Sobre a proibição de venda da biografia de Guimarães Rosa

Sugerido por MiriamL

Do blog Pelo Buraco da Fechadura

Carta de Noemia Barbosa

Noemia Barbosa é filha do escritor Alaor Barbosa, cuja obra biográfica sobre Guimarães Rosa foi proibida de ser publicada pelas herdeiras de Rosa.

CARTA A SRA. VILMA GUIMARÃES
O QUE OS PAIS DEIXAM AOS FILHOS

De Noemia Barbosa para Vilma Rosa

Vilma,

Nasci filha de escritor. Doei para o meu pai, desde o meu nascimento, longas horas da minha infância e da minha adolescência. Meus irmãos doaram outras tantas horas. Minha mãe dividiu o marido, durante décadas, com sua amante, a literatura. Mas meu ciúme de criança foi se atenuando, ao longo dos anos, e mais ainda com o chegar da maturidade. Passei a admirá-lo, respeitá-lo, reverenciá-lo. Principalmente, passei a compreendê-lo. Literatura, para o meu pai, o escritor Alaor Barbosa, é e sempre foi devoção. Triste do filho ou da filha que não respeita e nem compreende as devoções paternas.

Assim como você, também sou herdeira de uma obra literária. Grande, extensa, profunda, séria. Fruto de muito trabalho, pesquisa e esforço, feita com paixão e talento. Obra reconhecida e tantas vezes premiada. Falo de quase meio século de produção literária, tempo bem maior do que eu mesma tenho de vida. Meu pai, Vilma, já era escritor antes de eu nascer.

Tenho a sorte de ter meu pai comigo, avô carinhoso das minhas filhas, em almoços de domingo. Vivo, feliz e produtivo. Mas já estou de posse da herança que ele me legou. Foi uma partilha sem desavenças, entre a família e os amigos. Não a herança material, mensurável, quantitativa, que se deposita em conta bancária. Desta, basta-nos o óbolo de Caronte. O que recebi de meu pai foi um norte, um rumo, um equilíbrio, um eterno buscar da verdade. O amor e o respeito por tudo de bom que o ser humano já produziu.

Você, Vilma, também recebeu uma herança. Magnífica herança, portentosa, imensurável. A herança de um gigante. A herança de um gênio, primus interparis. Temos, portanto, responsabilidades. Eu e você. A minha, talvez mais leve, é a de impedir que a herança de meu pai seja aviltada, desqualificada, vilipendiada. Isso, tenha certeza, não acontecerá. As inverdades, calúnias e difamações são muito fugazes e, uma vez reveladas, deixam despida aquela que as inventou. Aliás, é assim que eu vejo você: despida, nua, pelada. Porque mais marcado será sempre o caluniador do que o caluniado. Já a sua responsabilidade, Vilma, é a de não abastardar, não apequenar, não diminuir a sua herança, o seu legado. A obra do seu pai é universal. Não a amesquinhe, não a reduza a herança à estatura da herdeira.

Num país como o nosso, Vilma, tão carente de cultura, tão necessitado de modelos, tão merecedor de exemplos, resta-me recordar as palavras de outro ídolo de meu pai, Monteiro Lobato, cuja biografia para crianças também saiu da máquina de escrever Olivetti que havia na biblioteca lá de casa. Lobato disse que Um país se faz com homens e livros. Você, portanto, quando tenta impedir a existência de um livro, de uma obra literária, espanca a inteligência nacional, ofende a tantos que tombaram em nome da liberdade e do direito de expressão e do livre pensamento! Talvez, Vilma, seu tempo tenha passado. Imagino você mais feliz vivendo uma outra época – mais escura do que a de agora. Talvez sob o Estado Novo ou abrigada pelo AI-5. Imagino você, Vilma, com um carimbo de censura na mão, – arma formidável! – detentora exclusiva da faculdade de permitir ou não que alguém leia, fale ou pense. Para nossa sorte e infelicidade sua, vivemos tempos mais claros. E você, faça o que fizer, diga o que disser, jamais impedirá meu pai de ler, escrever, falar ou pensar. Nem meu pai nem ninguém.
Portanto, Vilma Rosa, não acenda fogueiras com livros. O fumo do livro incinerado escurece uma Nação.

Cada um de nós tem seus próprios ídolos. Sorte do meu pai, que fez boas escolhas. Os seus, parecem ser o Index Librorum Prohibitorum, o Santo Ofício, Savonarola e Torquemada. Talvez, até Herr Goebbels… Eu, que também tenho os meus, cito um deles: você vai amargar vendo o dia raiar sem lhe pedir licença…

Lembre-se, Vilma, você é apenas uma filha. Você é apenas uma herdeira que avilta a herança magnífica que recebeu. Pena constatar que nem tudo que Guimarães Rosa nos deixou é tão bom quanto a sua obra literária.

Noemia Barbosa Boianovsky

Redação

6 Comentários

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  1. Uma carta universal

    Esta carta vale para o Deus Chico Buarque, vale para o Rei Roberto Carlos, vale para o Príncepe Caetano Veloso, vale para todos os censores de agora. Não importam as armas que usam para censurar, se a lei ou as armas, não importa se em regime ditatorial ou democrático, a censura responde sempre e simplesmente pelo nome de censura. Se algo sobre a vida da pessoa revelado na biografia não autorizada for criminoso, que acionem a justiça e exijam a correção do erro ou o ressarcimento pelo crime praticado. É mais digno, justo e coeso do que promover a censura prévia que, de resto, desmoraliza o passado de quem lutou por LIBERDADE, atesta que estes não estavam, de fato, preparados para a radicalização da vida democrática e estimula o retorno dos discursos e práticas arbitrárias contra o livre pensar e a livre produção cultural. Vale lembrar, por fim, que os deuses, reis e príncepes, seja na mitologia seja na literatura seja na história, pretérita e presente, apesar de sua grandiosidade, também podem ser mesquinhos e subterrâneos.

  2. Todos os direitos de uma obra

    Todos os direitos de uma obra pertencem ao seu autor. Todos os direitos de uma vida pertencem a quem a viveu. Uma biografia não autorizada já diz tudo.

    Também não autorizaria alguem em quem não confio fazer uam biografia de meu pai.

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