Breve perfil de brasileiros ilustres – D. João VI e o traficante de escravos, por Sebastião Nunes

Colagem do autor sobre foto do Museu Nacional e pinturas de D. João VI

Breve perfil de brasileiros ilustres – D. João VI e o traficante de escravos

por Sebastião Nunes

O Príncipe Regente enfiou a mão no bolso e tirou um pacote engordurado. Com olhos gulosos, abriu o pacote e admirou o conteúdo, um belo frango assado. O Príncipe Regente arrancou uma das coxas com a mão direita e mordeu-a deliciado. Gotas de gordura escorreram pelo queixo proeminente do Príncipe Regente. Mastigando feliz o primeiro dos seis ou sete frangos do dia, o Príncipe Regente limpou os dedos no casaco e suspirou de satisfação. O Príncipe Regente chupou o osso da coxa, atirando-o em seguida pela janela da caleche.

O Príncipe Regente arrancou a outra coxa do frango e, ao mordê-la, deu um tapa na testa com a mão engordurada que segurava a coxa do frango.

– Virgem Maria! – exclamou ele, lembrando-se de repente. – E não é que eu tenho uma audiência com Elias António Lopes? Que memória a minha!

Botando a cabeça para fora, ordenou ao cocheiro que voltasse ao suntuoso palacete do paço de São Cristóvão, que mais tarde se chamaria Quinta da Boa vista, que mais tarde abrigaria o Museu Nacional e que dois séculos mais tarde seria destruído por um incêndio catastrófico, pavoroso, irreparável.

 

ELIAS ANTÓNIO LOPES

Baixo e atarracado, Lopes era a imagem do aristocrata português no Brasil, um dos muitos que enriqueceram traficando escravos. Comprara diversas propriedades no Rio de Janeiro e, pensando numa morada digna de sua riqueza e de sua descendência, construiu o palacete em São Cristóvão, que mais tarde doou ao Príncipe Regente, que mais tarde o chamaria Quinta da Boa vista, que mais tarde abrigaria o Museu Nacional, que mais tarde seria destruído por um incêndio catastrófico.

Quando entrou no palacete, o Príncipe Regente já encontrou à sua espera o rico traficante. Esparramado numa poltrona da antessala, direito adquirido por méritos de aristocrata e de doador da bela moradia, Lopes fumava grosso charuto.

O Príncipe Regente estendeu a mão engordurada que o visitante beijou, sentindo nos lábios e no nariz o gosto e o cheiro de frango assado.

– Por aqui, tenha a bondade – disse o Príncipe Regente com intimidade, conduzindo o traficante para o gabinete principal.

A porta estava aberta. Lá dentro, Carlota Joaquina remexia nas gavetas.

 

A PRINCESA CONSORTE

Apanhada em flagrante, a Princesa não se abalou. Empertigada, esperou a entrada do traficante e do marido, que não via há semanas.

Como se tivesse dormido com ela, o Príncipe Regente limitou-se a saudá-la com um muxoxo, indicando depois uma poltrona ao traficante.

Depois de sentar-se, Lopes tirou do bolso um lenço, com o qual esfregou os dedos minuciosamente, cheirando-os depois. Pareciam limpos.

O Príncipe Regente estava, no entanto, incomodado com a presença da Princesa. Não preferia ela morar numa vila em Botafogo, longe dele? Não vivia ela escrevendo ao papá e à mamá, senhores da Espanha, pedindo que o destronassem e a nomeassem regente do Brasil? Não era ela mal falada por gregos e troianos, que a culpavam de eternas ingerências no governo e na nomeação de preferidos?

Vendo que ela não se retirava, o Príncipe Regente decidiu-se pela diplomacia.

– Como tens passado, Princesa?

– Muito bem – respondeu ela. – Apenas me queixo de solidão.

– Como de solidão, se em Botafogo tens tudo de que precisas?

– Lá tenho apenas uma casa e amigos fiéis – retrucou ela. – E isso é bem pouco perto do que almejo.

– Bem sei o que almejas – ironizou o Príncipe Regente. – Mas o que almejas é impossível. Poderias, pois, retirar-te?

Bufando, a Princesa saiu a trote, batendo a pesada porta.

 

O PRÍNCIPE E O TRAFICANTE

D. João VI suspirou aliviado, assim que viu Carlota Joaquina pelas costas. Meteu a mão no bolso e, relutante, tirou de lá o pacote engordurado. As asas do frango pareciam apetitosas. Arrancou uma, que mordeu com satisfação.

– Está servido? – perguntou a António Lopes.

– Muito obrigado, senhor – respondeu educadamente o traficante. – Almocei não faz uma hora. Estou satisfeito.

O Príncipe Regente mastigava deliciado, gotas amareladas escorrendo-lhe pelo queixo gorducho. Passou a mão livre pelo queixo e a esfregou no casaco.

– Para que me queres? – perguntou ao traficante.

– Senhor, tenho um apelo a vos fazer – principiou Lopes.

– Diga.

– Gostaria muito de ser nomeado Comendador da Ordem Militar de Cristo.

– Pedes pouco, em vista do palacete que me doaste.

– Além disso – prosseguiu Lopes diante da boa acolhida –, pediria ser agraciado tabelião e escrivão da Vila de Parati.

– Terei o maior gosto em servir tão nobre e prestativo cortesão – respondeu com um sorriso o Príncipe Regente. – Mais tarde lhe farei outras benevolências.

– Fico eternamente agradecido, Senhor – respondeu o traficante. – No caso de haver precisão de alguns pretos e pretas para o serviço doméstico, é só pedir. Terei a maior honra em servir Vossa Senhoria.

– Por enquanto não, caro amigo – retrucou o Príncipe Consorte, pilheriando em seguida. – Só espero que este palacete não venha a incendiar-se. Principalmente se, no futuro, vier a se tornar importante museu nacional.

– Que Deus nos livre e guarde de tal tragédia, senhor – disse Elias António Lopes benzendo-se. – De minha parte nada tenho a temer, já que embarcar e vender preto não é pecado.

Sebastiao Nunes

5 Comentários

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  1. Detalhe no vocabulário

    Bom texto, embora triste. Apenas observo ao autor (e preferia fazê-lo em privado, mas não disponho de canal para isso), que paço é sinônimo exato de palácio (transformação da mesma palavra: palácio > paácio > paço), e portanto não faz muito sentido dizer “o luxuoso palacete do Paço de São Cristóvão”.

  2. O incêndio do Museu Nacional

    O incêndio do Museu Nacional ocorreu na mesma data, 196 anos depois, em que a princesa regente Leopoldina e o Conselho de Estado decidiram a Independência, a ser sancionada por D. Pedro, cinco dias depois. Como disse Laurentino Gomes, é como se a certidão de nascimento do Brasil tenha virado cinzas. Foi um trágico e contundente símbolo da nossa incapacidade de construir uma Nação decente, sintonizada com a vanguarda do processo civilizatório, e da insistência em tratar o Brasil como um mero “balcão de negócios”, maldição que tem prevalecido na maior parte desses quase dois séculos.

  3. MAIS UM BESTEIROL TUPINIQUIM QUERENDO NOS DIMINUIR

    Política e Estratégia Esquerdo Fascista, inaugurada no Golpe Civil-Militar de 1930. Este mesmo Principe Regente pertenceu a um período impar e inigualavel da História da Humanidade. Quando uma Corte Européia vem morar nas Américas. Quando um Governo, daquilo que era o centro do Mundo, encaminha-se para a Colônia. Mostra Grandiosidade do Brasil. Esta Figura Histórica que querem caricaturizar, produziu Obras e Estruturas, tanto no Rio de Janeiro como no Brasil, que são utilizadas e excepcionais até hoje. Exemplo do Museu Nacional. Aquilo que o RJ tem de melhor, produzido pelas mãos de seu Povo e grandiosidade do seu Governante. Quanto ao traficante de escravos, a Nação que mais proveito tirou desta situação foi a Inglaterra. Enriqueceu-se sem sujar as mãos, nem a biografia. Passou como a Nação que pressionou pela Abolição, quando a escravidão não mais interessava. O ‘Idiota Útil’ se culpa até os dias de hoje. A Ignorância Tupíniquim preservada e alimentada não o deixa enxergar. Não é a fabula do gato e o macaco de Esopo? Ainda não entendeu, porque o Menino na India com uma varinha na mão, guia um Elefante. Pobre país rico.

  4. Outros tempos, outra história

    Ligar a imagem do incêndio e a história da origem do prédio é no mínimo brincar com a própria história do brasil.
    O que queimou lá não foi apenas a casa de um senhor de escravos e de uma família imperial que passou 4 gerações trazendo parte da cultura europeia, não apenas a portuguesa. O neto D. Pedro II por exemplo trouxe de suas viagens vários itens do museu que nem eram referentes a Portugal, que incrível né? O próprio telefone surgiu dessa época .
    A pagar parte da cultura escravocrata que passou é impossível, mas lutar pela miscigenação de ideias e forças de um país e seu povo sim.
    Lá não era só CasaGrande, História de milênios e ciência constante.

    Pela contextualização desse artigo, estou imensamente ansioso para uma biografia bem escrita sobre Getúlio Vargas, esse grande líder estadista que trouxe as leis trabalhistas, ops, baseado naCarta del Lavoro http://www.tst.jus.br/web/70-anos-clt/historia . Só que não esqueça da estreita relação com o governo nazista de Adolf Hitler que tem peculiaridades com essa fase de genocídio da história mundial https://tvefamosos.uol.com.br/noticias/ooops/2018/06/05/band-exclusivo-getulio-construiu-base-de-submarinos-nazistas-no-sul.htm 

    Ainda segundo sua visão de texto, a Polônia, Alemanha e outros países devem destruir todos os campos de concentração e lembranças do Nazismo, ajuda a esquecer né?

    Bem, afinal D. João teve culpa sim, até porque desde o Reinado de sua família, temos o atraso no ensino básico brasileiro, segundo outro ilustre presidente da nossa República https://www.terra.com.br/noticias/brasil/lula-culpa-colonizadores-por-atrasos-na-educacao-do-brasil-e-gera-polemica-em-portugal,ce05c77337c25b3d555bfed14cd4c2c80c7twj4v.html

    Sebastião Geraldo, estou aguardando hein.

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