Justiça de transição para a sindemia de Covid-19, por Jânia Saldanha

O sonho mais acalentado de Jair Bolsonaro é o de safar-se das responsabilidades incontestáveis que pesam sobre sua liberdade

Sergio Lima/Poder360

Justiça de transição para a sindemia de Covid-19

por Jânia Saldanha[1]

Em texto recente, Vladimir Safatle[2] afirma que se tivéssemos realizado uma efetiva justiça de transição com relação às atrocidades praticadas por agentes do Estado durante a ditadura civil-militar no Brasil, “nada do que aconteceu conosco nos últimos anos teria ocorrido”. De fato, ele tem razão, especialmente ao dizer que não falar do passado recente – da tragédia da pandemia, dos crimes de responsabilidade a ela associados e de outros de distintas naturezas cometidos pelo ainda locatário do Planalto – consistirá na reprodução de políticas de esquecimento já praticadas, cujas consequências no futuro poderão ser equivalentes a essas das quais somos testemunhas e vítimas hoje.

Ao fazer análise acerca dos prováveis nomes para assumir o Ministério da Defesa no próximo governo, Luis Nassif[3] lembra do risco que representará para o futuro do que ainda resta da democracia brasileira,  se a mesma lógica de flexibilização que foi adotada para a Lei de Anistia repetir-se para os crimes praticados pelo atual Presidente e por membros de sua equipe.

O otimismo e a ingenuidade podem ser, em momentos cruciais da história, maus mestres. Ora, enquanto perdurar no País o descaso às conclusões e recomendações da Comissão Nacional de Verdade[4], enquanto não for reinstituída a Comissão de Anistia para as vítimas, suas famílias e seus próximos, a qual foi simplesmente aniquilada no atual governo, e enquanto o Supremo Tribunal Federal não julgar o recurso interposto na ADPF 153[5], cuja decisão julgou constitucional a Lei de Anistia e, neste sentido, em direção diametralmente oposta à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros c. Brasil (caso Araguaia)[6], que considerou a referida Lei contrária à Convenção Interamericana de Direitos Humanos e aos standards interamericanos sobre a matéria, não nos aproximaremos de algo parecido com a democracia que tanto almejamos.

Em recente declaração proferida em Nova York o Ministro do STF Dias Toffoli[7] afirmou que “não podemos nos deixar levar pelo que aconteceu na Argentina, uma sociedade que ficou presa no passado, na vingança, no ódio e olhando para trás, para o retrovisor, sem conseguir se superar”. Tal manifestação é extremamente preocupante pelo fato de ser ele o relator da ADPF 153, ação essa que cria raízes no STF desde 29/04/2010, data do acórdão, por encontrar-se à espera do julgamento de recurso de embargos declaratórios, a última esperança de que a decisão seja modificada e, derradeiramente, respeite a coisa julgada internacional que decorre da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mas ela também é impactante na medida em que estimula a permanência e a normalização dos elevados índices de violência nas instituições do Estado, como ocorre de maneira pública, notória e comprovada na ação das polícias, quanto colabora com a perpetuidade do conservadorismo de parcela das instituições do sistema de Justiça.

Na hora em que o sonho mais acalentado de Jair Bolsonaro é o de safar-se das responsabilidades incontestáveis que pesam sobre sua liberdade, comprovadas – sendo tais comprovações o seu mais aterrador pesadelo – nos mais de 150 pedidos[8] de impeachment apresentados à presidência da Câmara dos Deputados, nas denúncias apresentadas junto ao Tribunal Penal Internacional[9] por crime de genocídio e crimes contra a humanidade,  nos nove crimes que lhe foram atribuídos pela CPI da Pandemia[10], pela fragorosa condenação proferida pelo Tribunal dos Povos[11] e nas mais de uma centena de denúncias apresentadas ao Procurador Geral da República[12], amplamente noticiadas pela mídia, o que o País precisa não é de esquecimento e sim da mobilização das instituições e da sociedade civil não apenas para que o direito seja aplicado ao atual Presidente e à sua entourage, quanto para que, no novo governo, medidas de justiça de transição sejam adotadas para dar respostas à sociedade sobre os atos criminosos praticados durante a sindemia[13]  de COVID 19.

Assim, o que se espera é justamente que, contrariamente à adoção de medidas de complacência ou de anistia aos crimes praticados por Jair Bolsonaro e comprovados pela CPI da Pandemia, o Brasil mobilize medidas de justiça de transição[14] para impor responsabilidades, reparar as vítimas, fazer justiça e produzir memória, uma vez que se o passado e sistemático desrespeito aos direitos humanos mantinha-se em parte velado, tornou-se uma enormidade escancarada durante o governo do locatário no poder e exacerbou-se durante a sindemia na forma de negacionismo da doença de COVID-19 e da má gestão criminosa da crise sanitária, cujo resultado trágico foi a morte de aproximadamente setecentas mil pessoas. Mas, pensamos, talvez esses mecanismos tradicionais de justiça de transição não sejam mais os únicos a dar respostas adequadas aos danos transcendentais produzidos em contextos de crises sindêmicas nesta era do Antropoceno[15] e que, como sabemos, ultrapassam os contornos dos Estados Nação, porquanto dizem respeito e impactam a comunidade humana

Vivemos em contextos de novas crises.  Se, de fato, é incontestável que características marcantes dos regimes autoritários são reproduzidas de forma mais sofisticada e insidiosa na reemergência dos fascismos – então, ainda assim, velhas crises -, o que experimentamos durante a crise sindêmica que, sabemos, ainda não chegou ao fim e, segundo os cientistas, será sucedida por outras, apela para nossa capacidade criativa e de resistência para crises novas. Criativa, para identificarmos, como é nosso propósito, novas medidas de justiça de transição[16] adequadas às sindemias, capazes de antecipar futuro de maneira a prevenir a proteção dos humanos e não humanos. A utilidade da “crisologia”poderá ser determinante para isso, para tomar de empréstimo a genial proposta de Edgar Morin[17] apresentada nos anos 70, isto é, entendida a crise como uma “constelação de conceitos”e para a qual devemos estar preparados. De resistência, para impedir a permanência da arquitetura de impunidade e colocar no banco dos réus os responsáveis pelos crimes praticados durante essas novas crises, quanto fazer da devida diligência uma obrigação que os atores públicos e privados devem adotar para responder a elas de acordo com os standards internacionais protetivos de direitos humanos. Sem isso, não construiremos a democracia do tempo presente, tampouco do futuro.


[1] Professora do PPG em Direito da UNISINOS. Membra da Secretaria de Relações Internacionais da ABJD. Advogada.

[2] SAFATLE, Vladimir. Anistia nunca mais. Disponível em: https://www.viomundo.com.br/politica/vladimir-safatle-anistia-nunca-mais.html

[3] NASSIF, Luis. Xadrez de 29 de novembro: o golpe está próximo da vitória. Disponível em: https://jornalggn.com.br/politica/xadrez-de-29-de-novembro-o-golpe-esta-proximo-da-vitoria-por-luis-nassif/

[4] CNV. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/

[5] STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2644116

[6] CrIDH. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf

[7] DIAS TOFFOLI, José Antônio. Disponível em: : https://www.google.com/search?q=instituto+LIDE+fala+de+Dias+Toffoli+em+Nova+York&rlz=1C5CHFA_enBR724BR1004&sxsrf=ALiCzsYjd0wVj2m2qYmwbPqve6OX2nXohA%3A1669837268044&ei=1LGHY66nAsHZ5OUP9fmhiA8&ved=0ahUKEwiu4cbJ1Nb7AhXBLLkGHfV8CPEQ4dUDCBA&uact=5&oq=instituto+LIDE+fala+de+Dias+Toffoli+em+Nova+York&gs_lcp=Cgxnd3Mtd2l6LXNlcnAQAzIHCCEQoAEQCjoHCCMQ6gIQJzoECCMQJzoLCAAQgAQQsQMQgwE6CAguENQCEIAEOggILhCxAxCDAToECAAQAzoICAAQsQMQgwE6BQgAEIAEOgsILhDUAhCxAxCABDoICC4QgwEQsQM6BwgAELEDEEM6BggjECcQEzoGCAAQChADOgQIABBDOgoILhDHARCvARBDOgsILhCABBDHARCvAToICAAQgAQQsQM6CAguEIAEENQCOg4ILhCvARDHARCxAxCABDoRCC4QgAQQsQMQgwEQxwEQrwE6DgguEIAEEMcBEK8BENQCOgcIABCABBAKOggIABAWEB4QCjoGCAAQFhAeOggIABAIEB4QDToFCCEQoAFKBAhBGAFKBAhGGABQzAVYnlpgplxoAnAAeACAAaMCiAHYQJIBBjAuMzkuOZgBAKABAbABCsABAQ&sclient=gws-wiz-serp#fpstate=ive&vld=cid:9f1be69e,vid:gc8r946cllk

[8] Disponível em: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/

[9] Disponível em: https://www.unilim.fr/iirco/2021/06/09/le-procureur-de-la-cour-penale-internationale-saisi-dune-nouvelle-plainte-visant-jair-bolsonaro-et-quatre-de-ses-ministres/

[10] SENADO FEDERAL. CPI Pandemia. Disponível: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2441

[11] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6UHFwWXAyFY

[12] Disponível: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/07/30/sob-aras-pgr-arquivou-mais-de-80-pedidos-de-investigacao-contra-bolsonaro.htm

[13] Usamos o termo sindemia por entendermos que abarca um universo de causas e consequências mais amplo do que o das pandemias. Essa afirmação consta do Projeto Sindemia e direitos humanos: mecanismos transicionais e responsabilidade estatal e corporativa, financiado pelo CNPQ e que está sob nossa coordenação.

[14] Esta é a posição e a tese que os pesquisadores do Projeto Sindemia e Direitos Humanos defendem.

[15] BOURG, Dominique. Une nouvelle Terre. Paris : Puf, 2022.

[16] Esse é o empenho coletivo do grupo envolvido com a pesquisa Sindemia e Direitos humanos: mecanismos transicionais e responsabilidade estatal, o qual é o autor da proposta de criação de justiça de transição para a sindemia de Covid-19.

[17] MORIN, Edgar. Pour une crisologie, 1976. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-communications-2012-2-page-135.htm

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