNAM, México, 2004, p. L.
[7] KANT, E., Observaciones sobre lo sentimiento de lo bello y lo sublime, FCE/UAN/UNAM, México, 2004, p. 30-31.
[8] AMORÓS, Célia, Hacia una crítica de la razón patriarcal, Madrid, Anthropos, 2. ed., 1991, p. 27.
[9] Idem, p. 72.
[10] COBO, Rosa, Repensando la democracia: mujeres y ciudadanía, COBO, Rosa (ed.), Educar en la ciudadanía. Perspectivas feministas, Madrid, Catarata, 2008, p. 19-52, p. 28.
[11] NICOLÁS LAZO, Gemma, Debates en epistemología feminista: del empiricismo y el standpoint a las críticas postmodernas sobre el sujeto y el punto de vista, NICOLÁS LAZO, Gemma; BODELÓN, Encarna (Comps.), Género y dominación. Críticas feministas del derecho y del poder, Anthropos, Madrid, 2009, p. 25-62, p. 26.
[12] BOURDIEU, Pierre, La dominación masculina, Barcelona, Anagrama, 2000, p. 19.
[13] https://www.unicef.org/spanish/gender/3984_factsandfigures.html
[14] http://www.ipea.gov.br/retrato/
[15] http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002325/232565s.pdf
[16] http://mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf
[17] O Brasil ratificou dois importantes tratados: a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, em 1984, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 1995.
[18] SEGATO, Rita Laura, La guerra contra las mujeres, Traficantes de Sueños, Madrid, 2016, p. 16.
[19] TORRES SANTOMÉ, Jurjo, El currículum oculto, Morata, Madrid, 1998, p. 13.
[20] COBO, Rosa, Repensando la democracia: mujeres y ciudadanía, COBO, Rosa (ed.), Educar en la ciudadanía. Perspectivas feministas, Madrid, Catarata, 2008, p. 19-52, p. 35.
[21] SANCHEZ BELLO, Ana; IGLESIAS GALDO, Ana, Currículum oculto en el aula: estereotipos en acción, COBO, Rosa (ed.), Educar en la ciudadanía. Perspectivas feministas, Madrid, Catarata, 2008, p. 123-149, p. 132.
[22] TORRES SANTOMÉ, Jurjo, El curriculum oculto, Morata, Madrid, 1998, p. 14.
[23] GUERREIRO CAVIEDES, Elizabeth et allí, Acceso a la educación y socialización de género en un contexto de reformas educativas, PROVOSTE FERNÁNDEZ, Patricia (Ed.), Equidad de Género y Reformas Educativas. Argentina, Chile, Colombia, Perú, Hexagrama Consultoras-FLACSO-IESCO, Santiago de Chile, 2006, p. 9-50, p. 09.
[24] FRASER, Nancy: Iustitia Interrupta. Reflexiones críticas desde la posición «postsocialista», Bogotá, Siglo del Hombre Editores-Universidad de los Andes, 1997, p. 231-235.
[25] KANT, E., Pedagogia, www.philosophia.cl, Escuela de Filosofía Universidad ARCIS, https://pt.scribd.com/document/377767537/Immanuel-Kant-Pedagogia, p. 3.

 

Eliana Pires Rocha é procuradora da República, doutoranda em Direitos Humanos na Universidad Carlos III, em Madri, e estre em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

1 Comentário

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  1. Se me permite

    Sinto se exponho um fato e não faço uma análise tão bem fudamentada.

    Colega de minha filha se tornou professora de ciências do ensino fundamental em periferia de Contagem. Esqueça devr de casa, leituras melhor esquecer, alunas sem ir a aula pois têm de fazer o serviço doméstico, mães dando apoio a insubordinação de alunos e sem apoiar os professores, aluno que com uma hora como olheiro, por dia, ganha mais que ela em um mês, programas de realfabetização de alunos que não conseguiram ser alfabetizados no tempo normal, exercícios numéricos se tiver fração pode esquecer. Poderia desfiar um rol. Sinceramente, se acreditam que a discussão de gênero vai ser útil e ter resultados em uma escola dessas – e são milhares espalhadas pelo Brasil –  vão em frente.

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