A Canção dos Nibelungos, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A Canção dos Nibelungos

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Hoje terminei de ler A Canção dos Niberlungos, livro publicado pela Thesaurus (Brasília-DF). O tradutor da obra A. R. Schmidt Patier. O livro apresenta vários problemas de ortografia e de concordância verbal que merecem ser corrigidos numa segunda edição.

A primeira personagem apresentada na obra é Kriemhild “…uma jovem tão nobre e tão bela que em país nenhum poderia ser encontrada outra igual em formosura” (p. 25). Irmã de Gunther, ela “…no seu íntimo afastava a idéia de que, algum dia, pudesse gostar de alguém.” (p. 35). A princesa dos burgúndios despertou o amor de Siegfried e aceitou se casar com ele após o herói ter prestado serviços relevantes ao rei Gunther (derrota dos reis saxões Liudeger e Liudegast e a conquista de Brünhild na Islândia).

Siegfried se casa com Kriemhild e Gunther desposa Brünhild. Após os casamentos, a esposa do rei dos nibelungos se desentende com a rainha dos burgúndios. Para se vingar da adversária, a mulher de Gunther trama a morte de Siegfried. Enganada por Hagen von Tronje, Kriemhild fornece a ele a informação que ele precisava para matar o herói.

Após o covarde assassinato de Siegfried, Kriemhild fica inconsolável e jura se vingar de Hagen. Além de matar seu esposo, o guerreiro de Tronje confiscou o tesouro dos nibelungos que havia sido trazido para Worms. Depois, temendo que aquela fortuna pudesse ser usada para financiar a vingança de Kriemhild, Hagen jogou-o no rio Reno.

Siegmund, o pai de Siegfried, tenta inutilmente convencer Kriemhild a retornar ao país dele, mas ela prefere ficar no país dos irmãos. Etzel (Átila) o rei dos hunos fica viúvo e envia embaixadores a Worms para pedir a mão de Kriemhild.

Após relutar muito, a irmã de Gunther aceita a proposta de casamento. Mas ela só faz isso porque Rüdiger, embaixador de Etzel, se compromete a defender a honra dela com a própria vida. Giselher, um dos irmãos de Kriemhild, tenta convence-la a ficar em Worms. Mas ela segue em frente, pois alimenta a esperança de vingar a morte do esposo.

Ao chegar ao país dos hunos, Kriemhild tudo faz para conquistar os corações e mentes de Etzel e de seus principais guerreiros. Vários anos depois, ela convence o marido a convidar seus irmãos e Hagen von Tronje para uma festa. Sem saber que Kriemhild planeja se vingar dos assassinos de Siegfried, Etzel envia embaixadores a Worms e eles conseguem convencer Gunther e Hagen da boa fé do soberano dos hunos.

Hagen, contudo, prefere ir armado à festa de Etzel. Ele convence os demais a fazer o mesmo. Nem mesmo isso será capaz de salvá-los da ira de Kriemhild. Ao chegarem ao país dos hunos, Gunther e os burgúndios são hospedados por Rüdiger. Alguns dias depois eles rumam para a capital onde são recebidos por Etzel.

Kriemhild convence heróis de Etzel a atacar os visitantes, mas eles resistem bravamente. Depois que vários guerreiros foram mortos em combate os dois lados desejam o fim das hostilidades. Mas a vontade de Kriemhild de se vingar dos assassinos de Siegfried impede qualquer conciliação. “Não vos quero conceder clemência como vós não m’a concedestes. Hagen von Tronje me causou tamanhos sofrimentos que, enquanto viver, não haverá reconciliação. Deveis, todos juntos, pagar por isso!” Assim falou a esposa de Etzel” (p. 418/419).

Apesar de ser amigo dos burgúndios, Rüdiger é convocado por Kriemhild a cumprir seu juramento e dar combate aos burgúndios. “Mui nobre Rüdiger, tenha piedade de mim e do rei, por tudo que estamos sofrendo. Não esqueças que jamais um anfitrião recebeu tão terríveis hóspedes.” (p. 429). Mesmo contra sua vontade, Rüdiger ataca os burgúndios e tomba em combate causando imenso pesar tanto a Etzel quanto a Gunther.

Kriemhild protagoniza a última jornada do livro. O senhor Dietrich, um rei vassalo de Etzel, consegue dominar, desarmar e aprisionar Gunther e Hagen von Tronje. Então, desembainhando a espada que havia pertencido a Siegfried e que vinha sendo utilizada por Hagen von Tronje, Kriemhild “…ergueu a espada com ambas as mãos e cortou-lhe a cabeça” (p. 465). Em seguida ela foi morta e esquartejada por Hildebrand (p. 465).

As versões cinematográficas do livro comentado deram grande destaque ao combate entre Siegfried e o dragão. Todavia, no livro a narrativa deste episódio é absolutamente singela. Ele é apenas referido por Hagen numa conversa com Gunther.

“Além disso, estou a par de outra façanha que perpetrou. Ele matou um dragão com as próprias mãos. A seguir, banhou-se no sangue do monstro de modo que toda sua pele fosse recoberta de película córnea. Por esta razão – e isto ficou comprovado várias vezes – arma nenhuma consegue feri-lo.” (p. 44)

Comparada à saga de Kriemhild a derrota do dragão por Siegfried é literariamente insignificante. De fato, o verdadeiro monstro exposto na obra é o princípio feminino representado pela irmã de Gunther. A presença dramática e a importância literária de Kriemhild são os elementos estruturantes do poema épico germânico.

Portanto, A Canção dos Nibelungos poderia, com justiça, ser chamada A Canção de Kriemhild. Afinal, a vingativa viúva Siegfried é a personagem que impulsiona a narrativa do início ao fim. Após ser enganada por Hagen e causar indiretamente a morte de Siegfried, movida pelo desejo de vingança, Kriemhild abandonou o filho que havia tido com o rei dos nibelungos para ir se casar com o rei dos hunos. Ao provocar e alimentar o conflito entre os hunos e os visitantes de Worms, ela cria as condições para que Hagen von Tronje mate o jovem Ortlieb (o filho que ela mesma havia tido com Etzel).

A educação cristã da irmã de Gunther contrasta com seu gênio irascível (ela alimentou o conflito com Brünhild, a esposa do irmão). A falta de perspicácia dela (Kriemhild revelou o segredo do esposo a Hagen) é compensado pela sua demoníaca persistência em criar condições para vingar o assassinato do esposo. Sua beleza física não é capaz de esconder sua falta de empatia e sua ausência de instinto materno (ela abandonou o filho que teve com Siegfried e causou a morte daquele que deu a Etzel). Ao longo da saga, Kriemhild fornece provas incontestáveis de que nunca foi capaz de gostar de ninguém (como ela desejava no início do livro). Ao assassinar Hagen e causar o próprio assassinato, ela demonstra que não gostava nem de si mesma.

É evidente que Kriemhild não é uma heroína. Muito pelo contrário, ela é a causa da desgraça de todos os personagens da obra. As tragédias que são narradas no livro (o assassinato de Siegfried, a morte dos irmãos de Kriemhild, de Rüdiger, de Ortlieb e de milhares de hunos e burgúndios, a perda do tesouro dos nibelungos, o incêndio do palácio de Etzel e o assassinato da própria Kriemhild) não teriam ocorrido se o princípio feminino que ela representa não tivesse interferido no universo masculino.

Etzel, Ortlieb, Rüdiger, Gunther, Giselher, Hagen von Tronje, Dietrich, Hildebrand e vários outros personagens masculinos, incluindo Siegfried, são levados a agir e sofrer por causa de uma mulher ou com a ajuda dela. A Canção dos Nibelungos parece ter sido especificamente composta para despertar o temor ou o ódio às mulheres. Justamente por isso, o poema épico germânico revela também uma das principais características do machismo medieval e atual: a fragilidade dos homens diante de uma mulher bela e perversa como Kriemhild.

A perversidade atribuída Kriemhild, porém, é exagerada. As mulheres raramente abandonam seus filhos. Elas não são nem mais, nem menos vingativas do que os homens. Além disso, exceto Rüdiger, nenhum personagem masculino de A Canção dos Nibelungos foi constrangido a agir contra a sua vontade. Movidos pela honra ou pela cobiça por riquezas eles marcham para a morte porque é isso o que os homens fazem. Tanto isso é verdade, que os burgúndios seguem viagem para a terra dos hunos mesmo depois das Ondinas (sereias que também representam o princípio feminino) terem avisado Hagen von Tronje de que, exceto um clérigo, ninguém retornaria com vida do país dos hunos.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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