Operação ‘mãos limpas’ completa 30 anos com legado negativo

E a "mãos limpas" inspirou a autoapelidada "lava jato" no Brasil, que igualmente promoveu abusos e desrespeitou o devido processo legal.

Operação mãos limpas promoveu a ascensão de Silvio Berlusconi, que se envolveu em diversos escândalos

do ConJur

Operação ‘mãos limpas’ completa 30 anos com legado negativo

Por Sérgio Rodas

A operação mani pulite foi deflagrada há 30 anos na Itália. Embora tenha desvendado um esquema de corrupção envolvendo políticos e empresários, a investigação não extinguiu a prática. Seu legado é majoritariamente negativo, pois estimulou a entrada de outsiders na política — que mostraram não ter práticas tão diferentes dos políticos “tradicionais”. E a “mãos limpas” inspirou a autoapelidada “lava jato” no Brasil, que igualmente promoveu abusos e desrespeitou o devido processo legal.

Em 17 fevereiro de 1992, Mário Chiesa, diretor de um asilo de Milão filiado ao Partido Socialista Italiano, foi preso sob a acusação de achacar empresários em troca de suborno. De início, a detenção não gerou muito barulho e foi pouco noticiada. Ainda assim, o então primeiro-ministro Benito Craxi, também do PSI, foi a público criticar o aliado. Ao canal de televisão Tg3, o chefe de governo disse que Chiesa era um “ladrãozinho” que levantava suspeitas sobre um partido que nunca tivera um membro condenado por crimes contra a administração pública.

Irritado com as declarações de Craxi, Chiesa declarou aos procuradores que queria colaborar com as investigações e “esvaziar o saco” — ou seja, contar tudo o que sabia. E ele cumpriu sua promessa: revelou que o albergue que dirigia era usado havia 13 anos para captar propina para o PSI, explicou as fraudes na construção da linha de metrô de Milão e apontou superfaturamento na reforma do estádio San Siro para a Copa do Mundo de 1990. O volume de informações que forneceu aos investigadores foi tão grande que ele passou a ser chamado de “o Pavarotti dos delatores”.

A delação de Chiesa gerou um efeito dominó, e o número de colaboradores passou a crescer a cada dia. A operação, comandada pelo magistrado do Ministério Público Antonio Di Pietro (na Itália, promotores e juízes integram a mesma carreira) hipertrofiou-se e desvendou um amplo esquema de fraudes em obras públicas, doações de empresários a políticos em troca de favores e desvio de recursos de empresas estatais.

Mais de 5 mil pessoas foram investigadas no caso, e cerca de 900 foram presas em algum momento. Além disso, a operação levou à extinção legendas que dominavam a política, como PSI, Democracia Cristã, Partido Social-Democrata Italiano e Partido Liberal Italiano.

Mas a operação cresceu demais. Com a reputação manchada pelos métodos abusivos dos funcionários da Justiça, pelo menos seis acusados suicidaram-se. Os políticos, empresários e a população italiana em geral passaram a ficar incomodados com a operação, que foi perdendo apoio. Além disso, parlamentares aprovaram diversas leis para conter abusos.

As eleições subsequentes foram vencidas por um autoproclamado outsider, o magnata Silvio Berlusconi. Populista, ele se envolveu em vários escândalos nos nove anos ininterruptos que governou a Itália.

Legado da operação
O jurista Lenio Streck afirma que o legado da operação mãos limpas é ruim, porque proporcionou a entrada na política de outsiders, oportunistas, pastores e até um palhaço (Beppe Grillo).

“Veja o nome dos partidos: 5 Estrelas, Força Itália etc. Nem nome de partido mais tem. Berlusconi é uma espécie de Bolsonaro italiano — embora haja vantagens para o italiano. Mas o espaço criado pela operação mãos limpas propiciou Berlusconi e os oportunistas.”

Nessa mesa linha, o ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil José Roberto Batochio opina que Berlusconi é o principal legado da operação. “Esse foi o legado para a Itália, com a completa aniquilação de sua estrutura político-partidária, sob o argumento do combate à corrupção.”

Já o advogado Aury Lopes Jr. lembra que a corrupção não só não acabou na Itália como ficou mais cara e refinada. Segundo ele, operações policiais e do MP não bastam para extinguir a corrupção.

Itália x Brasil
No Brasil, integrantes do consórcio lavajatistas por diversas vezes deixaram claro que se inspiravam na mani pulite. Em artigo de 2004, o ex-juiz Sergio Moro elogia a operação. No texto, declara que as investigações na Itália foram um “momento extraordinário”. 

Ao analisar a “mãos limpas”, Moro apontava que não é aceitável deter alguém para obter confissões. A prisão provisória só pode ser efetuada se seus requisitos estiverem presentes, ressalta. Contudo, uma vez feita a prisão, não há problema em buscar uma delação, opinava o ex-juiz federal.

“Caso isso ocorra, não há qualquer óbice moral em tentar-se obter do investigado ou do acusado uma confissão ou delação premiada, evidentemente sem a utilização de qualquer método interrogatório repudiado pelo Direito.”

Ele também diz que, em grandes investigações, é necessário usar a imprensa para “deslegitimar” os poderosos.

“Na verdade, é ingenuidade pensar que processos criminais eficazes contra figuras poderosas, como autoridades governamentais ou empresários, possam ser conduzidos normalmente, sem reações. Um Judiciário independente, tanto de pressões externas como internas, é condição necessária para suportar ações judiciais da espécie. Entretanto, a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial.”

Para Batochio, a “lava jato” foi um “copia e cola” da “mãos limpas”. Aury Lopes Jr. destaca que as duas operações lesaram setores importantes da economia e promoveram ataques perigosos à política. Lenio Streck ressalta a ascensão de outsiders autoritários.

“São muitos os pontos em comum. Alguns juízes italianos foram processados. Por aqui, ainda não foram, com exceção do [ex-procurador da República Diogo] Castor. Falo juízes lato sensu, incluindo MP, como na Itália. O papel da mídia é outro ponto que liga as duas operações. Sem a conivência da mídia, Moro não teria assumido esse protagonismo que, agora vemos, foi uma fraude. Mas o mais grave — e que une as duas operações — é a criação da criminalização da política, o ódio da política. Isso paradoxalmente fez com que justamente um bando de outsiders assumisse a política. É paradoxal isso, mas ao mesmo tempo é lógico. Carla Zambelli, Daniel Silveira e quejandos não se elegeriam sem o amaldiçoamento da política”, avalia Lenio.

Batochio ainda ressalta  que a “lava jato” promoveu “a aniquilação da indústria da construção civil brasileira, com a eliminação das empreiteiras de grande porte, então líderes globais e estrelas tecnológicas no cenário internacional, a espoliação do pré-sal brasileiro (maior reserva petrolífera de que se tem notícia), a calamitosa dizimação de cerca de 12 milhões de empregos brasileiros e a contaminação do nosso sistema democrático de garantias processuais civilizadas pelo perverso vírus do autoritarismo punitivo, tudo ao argumento do falaz e demagógico ‘combate à corrupção’, a mais doce de todas as mentiras políticas (que o digam Hitler, Mussolini e a célebre ‘República’ meridional…)”.

Além disso, diz o advogado, a “lava jato” “viabilizou esse portento que atende pelo nome de senhor presidente… uma tragédia! E, por um longo tempo, nem os mais modernos antivirais nos livrarão dessa enfermidade política persistente e mortal que é o autoritarismo”.

Atuação política
Em um primeiro momento da “mãos limpas”, o magistrado do MP Antonio Di Pietro virou uma espécie de herói nacional da Itália. Algo semelhante ocorreu no Brasil com o procurador Deltan Dallagnol e, em maior grau, com o juiz Sergio Moro.

A glorificação de membros do MP e, especialmente, magistrados é “perversa” para a sociedade, declara Lopes Jr. “Juiz não é herói. Não se combate o crime cometendo crimes. O que Sergio Moro fez é a antítese do que um juiz deve fazer. O juiz deve respeitar as regras do devido processo legal.”

“Juízes não foram concebidos para serem glorificados. Foram concebidos para realizar a justiça. Quanto mais discreto, sensível, técnico e humanitário for o juiz, maior a sua identificação com a sua missão, que é a de realizar justiça, compondo conflitos de interesse na sociedade, sem nenhuma intenção de protagonismo”, afirma Batochio.

Streck tem visão semelhante e critica o uso da imagem de “herói” por Moro e Dallagnol para obter benefícios pessoais.

“Triste pais que precisa de heróis desse tipo. O procurador usou a operação para vender palestras. Só não conseguiram fazer uma fundação de bilhões porque a sua chefe lhes deu um basta indo ao STF para anular a fundação. O juiz se candidatará a presidente e agora dá palestras pagas para falar de si mesmo. O Brasil é ambíguo: ao mesmo tempo é só para profissionais, mas ao mesmo tempo se mostra como um ‘país de fancaria’, para usar uma expressão de Machado de Assis.”

Aproveitando a popularidade conferida pela “mãos limpas”, Di Pietro deixou a magistratura e ingressou na política, primeiro como ministro (primeiro de Obras, depois de Infraestrutura) do governo Romano Prodi, em 1996. Posteriormente, fundou o seu próprio partido (Valores, de centro-esquerda) e se elegeu deputado, senador e eurodeputado. Após insucessos, deixou a política e se tornou advogado.

Moro seguiu caminho bem parecido. Ele deixou a magistratura federal logo após as eleições de 2018 para ser ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro. Depois de entrar em conflito com o presidente, largou o cargo e passou um ano atuando como consultor. Há pouco, porém, retornou à política, filiando-se ao Podemos para candidatar-se a presidente nas eleições de 2022. Deltan também pediu exoneração do Ministério Público Federal e deverá se candidatar a deputado federal pela mesma legenda.

Ao ingressar na política, Di Pietro comprovou as críticas de que ele promovia lawfare com sua atuação, ressalta Aury. “No Brasil, incrivelmente, Moro e Dallagnol trilham o mesmo caminho na política — a política que eles demonizaram e criminalizaram.”

Para evitar que magistrados e integrantes do MP atuem de forma estratégica e depois colham os frutos dessas ilegalidades na política, Streck e Batochio defendem que se ampliem as restrições para profissionais dessas carreiras se candidatarem a cargos eletivos.

Streck é favorável à implementação de “restrições ‘bem restritas'” e “que funcionem”. “Moro é o exemplo do fracasso institucional. Ele foi o juiz que julgou as empresas, que foram quebradas por ele ser um mau juiz, fez acordos de leniência. Depois essas empresas entraram em recuperação judicial, e quem vai cuidar delas é uma empresa norte-americana com 12 CNPJs cujo sócio é Sergio Moro. Bizarro. E trágico.”

Conforme Batochio, “a democracia precisa identificar e implementar defesas contra essa forma de ataque à pureza ou essência da natureza de nossa democracia”. “Como está, é possível imaginar uma distopia, um país onde magistrados, membros do MP, policiais utilizem sua atuação visando um proveito eleitoral futuro, almejando um alpinismo político na estrutura democrática de um determinado país. Espero que seja só uma distopia”, ironiza o advogado.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador