É preciso enfrentar as milícias, por Luis Felipe Miguel

Todos sabiam muito bem com quem estavam lidando, quando nomearam Brazões ou seus indicados para cargos no governo.

Agência Brasil

É preciso enfrentar as milícias

por Luis Felipe Miguel

Finalmente, foram presos mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes.

Ainda existem pontas soltas— por exemplo, qual a participação dos generais Braga Netto, então interventor no Rio, e Richard Nunes, seu secretário de Segurança, responsáveis pela indicação de Rivaldo Barbosa para a chefia da polícia. Mas, sem dúvida, as prisões constituem uma boa notícia.

No entanto, a solução do caso Marielle, mesmo que alcance peixes bem mais graúdos, não resolve a situação de banditismo político no estado e na cidade do Rio de Janeiro. Como os jornais noticiaram, a família Brazão tem pontes tanto com o governo municipal, de Eduardo Paes, quanto com o governo estadual, de Cláudio Castro.

Ninguém pode dizer que entrou de inocente na história. Todos sabiam muito bem com quem estavam lidando, quando nomearam Brazões ou seus indicados para cargos no governo.

A verdade é que praticamente todas as forças políticas do Rio de Janeiro acham necessário fazer algum tipo de acordo com integrantes do crime organizado, de maneira menos ou mais direta.

Mesmo o presidente Lula chegou a entregar um ministério para a deputada Daniela do Waguinho, mulher do prefeito de Belford Roxo, cujos contatos com milicianos – inclusive a família Brazão – são bastante conhecidos, como recompensa pelo apoio dado na eleição.

Um acerto com a bandidagem parece ser uma necessidade para o êxito político no estado. Isso se tornou um elemento básico do realismo na política local.

Há os que estão simplesmente a serviço de grupos do crime organizado, há partidos que dão mandatos a seus líderes – como o União Brasil, que agora se apressa para expulsar Chiquinho Brazão, como se fosse uma surpresa a revelação de quem ele é. (O suplente que assumirá em seu lugar é Ricardo Abrão, sobrinho do bicheiro Aniz Abraão David.)

E há os que se acomodam ao “mundo tal como é” e entendem que, sem um acerto aqui ou outro lá, não poderão sequer fazer campanha nos territórios controlados por tal ou qual facção.

Isso inclui o PT do Rio de Janeiro, que tem bons quadros, mas também, como todo mundo sabe, tem muitas lideranças que se orientam por um pragmatismo (palavra bonita para “oportunismo”) sem qualquer limite.

Quem se dispõe a enfrentar vai sofrer consequências.

Este é o recado que o assassinato de Marielle Franco quis passar. Ela pagou com a vida a ousadia de fazer um mandato popular.

O amálgama de traficantes, pastores, grileiros, milicianos e bicheiros forma um grupo de pressão que se espraia por toda a máquina estatal e garante impunidade para as violências praticadas.

No caso de Marielle e de Anderson, a comoção nacional e a mobilização constante fizeram com que o resultado fosse diferente. Ainda assim, eles tiveram força para estancar as investigações por seis anos. E foi preciso um novo governo federal para fazer a diferença.

O fato de que os diferentes setores políticos acham melhor se render a esse realismo do que fazer um pacto para limpar a política carioca e fluminense desse tipo de influência é uma bela demonstração de como os nossos costumes políticos estão decaídos.

A gangsterização da política no Rio de Janeiro se espalha pelo Brasil – foi até exportado um governador para São Paulo. Sintomas já são sentidos em muitos lugares.

Não se trata de uma questão menor, não se trata de nenhum tipo de moralismo. Os efeitos da presença do crime organizado na política, por meio de seus porta-vozes e de acordos aos quais lideranças políticas diversas se submetem, é algo que destrói a possibilidade de estabilização do sistema e de construção democrática.

Bolsonaro é cria desse caldo. Retirá-lo da presidência tinha também o intuito de ampliar nossa capacidade de enfrentar essa situação. O avanço na investigação do assassinato de Marielle é um primeiro passo importante. Que venham outros.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Luis Felipe Miguel

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