Bolsonaro e a revogação da Lex Poetelia Papiria, por Fábio de Oliveira Ribeiro

 

Por Fábio de Oliveira Ribeiro

Já que o Brasil parece estar condenado a se transformar numa teocracia evangélica, começarei citando a bíblia. 

“Quando chegaram ao lugar que Deus lhe havia indicado, Abraão construiu um altar e sobre ele arrumou a lenha. Amarrou seu filho Isaque e o colocou sobre o altar, em cima da lenha. 
Então estendeu a mão e pegou a faca para sacrificar seu filho.
Mas o Anjo do Senhor o chamou do céu: ‘Abraão! Abraão!’ ‘Eis-me aqui’, respondeu ele.
‘Não toque no rapaz’, disse o Anjo. ‘Não lhe faça nada. Agora sei que você teme a Deus, porque não me negou seu filho, o seu único filho.’ ”

 

Esse fragmento da bíblia ( Gênesis 22:9-12) é geralmente mencionado como um marco civilizatório do judaísmo. Mas não é disso que eu quero falar. O que me desperta o interesse nesse momento é algo muito mais importante que ocorreu entre os romanos. O episódio foi narrado por Tito Lívio da seguinte maneira:

“Caio Públio se havia entregado a [Lúcio] Papírio como escravo para resgatar as dívidas de seu pai. A idade e a beleza do jovem, que deveriam ter provocado a piedade de Papírio, despertaram nele uma paixão viciosa. Considerando a beleza do jovem como um acréscimo de suas riquezas, tratou primeiramente de seduzi-lo com propostas obscenas. Como Públio permanecesse surdo e desprezasse aquela indignidade, passou a amedrontá-lo com ameaças, relembrando-lhe constantemente sua atual condição. Finalmente, ao ver que ele pensava mais em sua qualidade de homem livro do que em sua situação presente, mandou que o desnudassem e trouxessem as varas. Dilacerado pelos golpes, o jovem conseguiu escapar e correu pelas ruas da cidade, bradando contra a infâmia e a crueldade do usurário. Uma grande multidão, comovida pela idade do jovem e indignada com o ultraje, lembrando-se também de sua própria condição e da de seus filhos, acorreu ao Fórum e de lá partiu em coluna para a cúria. Forçados por aquele tumulto imprevisto, os cônsules convocaram o Senado. À medida que os senadores entravam, o povo se arrojava aos seus pés, mostrando-lhes o dorso dilacerado do rapaz.

Naquele dia, em virtude da violência de um só homem desfez-se um dos mais fortes vínculos do crédito. Os cônsules receberam ordem de propor ao povo que, no futuro, nenhum cidadão ficasse sujeito à cadeia ou aos grilhões enquanto aguardasse o castigo, a menos que tivesse cometido algum crime. Os bens do devedor, e não seu corpo, responderiam pelas dívidas. Assim, libertaram-se todos os escravos por dívidas e tomaram-se providências para que, daí por diante, nenhum devedor fosse preso.” (Ab Urbe Condita Libri, Tito Lívio, segundo volume, editora Paumape, São Paulo, 1989, p. 181/182)

Esse episódio, ocorrido por volta de 326 a.C., demonstra como o Direito era um fenômeno político em permanente construção entre os romanos. Foi a reação do povo nas ruas contra o ultraje cometido por Lúcio Papírio que obrigou as autoridades de Roma a revogar a Lei que garantia ao credor resgatar a dívida mediante a escravização do devedor (ou de alguém de sua família). Naquele momento crucial, os interesses privados dos credores foram menosprezados em razão de um interesse público maior: a pacificação da cidade mediante a evolução da legislação.

O fragmento citado do Gênesis demonstra que, entre os judeus, o processo civilizatório ocorria com a mediação da fé ou era creditado à intervenção divina. Entre os romanos ocorria algo qualitativamente diferente, pois a justiça era sempre um produto humano da ação humana. Não foi por acaso que a civilização romana se expandiu por toda Itália e além, chegando inclusive a conquistar a Judeia. Em razão de suas próprias características a política (e o Direito que dela resulta) tem uma plasticidade que o judaísmo (uma religião dogmática) não pode ter.

Fiz essa digressão histórica para poder dar um salto temporal e geográfico. A partir de agora já estamos de volta à última flor do Lácio, inculta e bela.

Quando foi eleito, Lula pacificou a sociedade brasileira. Ele resgatou dívidas sociais seculares que impunham uma carga imensa de dor às famílias pobres, especialmente aquelas que viviam nas regiões norte e nordeste ou que haviam imigrado para o sudeste para fugir da seca, da fome e da miséria. Ao fazer isso ele despertou o ódio de alguns privilegiados, mas a paz social prevaleceu porque o sucesso do “milagrinho econômico” (vide Laura de Carvalho) possibilitou que todos ganhassem. E aqueles que tinham mais obviamente ganharam muito mais.

A paz social foi rompida por Aécio Neves em 2014 e a guerra política se transformou numa realidade crescente desde o golpe de 2016 “com o Supremo com tudo”. Em razão do programa neoliberal que já começou a implementar (a expulsão dos médicos cubanos foi exigida por ele antes de sua posse), Jair Bolsonaro não conseguirá pacificar o Brasil. Muito pelo contrário, nos últimos dias ele tem deixado bem claro que vai aprofundar a discórdia civil para poder solucioná-la mediante um aumento exponencial da repressão policial e militar.

O novo presidente é descendente de italianos, mas parece ignorar ou desprezar a História de Roma. Ele não vai proteger os Caios Públios brasileiros. Na verdade o que Bolsonaro pretende fazer é garantir que eles poderão voltar a ser escravizados pelos Lúcios Papírios que apoiaram sua candidatura. Portanto, é um erro dizer que o Brasil voltará no tempo 50 anos (como disse o próprio Bolsonaro) ou 150 anos (como diz a oposição). Ao que tudo indica nós estamos fadados a voltar a viver no ano 327 a.C., ou seja, numa sociedade instável e injusta semelhante àquela que existia antes do episódio narrado por Tito Lívio.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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