As crianças e suas famílias afetivas

Há anos a médica Letícia  Fernandes sonhava em ter gêmeos, mesmo depois de ter retirado o útero e não poder mais ser mãe biológica.

Letícia tinha se inscrito no Cadastro Nacional de Adoção e já conseguira a guarda de David. Agora, procurava uma menina.

Paciente de Letícia, Doralice lhe falou sobre as crianças de Monte Santo. Ela é mãe afetiva, moradora de Indaiatuba, funcionária de uma multinacional sueca. Um de seus filhos foi adotado em Monte Santo. O processo de adoção começou por lá e depois foi remetido de ofício para Indaiatuba, onde foi concluído.

Doralice mencionou Carmen Topschall (foto), uma empresária gaúcha, que tinha se mudado para a Bahia.

Carmen tinha também duas crianças adotadas em Monte Santo. E periodicamente levava as crianças até lá, para visitar os pais biológicos.

Através de Carmen, Leticia soube de Silvania. 

Conforme se conferiu no capítulo anterior, desde 2010, o Conselho Tutelar da cidade registrava queixas contra Silvania e contra a chamada família extensa, pelo abandono dos filhos.

Antes mesmo da caçula Estefania nascer, Carmen viu as crianças machucadas, especialmente o pequeno Luan, e entrou com pedido de guarda dele.

Quando Letícia entrou em contato com Carmen, Estefania tinha acabado de nascer. Como estava na época de levar seus filhos a Monte Santo, Carmen aceitou ciceronear a médica Letícia.

Foram até Silvania, mas ela não quis entregar mais a menina, porque era “menina moça”. Ofereceu Luan para Letícia, o mais problemáticos dos filhos, porque assim “não perde a viagem”.

Letícia não desistiu. Registrou-se no Cadastro de Adoção do fórum, foi até a promotora Monia e apresentou todos os pré-requisitos.

Pouco informatizadas, as comarcas do sertão da Bahia não participam do Cadastro Nacional de Adoção. Monte Santo não tem acesso ao cadastro informatizado nem possui equipe técnica local

Para esses casos, a legislação permite que se monte um cadastro local. As candidatas a adotar se registram em um Livro de Registros de Ocorrências no fórum local. O fórum emite, então, uma certidão, informando sobre as adoções, os pretendentes e o andamento dos processos.

Seguiu-se o processo de retirada do pátrio poder, descrito no capítulo anterior.

Estefania foi a primeira, devido ao risco de vida. Não tinha sido vacinada, estava sem imunidade, sendo alimentada por leite de vaca e em situação física precária.

Alguns dias depois, a promotora Monia e Célia, do forum, entraram em contato com Letícia, pedindo para indicar famílias próximas, para permitir a convivência entre os irmãos.

Letícia conversou com Dora, que havia participado de cursos preparatórios de adoção em Indaiatuba. Lá, conheceu Débora e Érica, que já tinham filhos adotados em Indaiatuba.

Eram quatro as crianças restantes e havia grande dificuldade em encontrar casais dispostos a aceitar crianças mais velhas. Dora lembrou-se então de Flávia, que estava no grupo de adoção e tinha interesse em crianças fora dos padrões habituais. Ela se interessou por Danilo. O marido de Erica trabalhava com o marido de Alessandra, de Campinas, que aceitava criança mais velha.

O juiz Vitor recusou-se a separar os dois mais velhos, que acabaram aceitos por Alessandra e pelo marido.

Vitor pediu, então, a documentação para avaliar sua situação. 

Ambos já participavam do Cadastro Nacional de Adoção, tinham documentação, atestado de frequência nas palestras educativas. Avaliação psicológica, médica, financeira, tudo foi encaminhado.

Letícia e Débora pediram ajuda de Carmen para irem a Monte Santo, já que a distância era grande e a estrada precária. Débora seguiu com Mayte, de um ano e pouco.

Segundo Letícia, o único pagamento efetuado para Carmen visou ressarci-la da gasolina e da hospedagem em Monte Santo, embora ela não tivesse exigido nada.

A adaptação das famílias afetivas

Aos poucos as famílias foram colocadas a par da situação das crianças.

Houve um choque inicial com as condição das crianças.

No caso da caçula Estefana, a cara estava picada por muriçocas, com várias feridas infeccionadas. Na cabeça, uma infecção causada por berne. Em outra criança descobriram-se marcas de queimaduras. 

Leticia permaneceu duas semanas em Monte Santo tratando da filha, até ter condições de viajar.

Gradativamente, as crianças foram se adaptando aos novos lares.

No caso da Estefana, houve sintonia total com o irmão. A mãe comprou carrinhos de gêmeos, vestia o menino de azul, a menina de rosa, ensinava  inglês para ambos, piano para Estefania, a ponto de ela já conhecer as notas de algumas melodias bastante simples.

Na Páscoa as cinco famílias decidiram juntar os irmãos de sangue e os irmãos afetivos, todos adotados (foto ao lado). Do encontro inicial saíram os planos de reuniões periódicas, para que os irmãos mantivessem os elos.

Na entrevista ao GGN, Maria do Rosário mencionava, como um dos agravantes do episódio, o fato do processo de adoção ter impedido a convivência entre os irmãos.

Em três oportunidade, a advogada Lenora Panzetti procurou a SNDH para expor seus argumentos. Por três vezes o acesso foi negado.

A facilitadora Carmen

Vamos nos concentrar um pouco mais em Carmen Topschall, que, segundo a Ministra Maria do Rosário – apud o Fantástico – seria a prova da existência da organização de traficantes.

Aqui, uma pequena pausa na nossa história, para um pouco mais de informações sobre o universo da adoção.

Existem, de fato, as adoções clandestinas e as organizações criminosas atuando nesse terreno cinza.

Mas existe, também, enorme solidariedade entre as mães afetivas, que acaba estimulando o aparecimento de “facilitadores” – no caso, senhoras que trocam informações entre si, visando dar o melhor encaminhamento a crianças abandonadas.

Nos anos 80 existia uma rede semelhante em São Paulo, as “cegonhas”, fazendo esse meio de campo entre moças grávidas pacientes da Maternidade São Paulo, querendo dar os filhos, e casais à procura de crianças para adoção. Interromperam o trabalho quando organizações criminosas passaram a atuar na intermediação.

A entrevista do Fantástico mostra um personagem em nada parecido com o perfil de uma traficante. Carmen é mãe de duas crianças adotadas em Monte Santo, mantem  contato permanente com a cidade, para permitir às crianças conviverem com as mães biológicas.

É gaúcha de Bagé e tem uma triparia (fábrica de tripa de linguiça). Montou uma filial em Ipojuca, na grande Salvador, devido à disponibilidade de mão de obra e a vantagens fiscais.

Há uma prova do pudim para saber se era uma “facilitadora” ou uma traficante: a investigação de suas contas bancárias, para levantar supostos pagamentos pelas crianças. É possível que seja; é possível que seja apenas uma mãe solidária com crianças que poderiam ser seus filhos afetivos.

Sem dispor de provas, a ministra foi enfática nas acusações, endossando as matérias da Globo.

Convocada à CPI do Tráfico, Carmen foi destratada pelo presidente da CPI, deputado Arnaldo Jordy, incapaz de entender a razão de uma pessoa, empresária em dificuldade financeira, estar empenhada em adotar crianças ou em indicar crianças para adoção.

Ao expor sua solidariedade em relação à miséria e ao destino das crianças, foi aparteada bruscamente por Jordy, expondo sua vulnerabilidade financeira, como se fosse agravante. “Mesmo assim (com dificuldade financeira) a senhora resolveu duplicar seu núcleo familiar”, argumentou, como se filhos fossem ativos ou passivos financeiros.

Foi de uma agressividade tosca. Dizia que “essas coisas (a solidariedade com a miséria) não entendo”.

Não tinha condições de entender, mesmo. Havia uma diferença básica entre a visão de Carmen e do deputado Jordy sobre nascimento, aborto ou adoção.

Na campanha para prefeito de Belém do Pará, foi divulgado áudio de Jordy forçando a namorada a praticar um aborto, por não ter condições de arcar com a criança.

Ficaria difícil entender a solidariedade humana em relação a uma criança com a qual não se tivesse vínculos biológicos.

Abaixo, o vídeo divulgado e a resposta do deputado.

  

 

 

 

 

 

 

Sobre as crianças de Monte Santo, leia ainda:

    “Salve Jorge e as crianças de Monte Santo

     “A mãe afetiva que foi transformada em traficante de crianças

     “As reportagens sobre as crianças adotadas na Bahia

     “A resposta da Globo ao GGN

    “A política brasileira de adoção e seus muitos tons de cinza

 

Luis Nassif

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  1. Esclarecimento

    A Assessoria de Comunicação do Ministério Público do Estado da Bahia encaminha, para esclarecimento, as  seguintes considerações da promotora de Justiça Monia Lopes de Souza Ghignone:

    Segundo constou na matéria, “Alguns dias depois, a promotora Monia e Célia, do forum, entraram em contato com Letícia, pedindo para indicar famílias próximas, para permitir a convivência entre os irmãos.”. A informação é inverídica, pois nunca entrei em contato com a senhora Letícia para essa ou outra finalidade qualquer. A nomeada senhora foi atendida por mim na Promotoria de Justiça em uma única ocasião, na cidade de Euclides da Cunha, na presença de funcionaria do Ministério Público que lá trabalhava, momento no qual, em breve conversa, foi explicado a ela em que consistiam juridicamente os pedidos de adoção e de guarda provisória, sendo explicitado o caráter eminentemente provisório e revogável desta última. Na oportunidade, a senhora Letícia pareceu ter compreendido a orientação e, desde então, nunca mais a vi novamente, nem com ela falei. Isso pode ser comprovado objetivamente da seguinte forma:

    a) Se fosse minha intenção encaminhar todas as crianças para famílias substitutas, não teria ajuizado medida de proteção de acolhimento institucional, que tem conteúdo jurídico diverso e não implica na perda do poder familiar da família biológica.

    b) Entre a ação de adoção ajuizada pela senhora Letícia, na qual emiti parecer favorável à concessão da guarda da menor Estefane em virtude da situação de grave risco por ela vivenciada e aquelas ajuizadas pelas demais famílias paulistas passaram-se quase vinte dias. Nesse intervalo, a senhora Carmem Kieckhofer Topschall ajuizou ação de guarda relativamente ao menor Luan (autos nº 0000273-62.2011.805.0168). Nessa ação de guarda, não emiti parecer favorável ao pedido de guarda provisória, pois requeri que fosse efetuada a busca de outros parentes próximos, que pudessem ficar com a nomeada criança. O teor do meu pronunciamento, datado de 23 de maio de 2011, foi o seguinte: “antes de apresentar parecer sobre o pedido de guarda provisória no caso em tela, requer o MP que o Conselho Tutelar realize novo relatório em relação ao menor Luan Silva Santos, inclusive, mencionando se há parentes próximos da criança que queiram exercer a guarda em seu favor. Após, nova vista.” (grifo no original). Se minha opinião fosse favorável à entrega de todas as crianças a terceiros, certamente teria também me pronunciado favoravelmente à guarda provisória, nessa oportunidade. Registro, ainda, que o meu requerimento pedindo a busca por parentes próximos não foi apreciado pelo Juiz de Direito e esses autos não mais retornaram ao Ministerio Publico.

    c) Possuo declarações dos assistentes técnico-administrativos das Promotorias de Justiça de Monte Santo e de Euclides da Cunha, confirmando que jamais entrei em contato novamente com as senhoras Carmem e Letícia. Além disso, e mais importante, possuo certidão solicitada pelo próprio Juiz Vitor Bizerra à escrivã Célia Maria Oliveira Santos, datada de 13 de julho de 2012, da qual se extrai o seguinte: “Nesse cartório chegou a medida protetiva e ao existir em cartório algumas pessoas cadastradas para adoção, pelo MM Juiz foi determinado que entrasse em contato com essas famílias para saber se ainda existia interesse em adotar crianças. O que negaram por já terem conseguido os filhos que desejavam. Logo surgiram outras pessoas que tinham o desejo de ter filhos e a essas, depois de entrarem com o pedido de adoção, seguindo os trâmites legais lhes foram passadas as crianças em guarda provisória.”. Ressalto que esses processos de adoção (autos nº 0000288-31.2011.805.0168, 0000304-82.2011.805.0168 e 0000286-61.2011.805.0168) não foram encaminhados ao Ministério Público antes das concessões das guardas das crianças em 1º de junho de 2011. Fica claro, portanto, que quem determinou a busca por outras famílias não foi o Ministério Público.

    d) Esse fato é confirmado pelos próprios requerentes das adoções, os quais expressamente consignaram nas petições iniciais das ações (autos nº 0000288-31.2011.805.0168 e 0000286-61.2011.805.0168) que souberam que o Juiz Vitor Bizerra estava disponibilizando crianças para adoção. Novamente, é corroborado que o contato com as famílias paulistas foi determinado pelo magistrado, sem nenhuma interferência ou conhecimento do Ministério Público.

    e) Não fui intimada e, por isso, não tomei conhecimento da audiência realizada em 1º de junho de 2011, na qual o magistrado concedeu a guarda das crianças às famílias paulistas. Aliás, conforme exposto na letra “b”, acima, eu requeri expressamente, uma semana antes, no caso de Luan (mas em ação diversa, porque não tive conhecimento das ações ajuizadas pelas familias paulistas) que fossem procurados outros parentes. Contudo, esse pronunciamento nao foi considerado no momento da entrega da guarda dessa criança, juntamente com as demais, aos casais já citados.

    Com essas considerações, não faço apreciação favorável ou desfavorável de quaisquer deliberações judiciais adotadas. Também não externo juízo de valor acerca da correção ou não dos procedimentos das famílias paulistas ou da família biológica. Lamento os transtornos por que todos os envolvidos têm passado. Todavia, isso não os autoriza a distorcerem os fatos que estão objetivamente comprovados nos processos e nas apurações até o momento realizadas. No que diz respeito às informações por mim efetuadas acima, todas se encontram documentalmente comprovadas, sendo que me coloco à disposição para quaisquer novos esclarecimentos que se fizerem necessários.

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