O tempo do judiciário e a higienização do golpe, por Salah H. Khaled Jr.

Enviado por Henrique O.

Do Justificando

A suspensão de Cunha mostra que o tempo do Judiciário é o tempo de exceção

Por Salah H. Khaled Jr.

A novela chegou ao fim: depois de muitos e muitos meses, o STF surpreendentemente determinou a suspensão do mandato de Eduardo Cunha, em “decisão excepcionalíssima”. Supostamente a gravidade da situação autoriza a medida, cuja legalidade é – na melhor das hipóteses – indefinida e borrada. Barroso elogiou a decisão de Teori e declarou: “Eu não quero viver em outro país, eu quero viver em outro Brasil”.

Fascinante. Pompa e melodrama. Certamente algo propício para mais um capítulo da atual epopeia de salvação nacional: um novo cordeiro é imolado como sacrifício no altar, em clara tentativa de higienização do golpe no imaginário popular. É tentador comemorar a ruína de Cunha. Não deixa de ser irônico que alguém que tenha empregado tantos estratagemas para violar a legalidade finalmente venha a sucumbir diante de uma decisão tão questionável como muitas de suas próprias. O legado de Cunha é de destruição. A história retratará com as devidas cores o que representou sua passagem pela presidência da Câmara dos Deputados. Mas não caia nessa não tão sutil armadilha. O criador se foi, mas a obra permanece: foram os dedos, mas restam os amaldiçoados anéis, em estranho trocadilho golpista.

Não sei qual é o Brasil que Barroso espera viver. Certamente não é o mesmo que eu imagino. Não consigo me entusiasmar com a lenta e gradual derrocada de tudo que foi construído após a restauração democrática. Uma geração inteira de juristas oxigenados constitucionalmente e comprometidos com direitos fundamentais está testemunhando, com pesar, a falência do respeito pelas regras do jogo. Estamos trocando a legalidade democrática pelo velho jeitinho, nossa única norma fundamental. O que importa é alcançar a linha de chegada. A corrida maluca não conhece outra regra, ainda que o decisionismo sempre encontre suas próprias razões, que somente convencem os incautos e coniventes com práticas de exceção.

O presidente do STF, Ricardo Lewandowsky, foi incisivo: “o tempo do Judiciário não é o tempo da política nem é o tempo da mídia”. A afirmação é contundente, sem sombra de dúvida. Procura diferenciar uma temporalidade “jurídica” de outras temporalidades, tidas como menos rigorosas, apressadas e superficiais. Ela é apresentada no contexto do que visivelmente soa como uma protelação injustificável: por que somente agora alguma medida foi tomada, se o pedido de afastamento de Cunha, do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, está nas mãos de Teori Zavascki, relator da Lava-Jato, desde dezembro? Como Cunha pode ter permanecido como presidente da Câmara dos Deputados e conduzido o processo de impeachment, quando supostamente pesam contra ele indícios tão flagrantes que justificam a”excepcionalíssima” suspensão de seu mandato? Não parece razoável crer que tais elementos justificariam seu afastamento imediato da presidência da Câmara, para que não existissem fundados argumentos de utilização do processo de impeachment como instrumento de vingança pela falta de apoio no Conselho de Ética? Não deve o “tempo” do Judiciário zelar pela estabilidade do Estado Democrático de Direito e a preservação da legalidade, impossibilitando que interesses pessoais valham mais do que as regras do jogo?

Sem dúvida são ótimas perguntas. Não saberia dizer qual é o “tempo” do Judiciário, qual é o “tempo” do Supremo e muito menos qual o critério empregado para definir o “ritmo” da balada nesta festa estranha e repleta de gente golpista. Parece que, ultimamente, ele é determinado pelo sabor da ocasião. De vez em quando corre, de vez em quando mal sai do lugar. E de vez em quando “faz de conta que não vê, que não é com ele”: tempo de indiferença diante da legalidade democrática. Tenho certeza que muitos escreverão sobre o intrigante “timing” dessa decisão, como muitos escreverão sobre a “excepcionalíssima” suspensão do mandato de Cunha (que”não pode virar regra”, como os próprios ministros enfatizaram). Afastamento da presidência é uma coisa. Suspensão de mandato é algo bem diferente e extremamente questionável. Ou deveria ser. E isso vale para o mandato de Cunha como vale para qualquer outro, não importa a circunstância, justificativa ou intenção de sacrifício para tentar produzir uma ilusão de igualdade. Ou vamos adotar uma forma de tratamento específica conforme determinar o critério moral de ocasião?

Devo soar cansativo, sempre o mesmo e velho argumento de defesa da legalidade, cada vez mais fora de moda. Talvez eu deva cair na “real”: nada tem sido exatamente como “deveria ser” nos últimos meses. São tantas e tantas “liberalidades”, que nos acostumamos com violações. A exceção virou rotina e não causa mais espanto. Se as coisas fossem como “deveriam ser”, não parece nada provável que Cunha pudesse ter acolhido e conduzido o processo de impeachment, como se nada pesasse contra ele. “Aparentemente”, ele desfrutava de uma espécie muito particular de presunção de inocência, cujo prazo de validade finalmente expirou, como determinado pelo infame “tempo do Judiciário”. Por sinal, se as coisas fossem como “deveriam ser”, o próprio STF não teria brincado com a presunção de inocência, reiterando as premissas do processo penal fascista. Se as coisas fossem como “deveriam ser”, não creio que Moro pudesse ter ilegalmente vazado conversas de autoridades com foro privilegiado sem sofrer qualquer espécie de sanção. Não teria transformado a Operação Lava-Jato em um instrumento de desestabilização da própria República, que encoraja decisionismos pelo país afora. Se as coisas fossem como deveriam ser, juízes não bloqueariam o Whatsapp ou proibiriam reuniões estudantis com pautas “subversivas”. Se as coisas fossem como “deveriam ser”, a Assembleia Legislativa de Alagoas não teria aprovado um projeto que amordaça professores da educação básica, proibindo que discutam política e religião. Se as coisas fossem como “deveriam ser”, nossos parlamentares não votariam com base na própria subjetividade: observariam se de fato estão presentes os requisitos para o crime de responsabilidade. Se as coisas fossem como “deveriam ser”, não estaríamos prestes a testemunhar um ficha-suja como Temer tomar posse sem eleição e sem ter tido um único voto da população. O descompasso entre realidade e legalidade indica que a noção de limite foi obliterada pelas razões e interesses individuais dos protagonistas do momento.

A coleção de horrores e destroços acumulados nos últimos meses realmente é espantosa. Mas os adeptos do pragmatismo oportunista da moral de rebanho sempre comemoram a queda dos eventuais inimigos, sem levar em conta que podem ser os próximos da fila: alvos das baterias do Judiciário e do Legislativo, repentinamente transformados em lugares de proliferação de um detestável protagonismo.

E tem gente que ainda diz que “estamos consolidando a democracia” e “as instituições estão funcionando”. Realmente estão funcionando: que belo estrago estão fazendo. Quanto mandonismo. Quanto ativismo judicial. Quanto empreendedorismo moral. Este é o outro Brasil? Parece mais do mesmo velho mofo de sempre. Mas com jeitinho dá pra levar. Sempre funcionou assim. Nós é que nos iludimos achando que o tempo do Judiciário poderia ser o tempo do Direito, enquanto ele é tempo de exceção. Em última análise, talvez os dois sejam a quase a mesma coisa. O resto é verniz para dar ar de legitimidade para a decisão.

Já escreveram que o STF não barra o golpe porque faz parte dele. Sua contribuição é inegavelmente inestimável. Darão a chancela novamente, como em 64? Terão a audácia de bradar que contribuem para a fundação de um piegas novo Brasil? Eu espero que não. Mas está cada vez mais difícil ter qualquer confiança neste Supremo, que está falhando justamente naquela que deveria ser a sua maior hora. O sacrifício de Cunha não dá qualquer credibilidade para ele. Pelo contrário. A democracia está sangrando. Ninguém ira estancar a hemorragia? Tristes tempos em que vivemos.

Grande abraço e bom fim de semana!

Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.

Redação

16 Comentários

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  1. Excelente. Coitado do stf.

    Restou alguma coisa para este tal de supremo? Chamam-no de golpista e ele… Quem sabe se vai cassar o golpe contra a Dilma em uma reunião de mergência em 2027, já que ele tem um tempo diferente.

    Na verdade o moro destruiu o stf a muito tempo.

  2. Parabéns pelo Artigo. O STF

    Parabéns pelo Artigo. O STF poderia ter estancado a hemorragia na Democracia hámuito tempo. O tempo do Judiciário só  é compatível com o tempo do golpe. Infelizmente o STF é co-autor do golpe. Só resta a resistência das ruas.

  3. Foi golpe?

     

      Pois é…..Parece que deram um “golpe” no Cunha.  Ah, mas tá bom! Foi um “golpe do bem”. E contra um “homem mau”! E segue o baile……

    1. Pois é.

      Como se o cunha não estivesse dando golpes diários para evitar que o processo contra ele ande. Na verdade ele deveria ter sido preso, s houvesse justiça e coerência, pois ele obstrui o andamento de trabalhos relativos à justiça. Ou não?

  4. Grande artigo. É

    Grande artigo. É impressionante a rapidez do colapso da nossa democracia. É impressionante como esses ministros do supremo não se sentiram na obrigação de defendê-la. Se tivessem assumido suas responsabilidades logo no início, se tivessem dito claramente que o nosso sistema presidencialista não admite um golpe parlamentar disfarçado de impedimento, não estaríamos vivendo esse colapso.

    Mas todas essas “elites”, as que conspiram, as que se omitem, as que se acovardam, estão esquecendo um “pequeno” detalhe. O povo. O povo que já está nas ruas. E as manifestações, ocupações, etc. só tendem a aumentar quando “a ponte para o futuro” começar a ser colocada em prática. E teremos eleições em outubro. Será a hora do troco!

  5. Excelente

    Maravilhoso o texto desse grande Professor, apresenta fatos incontestáveis e sua argumentação é precisa, parabéns Henrique O por compartilhar conosco esse excelente texto!

  6. Excelente

    Como sempre Salah  nos traz um excelente texto. Apenas a insensatez poderia nos fazer crer que tudo isto seguiu qualquer rito legal, o qualquer lógica jurídica, ou ética ou moral. Janot , aquele que provavelmente é um dos chefes deste golpe, me parece ter trazido Cunha sob controle. A todo momento dizendo que o chefe sou eu.,a qualquer momento posso prendê-lo. Não fuja do script. Isto porque o golpe tem várias caras e vários interesses conflitantes, mas um objetivo comum. Mas Janot  não faria isto sozinho, um Teori  e todo um supremo tão rápido no caso Delcídio se transforma numa lesma no caso Cunha.  Mas uma lesma que tem um timing e provavelmente vai se debruçar muito lentamente sobre a montanha de evidências sobre Cunha, e Aécio e  em nome do rigor e da excepcionalidade , vai exigir diligências sem fim. Enquanto isto a delação de Delcídio  já é nas palavras de Janot um conjunto de provas irrefutáveis de uma organização criminosa. que só pode ser instituida sob o comando de Lula, aquele que ora é o homem mais poderoso do Brasil, mas que  não consegue sequer assumir o cargo de ministro. E assim eu vou discordar de Lula, quando falou da covardia dos ministros, eu diria que o problema não é de covardia é de ma fé. Qualquer leigo pode ver que as peças acusatórias da procuradoria geral da República não podem ser sequer consideradas como peças jurídicas. São peças midiáticas com interesses  escusos ou explícitos, pois de há muito já perderam totalmente o pudor e fazem todo tipo de ato explicitamente. 

  7. O tempo do judiciário e a higienização do golpe, por Salah H. Kh

    A omissão do STF no golpe em curso“:

    Na verdade, precisamos lembrar o outro lado do golpe, que poderia ser sofrido pelo Poder Judiciário, que é a regulamentação das mordomias injustificáveis.

    1- Por que os Juízes têm duas férias por ano? Trabalham em condições insalubres? Desumanas? Expostos a raios solares intensos? O que justifica?
    Nada justifica as duas férias, que aliás poderia ser um direito de diversos trabalhadores como os rurais, calceteiros, etc (desde que existisse uma justificativa verdadeira).

    2- Por que Juízes não têm expediente definido em lei? Chegam e saem a hora que querem, isso se quiserem ir trabalhar.

    3- Por que eles não têm carga horária semanal a ser cumprida?

    4- Por que não se submetem às mesmas regras de aposentadoria dos demais trabalhadores?

    Ora, se o STF contrariar os legisladores corre um sério risco de ter as conquistas injustificáveis retiradas.
    E ainda tem a agravante de que um Juiz é servidor de carreira, diferentemente de deputados, Senadores, Prefeitos, etc… Que vão se atribuir eternamente o direito a todas as mordomias que têm.
     

  8. Um arftigo simples e magnífico!!!!

    Perfeito o artigo….. de fato, esse tal “tempo jurídico” de que fala Lewandowski soa como uma falácia tola, arrogante, uma desculpa esfarrapada em tentativa idem de encobrir o pior dos crimes dos homens que ocupam um cargo de tamanha envergadura: a omissão!

    Soa tão cínico quanto o argumento dos economistas que nos tentavam fazer crer que para que a miséria secular no Brasil de milhões de pessoas acabasse, primeiro “o bolo tinha que crescer”…… afinal, o tempo da “Economia não é o tempo da fome….”  –  E tínhamos em Betinho o contraponto humano, ético, verdadeiro, senhores ministros do Supremo: “quem tem fome tem pressa!”  –  Ora, do mesmo modo, quem quer DEMOCRACIA E LEGALIDADE E MENOS CINISMO E BANDIDAGEM tem pressa também.

    Ou nas circunstâncias de exceção o Judiciário cumpre seu papel e age no tempo que dele precisa a nação, ou é o mesmo que não termos justiça alguma quando aqueles que a estupram agem com tanta liberdade.

    Não é uma questão de tempo, prezado ministro Lewandowski, a quem admiro por outras ações, é questão de NECESSIDADE  IMPERIOSA, de ações que impeçam um golpe de Estado. 

    Se isso não é motivo para uma adequação do tal tempo jurídico, o que seria?

  9. texto muito legal. título

    texto muito legal. título sinteticamente explicativo sobre a infamia do golpe…

    os golpistas criaram uma loja de horrores onde o dono implantou

    sementes de seres monstruosos que começaram a deglutir e devorar

    seus adversários e agora parece que aos próprios criadores da terrorífica loja…

    agora devem criar a filiar infernal do magazin dos suicídios onde a maioria deve

    – espero –

    desaparecer insepultos no lixo da história..

    me lembrei de” incidente em antares”, de erico verissiimo, de

    63, pré-golpe de 64, memorável

    duas amílias da cidade brigam politicamente

    um dia sete membros de  uma delas morre mas ficam insepultos devido a uma greve dos coverios…

    aí os defuntos passam a nada “temer”

    -sem medo de represálias – e começam a vasculhar a intimidade de amigos e parentes…

    dizem ue há semelhanças com a realidade do tempo de 63… falta aprofundar…

    e terá semelhanças com o momento atual?

  10. Levar vantagem

    Alguem ainda se lembra da propaganda do Gérson ? “Levar vantagem em tudo”. Até parece que foi ontem, mas já deve ter uns 30 anos ou mais.

    Mas a mensagem dita por ele, parece que colou em todos e vai sendo transmitida geneticamente. Aproveitam de uma governante que estava c/ dificuldades de governar,(qual seria a razão heim?)  que levou a vaia mais feia que já vi , em pleno maracanã, que já apanhou muito na vida, além do fato de ser MULHER, para praticar um ato vil, muito bem urdido lá fora e executado aqui dentro.

    Tão bem urdido foi e com pessoas certas , colocadas em lugares estratégicos, que a presidente vai ser destituída do cargo. A troco de que ? Vantagens pecuniárias e de poder . E o Brasil que se lasque, afinal foi sempre assim.

    Se o STF tivesse o mínimo amor ao país e à Constituição, deveriam todos eles pedir aposentadoria já ! Afinal o Grande JB agora não fica o dia inteiro no Twiter dando pitacos sem ser consultado ?

    O STF não podia ser diferente do congresso e do senado, do PSDB/DEM e do PMDB e do Juiz Moro, o que faz investigação seletiva, pois carregam o mesmo DNA : Levar vantagem em tudo

    E parabéns ao autor do post ! muito bom.

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