Camões falava como um brasileiro? Por Marco Neves

Por Marco Neves

Enviado por Gilberto Cruvinel

Do blog Certas Palavras

Alguns livros são como barras de chocolate: apetece comê-los duma vez, mas com alguma força de vontade conseguimos ir deixando uns pedaços para depois. Há um livro que é uma tentação para os meus olhos: A Mouthful of Air, de Anthony Burgess.

Burgess é um dos meus autores favoritos. O livro é sobre línguas. Junta-se o agradável ao apetitoso, e fico maravilhado a ler sobre línguas, sobre literatura e tudo com aquela voz inconfundível de quem faz o que quer com a coitada da língua inglesa, que no fim nem sabe de que terra é.

Assim, com muita força de vontade, vou lendo o livro devagarinho, ao longo de muito tempo. Sim, às vezes consigo fazer isso mesmo. Ora, há pouco apeteceu-me ler mais um pouco. Foi assim que, enquanto ao meu lado o meu filho seguia uma história de lobos e tigres, li sobre aquilo que se sabe da pronúncia de Shakespeare.

Burgess lá explicava, divertido, que se os nossos ouvidos de hoje em dia aterrassem na Londres isabelina e ouvissem o próprio do Shakespeare a declamar os seus sonetos ou a representar alguma das suas peças, ficariam admiradíssimos com o sotaque que hoje diríamos bem provinciano. Só como exemplo, «lust» seria lido com um «u» à portuguesa, «shame» seria algo como «shéme», «so» seria «sô», tal como «to go» («to gô»), «to know» («to nô»), etc.

Ora, o mesmo aconteceria se nós, portugueses de agora, nos víssemos transportados para a Lisboa quinhentista e encontrássemos Camões na rua. A sua pronúncia estaria cheia de características que hoje diríamos ser nortenhas, ou talvez agalegadas ou — caia então o Carmo e a Trindade — brasileiras!

Não estou a dizer que Camões falava como um brasileiro de agora. Estou apenas a dizer que a pronúncia seria tão diferente da nossa que teríamos dificuldade em localizá-la — e algumas das suas características (as vogais bem mais abertas, por exemplo) são hoje típicas do português do Brasil e não do nosso português de Portugal.

Para quem tem da língua a visão de qualquer coisa de imutável que alguns safados andam a mutilar, isto fará muita confusão. Mas, não: a língua muda mesmo muito ao longo dos séculos: as vogais mudam, as consoantes também, as palavras perdem e ganham sentidos de forma imprevisível, a sintaxe também tem as suas danças. (A ortografia, se formos a ver bem, até acaba por ser dos aspectos da língua que menos muda…)

Algumas das características do português-padrão que damos por adquiridas e que fazem parte integrante do «falar bem» de hoje em dia começaram como modas ou como maneiras de falar que os bem-falantes da época desprezavam activamente. Tudo isto tem muito de aleatório — e pouco de consciente.

Podemos analisar as mudanças e até combater algumas delas. Agora, o que não é verdade é que a língua exista imutável e pura, fora da boca dos seus falantes. E, sim, temos mesmo de admitir: a língua portuguesa, como qualquer outra, é um bicho difícil de apanhar e de compreender — mas, como um tigre, é um bicho perigoso, mas muito belo.

Sim, Camões falava um português diferente do nosso: e eu, por mim, gostava de poder ouvi-lo — não sendo possível, podemos tentar reconstruir a sua pronúncia através dum estudo aprofundado da sua escrita: olhando, por exemplo, para certas características ortográficas, para os erros que denunciam determinada forma de falar ou para as rimas, que mostram como o final das palavras soava na época (são algumas das técnicas dos linguistas históricos).

Enfim, é assim que sabemos que, provavelmente, Camões soaria, aos nossos ouvidos, um pouco a nortenho com travos de brasileiro. Tudo isso faz parte da nossa língua — tal como a estranha pronúncia de Shakespeare também faz parte do inglês.

Ora, longe de me horrorizar, pensar nisto põe-me um sorriso na boca.

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Marco Neves é tradutor, professor e escritor português, autor do livro “Doze Segredos da Língua Portuguesa”, pela Guerra e Paz Editores de Lisboa. É também autor do blog Certas Palavras

Redação

62 Comentários

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  1. se voce falar ponhar vão

    se voce falar ponhar vão tirar sarro da rtua cara;;;

    ontem queimarão, tipo assm,…

    são  palavras que já foram usadas por grandes autores?

  2. O ritmo dos versos seguramente é + próximo do brasileiro

    O ritmo do Português de Portugal mudou cerca do início do Séc. XIX, tornou-se mais acentual do que era, o que implica num maior nível de reduçao das vogais. Alguns versos de Camoes lidos na pronúncia portuguesa de hoje ficariam “de pé quebrado”, com sílabas a menos. Já lidos por um brasileiro ficariam do mesmo modo como Camoes os criou.

    Essa mesma mudança de ritmo provocou algumas particularidades do Português de Portugal, que nao se aplicariam ao Brasil, mas nossos gramáticos querem que copiemos. Por ex., a ênclise pronominal, que nao existe em nenhuma outra língua latina, nem no brasileiro falado, mas que é dita “certa”.

    Quem estuda bem as diferenças do Português oficial e da língua realmente falada aqui — que eu nem chamaria mais de Português, mas, digamos eufemicamente, o “Português do Brasil”, que qualquer linguista sabe que é outra língua — é a Professora Maria Eugênia Duarte, da UFRJ. E ela analisa muitas vezes o que ocorre na ESCRITA de cronistas, jornalistas e cientistas brasileiros, e mostra como é uma língua diferente da “oficial”.

    1. Minha cara

      Após a expulsão dos judeus de Espanha o maior contigente foi para o antigo Império Otomano. No locais com comunidades maiores ao contrário dos pequenos grupos dispersos por outras regiões, com grandes variações agora, ou de quem para resgatar suas raízes aprendeu nos dias de hoje a língua dos seus ancestrais, nesse caso com pronúncia bem próxima do castelhano padrão… que dizes do ladino preservando por alguns grupos na Turquia…

      [video:https://www.youtube.com/watch?v=6PUw3GMgNgs%5D

       

      1. E daí, Rebolla? Surtou?

        O que o que vc diz tem a ver com o que eu disse? Que aliás nao é questao de opiniao, apenas expus uma realidade.

        1. Quanta prevenção…

          Apenas perguntei a tua opinião sobre o ladino quando falado por remanescente de uma comunidade linguística relativamente grande durante o decorrer dos séculos. Parece brasileiro falando “portunhol”.

          Fiz a pergunta pois aparentemente você é uma profissional de alto nível da área…

          Fico até com medo de encontrá-la pessoalmente e dizer bom dia ou boa tarde… triste destino do Nietzsche…

          1. O ladino me pareceu bem mais

            O ladino me pareceu bem mais com o português do que com o espanhol. O que ela não diz no documentário é que os judeus também foram expulsos de Portugal e portanto ela não poderia ter certeza se os seus antepassados eram oriundos de Portugal ou da Espanha. Muito interessante. Obrigado

          2. Nao tem razao p/ falar em prevençao…

            Até já tive, quando vc agia como um troll. Me espantei no início quando parou de fazer isso, e até andei te elogiando (salvo, claro, quando vc dá uma de moralista e/ou de machista, aí é para esculhambar mesmo).

            Agora, sou linguista mas nao especialista universal, rs. Nem sou dessa área, tenho sobre ela apenas os conhecimentos básicos que um professor universitário de Linguística tem que ter; mas nao sou pesquisadora nela. Particularmente sobre a comunidade dos ladinos nao sei nada.

            E Lou Andreas foi uma bênçao na vida do Nietzsche, nao um peso, rs.

    2. Toda língua falada é

      Toda língua falada é diferente da oficial – desde que, é claro, exista uma língua oficial. O inglês popular londrino tem até nome, é o “cockney”.

      Mas essas variedades não constituem línguas independentes, elas fazem parte da língua. A gíria dos ladrões do Recife é tão português quanto o juridiquês usado nas cortes de justiça de Lisboa. E o conheciimento dessas coisas faz parte da habilidade monolinguística do falante da língua.

      De fato, ensinamos nas nossas escolas uma versão arcaizante – e “lusitanisante” da língua, com tolices tais como a antiga segunda pessoa do plural, o mais-que-perfeito, a ênclise obrigatória no início de período (que só faz sentido quando se pressupõe a prosódia lusitana), a ideia de que construções como “fazem-se chaves” são construções passivas e portanto exigem o verbo no plural, quando o consenso popular é de que o correto é um “faz-se chaves” em que o sujeito é indeterminado e a voz é ativa, etc.

      Mas também suponho que as escolas portuguesas ensinem aos seus alunos que quando Camões “gostava” de alguma coisa é por que ele gostava, não por que ele gostaria… pois, ora pois, o português lusitano é tão ou mais inovativo que o do Brasil.

      1. A questao é o nível d diferenç q faz d uma varie// uma nova líng

        Variaçoes só de pronúncias e/ou de léxico nao sao suficientes para isso, esses sao os 2 primeiros aspectos de uma língua a mudar (sendo que o léxico, paradoxalmente, é um dos primeiros a mudar e talvez o último a mudar fortemente; até hoje, por ex., o léxico do português e o do espanhol sao muito semelhantes, o que fica mais claro na escrita, sem a interferência de fatores de pronúncia). Mas quando duas “ex-variedades” começam a ter gramáticas diferentes, nao se pode mais dizer que sao variedades da mesma língua. Sao duas línguas que começam a se separar, ainda muito semelhantes, mas nao mais ‘”a mesma”.

        É o que acontece atualmente entre o português europeu (PE) e o brasileiro (PB), que diferem em vários traços gramaticais, e, em especial, no sistema pronominal. Em PE, por ex., nao se diz “a porta abriu”, e sim “a porta se abriu”. Nós até podemos dizer isso, mas nao é o que dizemos normalmente. Em PE, se vc disser “todo o livro é verde”, quer dizer que todos os livros sao verdes, e nao, como em PB, que um dado livro de que já se está falando é totalmente verde. Em PB se faz muita omissao de objeto direto, que, ao que eu saiba (nao tenho certeza disso, porém) nao se faz em PE. E podemos ter sentenças de forma ativa mas com sentido passivo (por ex., “o feijao está cozinhando” ou “a roupa está lavando” até com verbos normalmente transitivos, o que no PE só costuma ocorrer com verbos intransitivos. Isso sem falar no sistema pronominal, que está MUITO DIFERENTE nas duas línguas. 

    3. Aiaiai…

      Eu vinha concordando com você até agora, mas aqui sou obrigado a perguntar: você acha então que o Eça de Queiroz e o Machado de Assis escrevem em línguas diferentes? Ou que o Saramago escreve numa língua diferente da nossa? Ou que o português em que você e eu escrevemos não é perfeitamente aceitável como “correto” em Portugal? Que diferenças lexicais e um uso diferente de regras iguais torna duas línguas mutuamente estrangeiras?

      O que afasta o português “daqui” do “de lá” é a ignorância da língua, tanto lá como cá. Não é pela fala que se mede a identidade de uma língua (e mesmo na fala há muitos portugueses com sangue do Viriato nas veias que falam “eu vi ela” como qualquer brasileiro que “não sabe falar português”), é na escrita. E, nesta, não é pela média dos jornalistas e cientistas semialfabetizados que pululam nas redações e laboratórios do Brasil e de Portugal, mas pelo melhor que cada país tem a oferecer. E o melhor, tanto lusitano como brasileiro, do Cancioneiro geral ao Sagarana, é português, a despeito do que ache a Maria Eugênia Duarte.

      1. Duas notas

        1. Não, “eu vi ela” não é influência das novelas brasileiras. É do português falado no que resta dos bairros populares de Lisboa, descendente direto do português que se falava no cais do porto de Lisboa no século XVI, e se escrevia nos cartórios até o século XIV.

        2. Não (re)conheço nenhum autor brasileiro digno de nota depois do Guimarães Rosa.

        1. Pois é, vc é bastante conservador em assuntos de língua…

          E a julgar pela gramática normativa, Guimaraes Rosa seria outro “ignorante” da língua. Aliás, praticamente todos os autores literários brasileiros depois do Modernismo (que já faz quase 100 anos…) deram uma banana para o que dizem os gramáticos.

          Sobre “eu vi ela”: ao contrário do que muitos dizem, nao é a construçao favorita do PB, a nao ser quando o ela nao é objeto direto real, e sim sujeito de uma oraçao reduzida ou pequena oraçao. É raro um(a) brasileir@ dizer “eu vi ela”, mas é bem comum dizermos “eu vi ela ontem na rua” (sujeito de pequena oraçao) ou “eu vi ela entrar no carro” (sujeito de reduzida). No PB praticamente nao usamos mais os pronomes oblíquos acusativos (o, a, os, as); quando eles se referem à segunda pessoa do discurso (com quem se fala) mas que leva o verbo à terceira pessoa gramatical (ou seja, a você, o senhor, etc), usamos muito frequentemente o pronome lhe mesmo para objeto direto; ou misturamos pessoas, e usamos te. Quando se trata da terceira pessoa real (de quem se fala), a soluçao favorita é simplesmente a omissao do objeto referente a algo já dito antes; ou, se o referente foi expresso por um sintagma nominal, a repetiçao do substantivo núcleo, ou sua substituiçao por um sinônimo ou palavra relacionada (tipo onça -animal, por ex.). Já o lhe praticamente nao é mais usado para objeto indireto com a terceira pessoa real; dizemos “para ele”, “para o senhor” etc. Também o uso de nós como sujeito está em franco processo de desapariçao, sendo usado sobretudo por pessoas mais velhas (eu uso preferentemente, mas tenho 68…) E como tudo isso leva à diminuiçao de formas diferentes entre as pessoas verbais, favorece cada vez mais a perda da concordância, que é um fenômeno geral das línguas latinas e já chegou ao seu termo no francês, onde só existe na escrita ou nos raros casos de liaison. Tb nao usamos o pronome se em várias construçoes em que ele seria dito em PE, como no exemplo “a porta abriu” X “a porta se abriu” que dei antes. Tudo isso é descrito em pesquisas sociolinguísticas, caro; nao sao “palpites”. 

          1. Aiaiai II

            Não sei o que vem fazer aqui a gramática normativa. Nem o que você quis dizer quando disse que eu devo achar o Guimarães “ignorante”, quando eu disse justamente o contrário com todas as letras. Estou sentindo um cheirinho de homem de palha, e não sei se tenho paciência para começar uma conversa nesse nível.

            Mas devo dizer que não há, na sua maneira de escrever, nem na minha, nada que contrarie as regras do português, brasileiro ou europeu. Nem na dos melhores escritores brasileiros. São usos diferentes das mesmas regras: não há nada de intrinsecamente brasileiro ou português na escolha de uso de “de vocês” ou “vosso”, as duas fórmulas, do ponto de vista da gramática, são rigorosamente “corretas”; e o mesmo vale para diversas outras peculiaridades do português escrito no Brasil. . A fala, ora a fala. Por esse passo, vamos acabar dizendo que os londrinos do East End não falam inglês, ou que os parisinos não falam francês. Ou ainda, que os catarineses falam catarinês e os maranheneses, maranhês.

          2. Vc nao entendeu; estou discutindo c/ o maior respeito…

            Nada de “homem de palha”… Vc falou antes sobre “ignorância de língua”. Isso nao existe entre falantes nativos, o que pode existir sao falantes de várias variedades da língua. Por que qual seria o critério do “certo”, do que nao seria ignorante? O único que há, e é super falho, é o da gramática normativa… Ora, a aceitarmos esse critério, Guimaraes Rosa, que vc admira tanto, seria ignorante.

            E o que vc quer dizer com “usos diferentes das mesmas regras”? Há usos de regras diferentes, ou é regra ou nao é… Acho que vc está falando de formas, nao de regras. Mas aí o que vc diz nao é certo, há sim formas que sao só do PE e outras que sao só do PB. Vosso, por ex., nao é do PB; nao interessa se a gramática normativa diz que é correto, ninguém usa mais no Brasil, nem na escrita (salvo autores literários querendo fazer escrita arcaizante ou regional, mas isso é outra coisa).

            Quanto ao resto do comentário, a fala, sim a fala; é o que é principal numa língua, escrita é fenômeno secundário. Mas, como já lhe disse, nem mesmo os “escreventes” (para diferenciar de escritores literários) do PB atual estao usando as formas ditas corretas pela gramática normativa. Os usos que descrevi no comentário anterior nao sao só da fala. Digo isso com base em pesquisas científicas, nao de gosto ou desgosto meu…

            Outro tema sao as variedades dialetais. A questao é de grau, como eu já disse num comentário anterior. No Brasil há, apesar de tudo, muita unidade linguística na língua falada nos meios com maior formaçao escolar nos centros urbanos, temos fonologias diferentes nas várias variedades do PB, e, claro, alguns itens lexicais diferentes, mas que eu saiba poucas ou nenhumas diferenças gramaticais; há diferenças de gramática entre o PB popular urbano e o das classes mais escolarizadas, mas essas diferenças praticamente se reduzem ao grau em que nao se faz mais concordância (a perda da concordância ocorre em TODAS as variedades, mas em graus diferentes). Com relaçao ao português rural muito menos se sabe; aí nao sei até que ponto se poderia ou nao falar de diferenças gramaticais. Há bastantes diferenças de formas verbais, mas isso até nos centros urbanos e nao ocorrem só nas variedades populares. O uso do subjuntivo, por ex. está em processo de desapariçao, o imperfeito está substituindo cada vez mais o dito futuro do pretérito (condicional), etc.

            E nao há motivo nenhum para se dizer que a língua falada por uns é melhor do que a falada por outros… Seria muito pouco democrático, já que nao há nenhuma base intrínseca pelo qual um uso seria melhor que outro. A falta de concordância é um defeito? Francês entao é uma língua defeituosa… E o inglês tb é quase, só há alguns resíduos de concordância no inglês.

            Enfim, sei que é difícil, mas é necessário destruir alguns mitos sobre língua, que só levam ao preconceito linguístico, que é tao grave quanto qualquer outro preconceito.  

          3. Temos um ruído nesse sinal

            Não é de mim que você vai ouvir, nem leu aí em cima, que há formas “certas” e “erradas” de falar. Ninguém, em língua nenhuma (pelo menos das que eu tenho algum conhecimento) fala como a gramática manda. E recuso essa distinção entre gramática normativa e descritiva; sei que ela está na moda na academia, mas a gramática “descritiva” como a querem alguns acadêmicos simplesmente não existe: toda gramática é uma descrição, e uma extrapolação sistematizante, do modo de falar de um determinado grupo de pessoas em uma época dada. A descrição de ontem, que já não era a de todos mas de um grupo seleto de falantes de uma língua, torna-se a norma de hoje, necessariamente afastada no tempo e nos números da fala da maioria. E digo “extrapolação sistematizante” porque é impossível, em qualquer momento, encontrar um grupo razoavelmente significativo de falantes que utilizem com coerência um conjunto comum de normas, e é portanto necessário extrapolar, deduzir certas normas, fazer escolhas, inventar normas: ninguém fala naturalmente com mesóclise, mas os literatos e gramáticos do século XVI, postos diante da necessidade política de afastar o português do espanhol, viram-se na obrigação de impor a ênclise como regra, para opor-se à próclise, mais natural nas línguas neo-românicas e predominante no espanhol, e derivar dela o monstrengo mesoclítico, porque a ênclise dos átonos que não são átonos para todos é incompatível com determinados tempos verbais. Se hoje a maioria dos falantes de português europeu utiliza naturalmente a ênclise e a mesóclise quase, é porque aprenderam a falar assim, nas escolas e por imitação da literatura e do jornalismo, ao longo dos séculos desde que a norma foi inventada, e o uso reiterado dos pronomes com ênclise acabou por reforçar-lhes a atonalidade e por ende a de todas as sílabas átonas, pronomes ou não. E se os brasileiros não a utilizam, e continuam falando da maneira que era mais natural aos portugueses do século XVI, é porque passamos séculos sem escolas, sem jornais e sem quem os soubesse ler para os imitar. Portanto, resumindo, a gramática descritiva de hoje é a normativa de amanhã, independentemente do seu grau de artificialidade ou extrapolação, e a oposição entre as duas caras da mesma moeda é falsa.

            Se você quiser me dizer que a gramática atual está desatualizada, e que é preciso fazer uma nova descrição que a aproxime da fala, posso até concordar. Mas desafio qualquer gramático a sistematizar a fala corrente no Brasil sem 1) escolher como base a fala de uma determinada classe social de uma determinada região do país, e 2) mesmo nesse grupo restrito, não privilegiar certas formas em detrimento de outras, não extrapolar normas da média dos falantes, não ditar regras artificiais que pouco têm a ver com a fala realmente existente. E duvido que, ao final do seu trabalho, o resultado seja tão diferente da norma em vigor que justifique e gratifique o esforço. E duvido ainda mais que se consiga chegar a uma gramática que afaste definitivamente o português brasileiro do europeu, fundando uma nova língua (e é por isso que tantos títulos de doutor são adquiridos com teses sobre esta necessidade, mas ninguém até hoje se atreveu a empreender a tarefa).

            A minha gramática seria simples, e serviria às duas variantes: fica tudo como está e cada um que use ou desuse os não-tão-átonos como lhe pareça melhor.

            ——

            Isto posto, esclareço: se falei tanto sobre a gramática agora, foi para deixar claro que não falei dela antes. E que se falei de “ignorância” não me referia obviamente à fala, mas à escrita. E não quis com isso falar de ignorância da norma, como você parece acreditar, mas do desconhecimento da imensa variedade e riqueza de possibilidades de escrita que a língua portuguesa tem para oferecer, que é o que faz tanta gente dizer que o PB e  PE são duas línguas diferentes: são os ignorantes de um lado criticando a ignorância do outro, nos dois lados e nos dois sentidos: cada lado não só ignora as possibilidades do outro como desconhece as suas próprias, e os dois lados escrevem um português limitado e tacanho que se pretende superior ao outro.

            ——

            Nota impertinente: nego terminantemente a ficção interessada de que os modernistas teriam mandado a gramática às favas. E afirmo emocionadamente que nenhum escritor brasileiro do século XX fez mais do que o meu primo João de Cordisburgo para explorar, de maneira rigorosamente gramatical, as possibilidades que a língua portuguesa oferece.

          4. Um resumo decassilábico

            Eu via ela escrevendo e me dizia
            que a fala é uma função do meu querer
            mas hiatos e ditongos fazem ver
            que a escrita não é só algaravia.

            Tem ritmo, tem tempo e tem manias,
            tem idiossincrasias e prazer.
            Mas quer também se fazer entender,
            chegar até o saber da maioria.

            Pra tanto, precisava ser curtida,
            ter forma, ter sentido, ter poder
            pra ser e sustentar a fantasia.

            A escrita é um exercício que ilumina
            o passo da lembrança ao conhecer
            que confere unidade a toda a vida.

          5. A questao tem dimensoes q vc nao está vendo… Política, inclusi

            Nao falei em gramática descritiva X normativa. As línguas têm gramática. Interna ao seu funcionamento, e que os falantes sabem inconscientemente. Isso nao tem nada a ver com gramáticas descritivas nem normativas.

            Ocorre que a gramática é diferente nas diversas variedades da língua. Quando se adota uma norma explícita, se escolhe, como vc falou, uma dessas variedades. E isso tem consequências na vida das pessoas. Consequências escolares na vida de crianças de classes populares, para começar. Consequências na inibiçao da fala de pessoas populares, e de uso das diferenças para estigmatizaçao. Por isso é politicamente importante combater essa noçao bastarda de “língua certa”; falar em norma explícita é falar disso, querendo ou nao (há uma norma implícita espontânea que se cria entre os falantes de uma comunidade, mas trata-se de norma no sentido estatístico, nao normativo, no sentido comum; e mesmo ela é variável). 

            Outra coisa: ninguém aprende a falar nas escolas… No máximo, aprende a escrever de dado modo, mas a influência da língua oral acaba se impondo (se vc lesse os textos da Maria Eugênia Duarte veria isso de forma super interessante, os “escreventes” brasileiros usam construçoes da língua oral, da norma gramatical e que nao existem em nenhuma das duas, por influência de interiorizaçao indevida de uma norma artificial; ênclise após que, por ex.) Aliás, se hoje conhecemos algo do português (galaico-português) medieval anterior à literatura, quando ainda a escrita corrente era feita em latim,  devemos aos “erros de latim” cometidos na escrita e aos sábios conselhos dos gramáticos da época. Onde eles diziam “nao se diz X, se diz Y”, os linguistas sabem que X era o que se usava. Há uma crônica muito interessante do Sírio Possenti sobre isso, mas esqueci o título dela.

            Os portugueses usam a ênclise porque corresponde à fonologia deles, em que os pronomes ditos átonos sao realmente átonos (diferentemente do PB); que eu saiba foi uma mudança ocorrida a partir dos fins do séc. XVIII, nao no século XVI — por isso os versos de Camoes ficam “de pé quebrado” lidos por portugueses de hoje. Nós nao passamos pela mesma transformaçao do sistema fonológico pela qual eles passaram, por isso continuamos falando como falávamos (nesse particular, claro). Literatos e escritores nao têm esse poder que vc parece lhes atribuir de determinar o destino da língua. Mais uma vez, a escrita é um sistema SECUNDÁRIO, ela serve para representar a linguagem, mas nao a determina.

            E lamento muito insistir, mas os modernistas deram sim uma banana para a gramática normativa. Inclusive programaticamente, nao é só algo que ocorre na escrita deles, é algo que eles defenderam.

            Agora, concordo com vc (vc nao disse isso, mas deduzo isso do que fala sobre as várias possibilidades de uma língua) que uma língua é um diassistema, ela nao existe só no seu estado atual. Ainda leio Camoes sem problemas, e, com problemas, a poesia medieval. Nesse ponto a influência da escrita é importante, porque ela nos introduz a outros usos, diferentes dos decorrentes de nossa gramática interna. Mas isso gera uma “competência” (no sentido linguístico, nao valorativo) mais passiva do que ativa; leio Camoes, mas nao uso boa parte das formas e construçoes que ele usa. Talvez um autor literário use as possibilidades desse diassistema; mas nao costuma ser o caso dos “escreventes” comuns, e o contrário soaria pedante e inadequado discursivamente.

          6. Em tempo

            O uso de formas como “eu vi ela” no PE popular de Lisboa é rigorosamente igual ao brasileiro.

          7. Disso sei menos… E a língua muda lá tb

            Mas creio que eles ainda usam os pronomes acusativos (o, a, os, as), nao? Pela pequeníssima amostra dos meus amigos portugueses, nada representativa, eu sei, eles ainda usam; e olhe que sao portugueses que estao aqui há anos.

          8. Muda lá mais do que aqui

            Mas estou falando de português popular, não culto, e de Lisboa (ouço dizer que este uso é comum também no Alentejo e no Minho/Trás-os-Montes, mas não tenho experiência pessoal prolongada dessas regiões). E estou afirmando que não se trata de mudança, mas, ao contrário, de resquício do português comum falado em Portugal até finais do século XVI.

            Sim, aprende-se a falar na escola. Não o básico, mas as gramatiquices da fala são aprendidas na escola e nos livros, não em casa e na rua. A prova disto é justamente o estado atual do PE, comparado ao que se falava – e em grande parte se escrevia, basta consultar os documentos cartoriais do século XIII em diante – antes da grande normatização da gramática a partir do final do século XV. A preferência pela ênclise, como eu já disse antes, foi uma decisão política, não linguística, tomada por gramáticos e poetas preocupados em afirmar a identidade portuguesa afastando a escrita do espanhol. A norma, o número, sobretudo a partir do século XIV (e de novo remeto aos ofícios cartoriais) era a próclise, quando se usavam pronomes objetivos, o que nem sempre era o caso, sendo igualmente comum, como no português brasileiro, o uso do pronome subjetivo como objeto, direto ou indireto. Quando, refletindo a fala da corte e a escrita dos poetas que a serviam, a ênclise foi adotada como “regra oficial” da língua, a regra das ruas era a próclise. E a pronúncia dos pronomes objetivos ditos átonos por nunca serem a sílaba tônica era muito mais próxima da brasileira que da portuguesa atual. Foi, portanto, a ênclise que acentou a atonia, não a atonia que causou a ênclise; e essa “atonização” dos pronomes objetivos acabou por transferir-se a todas as sílabas átonas vocálicas (com A, E e O), sobretudo a partir de meados do século XVII, quando a ênclise se tornou tão comum na fala quanto o era na escrita. Temos aqui, portanto, o caso de uma construção em larga medida artificial e em menor medida característica de uma determinada classe social em um momento histórico dado, a colocação pronominal enclítica e mesoclítica, que, promulgada autoritariamente por gramáticos, modificou a fala geral a ponto de a tornar praticamente universal e a fazer parecer natural.

            Ninguém chama uma gramática de “normativa” senão para opô-la, ainda que implicitamente, à “descritiva”, essa quimera do relativismo acadêmico. A falta de rigor na demarcação dos campos e a frouxidão dos conceitos é o que permite ao discurso relativista passar sem dor da fala para a escrita, e aplicar a esta, como um acquis (perdão, tenho sono e não me lembro de como se diz isto em português), conceitos que são exclusivos daquela. Sim, estamos de acordo, não há maneiras erradas de falar, mas sim há maneiras não gramaticais (ou seja, “erradas”) de escrever. Não há nenhum “preconcento linguístico” em dizer por exemplo que um Paulo Coelho, além de ter um vocabulário pobre e tedioso, escreve errado, e não porque “Deus está nos erros” ou porque ele tem uma interpretação peculiar e pessoal da norma, mas simplesmente porque desconhece a norma  – não é um transgressor, é um ignorante. E, como ele, no Brasil e em Portugal, toda uma legião de “escritores” elevados às nuvens por jornalistas igualmente ignorantes tem a pretensão de fazer da própria insuficiência a base de uma “nova lingua” que faça as delícias do patrioteirismo bufão e, aqui, do antilusitanismo, e lá do antibrasileirismo, ambos rasteiros: poderão no máximo fornecer as bases da novlíngua da “comunicação” de mão única do poder, na qual tudo é relativo, e a réplica é impossível.

          9. O q vc diz vai contra o q dizem a Linguística e a Psicologia Cog

            Comentando alguns pontos, sem muito encadeamento

            — português popular X culto? é manifestaçao de valor? todas as variedades de uma língua tem o mesmo valor, o que vale diferentemente sao os usuários, por motivos sociais, e nao linguísticos;

            — NAO se aprende a falar na escola; as “gramatiquices” contrárias ao uso real podem ser usadas na escrita, onde há tempo de planejamento consciente, ou entao na fala super monitorada, nao na fala corrente; a fala é muito rápida (em 700 MICROssegundos um locutor planeja e executa o que fala), nao dá tempo para pensar conscientemente em aspectos gramaticais ou formas aprendidas na escola; no máximo o contato prolongado com a escrita aumenta o repertório lexical dos falantes, e a competência passiva (entendimento, nao uso ativo);

            — como eu já disse, poetas e escritores nao têm o poder que vc atribui a eles, e a ênclise se difundiu no PE no século XIX, e nao no séc. XVI; até porque, embora o povo português seja escolarizado há mais tempo que o brasileiro, nessa época os escolarizados eram um punhado de gente de classe alta, e minoritários mesmo nela; nao haveria como usos difundidos só pela escrita atingirem a populaçao em geral;

            — ninguém chama a gramática normativa de normativa a nao ser para opô-la à descritiva? está insinuando que eu nao existo? e todos os linguistas posteriores à Linguística Gerativa? Ora, ora… os estruturalistas realmente opunham gramática normativa à descritiva porque eles nao tinham a noçao de gramática interna, que é a que realmente importa;

            — e sobre a “ignorância” de escritores, tem dó; eles apenas estao usando recursos linguísticos nao sancionados pela gramática normativa, que nao corresponde mais nem à fala nem à escrita atual; vc está só sendo conservador.

          10. Aiaiai III, cada vez pior

            Para começar, uma nota: não existe “o que diz a Linguística”, com maiúscula ou minúscula. A linguística diz várias coisas, muitas delas inclusive contraditórias entre si. Existe o que diz a corrente da línguística com a qual você se identifica, que evidentemente não é a mesma que a minha. Quanto à Psicologia Cog, cabe perguntar: Quem? Seja quem for, não ligo a mínima para o que ela diz. Tenho sérios argumentos para afirmar  que todas as psicologias isto e aquilo (exclusive a psicanálise, que não é propriamente um ramo da psicologia) são pseudociências, cabides de tese.

            Isto claro, lá vamos nós de novo tapar o nariz contra o forte cheiro a homem de palha. Não disse em lugar algum, nem nada do que eu de fato disse lhe permite supor, que eu faça um juízo de valor ao fazer a oposição da linguagem popular à culta. A dicotomia existe, e constatá-la não é afirmar que uma é melhor que a outra. E omitir tudo o que eu disse sobre a evolução da ênclise na língua portuguesa para atacar o que eu não disse é a própria definição da falácia do homem de palha. Não nasci para o debate ontem, nem aprendi a argumentar na faculdade; fui formado na rua, e em assembleias operárias onde esse tipo de artifício é detectado – e castigado – em bem menos de 700 microssegundos. Assim que, para a boa continuidade desta nossa conversa que até agora tem sido agradável e instrutiva, peço-lhe a gentileza de, daqui prà frente, se ater e responder unicamente ao que eu de fato digo.

            Não sei de onde você tirou essa ideia estapafúrdia de que a ênclise só se difundiu em Portugal a partr do século XIX. Cabe lembrar que, quando a corte portuguesa arribou em águas cariocas em 1808, todos os autores brasileiros formados em Portugal, desde o Pe. Antônio Vieira, escreviam com o pronome posposto como mandavam todas as gramáticas da época  e como já se falava em Lisboa e Coimbra. E para ver o uso disseminado da ênclise na escrita do século XVI basta ler Gil Vicente, ou Camões, ou mesmo as Ordenações Manuelinas, que apesar de serem um texto jurídico e portanto mais conservador faz uso amplo e majoritário da posposição do pronome objetivo; ou os gramáticos João de Barros e Fernão de Oliveira, que utilizam e normatizam a ênclise nos seus escritos. Portanto, não, não há modo de afirmar que essa difusão só se deu no século XIX, quando os processos paralelos de “enclização” e “atonização” já estavam tão avançados que um Antõnio Feliciano de Castilho podia, por volta de 1850, chamar o Camões de “mau poeta”, por escrever sonetos decassilábicos com versos de sete sílabas. Enquanto que a fala, no século XVI, dava ampla preferência à próclise tal como é utilizada no Brasil de hoje, e o que o nem sempre errado Bechara chama de “intensificação da tônica” e eu de “atonização” da língua ainda não havia ocorrido; e, de novo, basta ler os versos de Gil Vicente e de Camões, e Sá de Miranda e António Ferreira, para constatar que o Fernão de Oliveira tinha razão ao dizer da pronúncia portuguesa em 1536 que “outras nações cortam vozes mais em seu falar, mas nós falamos com grande repouso como homens assentados; e não somente em cada voz persi, mas também no ajuntamento e no som da linguagem pode haver primor ou falta antre nós”, o que é o exato contrário da fala zipada dos portugueses de hoje. 

            Estes dois fenômenos, o deslocamento da preferência natural e histórica da fala pela próclise para a predominância da ênclise artificial e contraintuitiva ditada pela gramática e pela literatura e a intensificação da tônica e redução das átonas, estão intimamente ligados: não teria havido “atonização” sem a posposição dos pronomes objetivos nem esta teria conseguido firmar-se sem a redução das sílabas átonas pré-tônicas e pós-tônicas. E a única coisa que explica que esse deslocamento do natural para o artificial tenha ocorrido num país e não no outro é a presença da escola e a relativa popularidade da literatura em um e a ausência de ambas no outro – a não ser que você queira culpar o clima.

            Paralelamente, afastando-nos um pouco da gramática, de acordo com essa sua tese de que não se aprende a falar na escola, as escolas de idiomas deveriam ser fechadas e multadas por propaganda enganosa. O fato é que a internalização de normas e a imitação, de modos de falar supostamente “melhores” e mais prestigiosos ou da língua estrangeira que se quer aprender, são dois grandes motores de modificação da fala, Outros dois são a poesia e, historicamente, a linguagem formalizada do teatro em verso. E, aproveitando a excursão, volto a um assunto que deixei de lado antes: “palpite” dá quem ideologiza, ou seja, que especula sobre assunto no qual não tem experiência prática. Eu não dou palpite, eu teorizo a minha prática de cinquenta anos dedicados em tempo integral ao bate-papo, à leitura e à escrita, com a sorte de ter saído da escola no segundo do ginásio e só ter posto os pés em universidades para visitar ocupações ou para dar palestras, nunca para estudar. Em resumo, sei do que falo porque falo do que faço. 
            ——

            Finalmente, a parte que só rindo: não, Anarquista Lúcida, o Paulo Coelho e outros da mesma laia não estão “usando recursos linguísticos nao sancionados pela gramática normativa”. Ao contrário, estão deixando de usar recursos que a lingua lhes oferece, para escrever um texto pobre e molenga, sem espírito e sem inspiração, mediocre. E quem escreve “foi à pé” não é um “transgressor” da gramática que você insiste em chamar de “normativa”. É um ignorante que não sabe o que é crase, nem muito menos para que serve. E reconhecer isto e não gostar do que reconhece não é ser “conservador”, é saber que a deterioração geral da qualidade é um dos pilares da manutenção do status quo. Conservador é quem contribui para a deterioração, relativizando-a. Conservador é quem nivela por baixo.

          11. Estamos falando língua diferentes…

            Vc diz que eu respondo a coisas que vc nao disse, Bom, respondo ao que entendi do que vc disse. E a palavra “ignorância” dificilmente pode ser considerada nao valorativa… (vc nao a aplicou à fala popular, mas à escrita de autores contemporâneos; mas eu tb nao DISSE que vc aplicou, eu PERGUNTEI; há uma certa diferença entre essas duas coisas). Mas vc simplesmente faz de conta que eu nao disse o que eu disse. Assim realmente nao adianta.

            Nao me venha com Camoes e Gil Vicente e quejandos para falar da mudança da língua portuguesa. Já te disse mil vezes que nao sao os escritores que caracterizam uma língua. De onde eu tirei essa “idéia exdrúxula”? Bom, de bibliografia sociolinguística que li, em especial dos artigos da Maria Eugênia, que já cita outros autores, inclusive historiadores da gramática. E, se a mudança fonológica já tivesse ocorrido no séc. XVI, os versos de Camoes nao ficariam de pé quebrado hoje, porque ele já os teria construído com as sílabas átonas. E há motivo fonético para a mudança do ritmo da língua causar a preferência pela ênclise. Nao consigo visualizar nenhum motivo fonético que faça a ênclise causar a mudança de ritmo… Aliás, releia o fim do terceiro parágrafo do SEU comentário. Vc lá diz coisas, sobretudo a citaçao de Fernao de Oliveira, que mostram que a mudança nao tinha sido feita entao…

            E tb tem dó ao falar de influência da escola e da literatura em Portugal dos séculos XVI até mesmo, em menor grau, XIX. Que percentagem da populaçao era escolarizada nessa época? Ainda mais no grau em que tem contato com a literatura? Isso sem falar no fato, que vc pode querer recusar, mas é verdadeiro, que a escrita tem pouquíssima influência na fala, que essa influência nao se dá sobretudo por ensino escolar explícito e sim por “imersao” nos textos, e que é muito lenta, e além do mais se dá, no pequeno grau em que ocorre, sobretudo no léxico e na aquisiçao de certas construçoes e padroes textuais que praticamente só sao usadas na escrita. De todos os aspectos de uma língua, os fonéticos seriam os últimos a serem influenciáveis pela escrita, que é MUDA… A influência da escrita pode se dar mais na fala monitorada, mas as vezes em que falamos de forma monitorada sao um pequeníssimo percentual das vezes em que falamos simplesmente. A fonologia do PE mudou porque línguas mudam, simples assim. E nao mudou aqui (esta mudança).

            Em uma língua estrangeira que nao aprendemos no terreno é claro que a aprendizagem é diferente, porque todo o contato com a língua vem pela escola, e o que é aprendido na escola nao se contradiz a um saber inconsciente que já temos super resistente.

            A fala é como andar de biicicleta, é um saber do corpo (mais do cérebro, claro, diferentemente do andar de bicicleta; mas há tb uma aprendizagem motora e perceptual). É super rápida e automática. E os aspectos fônicos de uma língua sao os primeiros que aprendemos, até no útero (o padrao rítmico: bebês americanos de 3 meses já sabem, ao ouvir francês, que nao é a língua deles; com 3 meses ainda nao sabem isso diante do holandês, que é do mesmo tipo rítmico que o inglês, mas aos 6 já sabem. No fim da fase de balbucio, as crianças já sabem — ANTES DE SABER QUALQUER COISA SOBRE SENTIDO DE PALAVRAS — que combinaçoes de fonemas ocorrem ou nao na língua; e já balbuciam segundo esses padroes). Por isso sociolinguistas aceitam como falantes nativos quem adquiriu a linguagem na variedade estudada até os 5 anos; depois disso nao sao mais considerados falantes nativos daquela variedade.

            Até numa língua estrangeira isso se verifica em parte, é por isso que crianças aprendem língua muito mais rápido do que adultos; com boa fonologia, com poucas exceçoes, só quando aprenderam muito cedo; com boa sintaxe, quando aprenderam antes da adolescência;  agora nao há limites quanto ao léxico, que, ao contrário, é melhor aprendido por adultos (por isso há casos como o da Genie, que, privada de contato humano até os 13 anos, nunca conseguiu falar gramaticalmente, embora tivesse adquirido um léxico razoável). E creio (CREIO; sobre isso nao tenho bases para falar) que tb padroes sintáticos complexos (padroes de subordinaçao raramente usados, por ex. diferentemente, por ex, de escolha de preposiçoes, que é algo muito mais básico) e padroes textuais sejam melhor aprendidos por adultos, e sao onde a influência da escrita costuma ter um papel maior.

            Quanto a saber do que falamos, sabemos por meios diferentes. Me parece, pelo que vc diz, que vc tem mais vivência literária do que eu, que tenho alguma, mas nao muita; e eu, embora nao seja especialiata em sociolinguística, tenho muitas leituras de sociolinguistas que fazem pesquisas empíricas, com dados (corpora volumosos de textos orais ou escritos, conforme o caso) e usando métodos estatísticos. E várias leituras de psicolinguistas e neurocientistas que estudam a aquisiçao da linguagem. 

            Com relaçao a Paulo Coelho, vc pode nao gostar da literatura dele. Isso é questao de gosto. Nao conheço, nao vou palpitar. Pode achar o texto molenga, etc. Mas o exemplo que deu da “ignorância” dele nao é um nao saber sobre língua, é um nao saber sobre ortografia e códigos da escrita. Ortografia é CÓDIGO, é um saber consciente. Isso nao tem nada a ver com língua. Já te disse, a escrita é OUTRO SISTEMA SEMIOLÓGICO.

            Finalmente, advogar a democracia linguística nao tem nada a ver com “nivelar por baixo”. A nao ser que se tenha a idéia, que vc negou ter, de que as falas populares valem menos que quaisquer outras. Claro que sou a favor de um maior contato com a escrita, com a ampliaçao do léxico, com a interiorizaçao de padroes textuais mais complexos. Que melhoram A ESCRITA das pessoas. Mas no que diz respeito aos aspectos mais internos de uma língua (fonológicos e sintáticos sobretudo) o que melhor vale é o que é realmente usado pelos falantes.

             

          12. De fato, estamos falando línguas diferentes

            Eu digo uma coisa, você lê outra exatamente contrária. O que eu disse, e não entendo como você pode ter lido outra coisa, é que a escrita do século XVI já tinha adotado a ênclise, o que é inegável, enquanto a fala preferia a próclise, o que também é igualmente incontestável. Que a ênclise, na fala, era usada por um grupo restritíssimo, a corte e os poetas que a serviam, enquanto a imensa maioria da população continuava antepondo o pronome ao verbo, e a falar como falamos hoje no Brasil, sem reduzir as átonas. Que, na fala, era comum, como é hoje no Brasil, o uso do pronome subjetivo no lugar do objetivo.

            A fonologia do PE não “mudou porque mudou”. Mudou porque a posposição dos pronomes átonos reforçou-lhes a atonia (e seria interessante investigar se eram chamados “átonos” quando a norma da posposição foi adotada) , e esta atonia, por sua vez, por assimilação, reforçou a das demais sílabas não tônicas.

            Ficou claro? Vou esclarecer um pouco mais: os portugueses, no século XVI, falavam como os brasileiros falam hoje, e os escritores portugueses escreviam como o grosso dos portuguese hoje fala. O exemplo de Portugal mostra, sem a menor sombra de dúvida, que a escrita e a gramática precederam e modificaram a fala. E isto nem é incomum, no italiano ocorreu a mesma coisa, quando o dialeto florentino, que como o nome diz só era falado em Florença, foi escolhido como língua de unificação do país em construção e hoje, descontando-se os diferentes sotaques, é a língua padrão diária dos italianos. Ou mais ainda no alemão, depois que o Lutero traduziu a Bíblia usando o dialeto de Lubbeck, a cidade mais importante da Liga Hanseática, e essa tradução foi bem mais tarde escolhida como base de uma língua totalmente artificial que é hoje utilizada cotidianamente em toda a Alemanha, processada no cérebro de todos os alemães em menos de 700 microssegundos. Isto aconteceu porque, como em Portugal, a língua “nova” (no caso do elemão, sem aspas) foi ensinada à população, nas escolas, nos teatros e nas comunicações das autoridades, e acabou adquirindo o status de língua natural. E qualquer teoria que negue isto está, simplesmente, errada.

            Então, simplificando mais ainda, au afirmo que a fala e a língua são dois sistemas semióticos distintos e separados. Você mistura o que eu digo da fala para negar o que eu digo da escrita, ou vice-versa, e depois vem me contar que elas pertencem a dois sistemas semióticos diferentes. Portanto, vamos repetir: sou completamente a favor da “democracia linguística”, como você diz, na fala. Na escrita, que pertence a outro domínio semiótico, essa “democracia” é impossível. Sou completamente a favor de uma gramática aberta, que aceite e sistematize diversas maneiras diferentes de escrever a mesma coisa, dentro de certos limites. Sou a favor, também por motivos de democratização, de uma reforma ortográfica básica e pouco intrusiva, que elimine alguns dos bichos-papões da maioria dos “escreventes”, como a crase e a multidão de acentos diferentes com a mesma função de marcar a tônica. Mas enquanto a gramática corrente disser que a fusão do artigo definido feminino singular “a” com a preposição “a” é chamada “crase” e marcada na escrita com um acento grave – à –, vou continuar dizendo que alguém que escreve “foi à pé” não é um transgressor nem um combatente pela democracia linguística, é alguém que desconhece (já que você parece não gostar do verbo “ignorar”) as ferramentas do próprio ofício. É um cantor que não aprendeu a segurar uma nota, um engenheiro incapaz de fazer contas de multiplicação, e devia procurar outro ofício.

            Sei muito bem que a maioria dos cantores e principalmente cantoras de hoje em dia é incapaz de não semitonar, e que são comuns os engenheiros que não incluem os efeitos da ressaca nos cálculos de uma ciclovia construída junto ao mar, e que isso é considerado normal e aceitável pelo mercado ávido de mercadorias vendáveis, pelo público que compra a pacotilha e pela academia e a “crítica” que a tornam palatável. Mas não estou vendendo nada, e não sou obrigado nem a ouvir Gal Costa nem a achar bonito que um escritor não saiba escrever.    

          13. Bom, chegamos ao impasse

            Vc insiste em algo que sei que nao é verdadeiro (essa possibilidade da escrita de escritores literários influenciarem a língua falada de uma populaçao inteira) e ainda diz que isso teria sido provado pelo caso português. Ignora completamente o que eu disse sobre haver motivo fonético para o ritmo acentual forçar a ênclise, mas nao para o contrário. Nao te interessa nao é?

            Os casos do italiano, do alemao, etc, que vc cita, nao se referem à fala das pessoas, mas à escolha entre vários dialetos, e até línguas minoritárias, para ser a base da língua ESCRITA, porque antes nao havia unidade linguística (a maioria dos ditos dialetos italianos nao sao dialetos, sao línguas minoritárias; quanto ao alemao nao sei). Os falantes continuaram a usar os dialetos, mas a exigência de ter empregos, etc., os levou a aprender a língua oficial, no início como se aprende uma língua estrangeira. Ã medida que os dialetos foram sendo relegados apenas à comunicaçao face a face, foi se criando sim uma certa unidade linguística, mas ao longo de séculos… E creio que o rádio e a televisao devem ter tido mais influência nisso do que a escola, e a própria escola, bem como o hábito da leitura, sao muito mais difundidos nesses 2 países do que em Portugal, e há mais tempo. .

            O que vc diz sobre a aceitaçao de diversas maneiras de escrever a mesma coisa (que sao reflexo de várias maneiras de dizer a mesma coisa) é o que eu digo: democracia linguística, nao só na fala como na escrita, independentemente do que prescreve a gramática normativa. E esse “dentro de certos limites” é estabelecido por quem? Nao há critério. O único que existe, e é falho, é o da gramática normativa, que prescreve uma linguagem que ninguém mais usa. A nao ser que vc queira que seu gosto pessoal seja o critério…

            Agora, marcaçao de crase, ortografia, nao sao reflexos de fatos de uso, sao convençoes puramente da escrita (nao falei da própria crase, falei da MARCAÇAO dela). A ortografia poderia ser completamente diferente, e isso nao mudaria a língua em nada. Paulo Coelho, ao usar o exemplo de crase em “à pé” q vc cita, mostrou nao saber isso, as convençoes da escrita. Nao é por isso que ele é, ou deixa de ser, um bom escritor (nao estou dizendo que é; nao conheço). E Gal Costa é péssima cantora, é? É, vc parece tomar o seu gosto pessoal como medida de todas as coisas. 

          14. Não, você está enganada

            Nada do que você disse agora a respeito do modo de adoção de línguas padrão artificiais em detrimento das línguas naturais contradiz o que eu disse a respeito. E não é que não me interesse, é que não estou de acordo, e já disse no começo da conversa que a ditadura da tônica não foi a causa, mas a consequência da ênclise. A tendência natural da fala portuguesa nos séculos XV e XVI era pela próclise, e a atonalização da língua não havia ocorrido: os portugueses falavam como nós, colocando os pronomes oibjetivos na frente dos verbos e usando pronomes subjetivos no lugar dos objetivos, igual que nem que nós, sem tirar nem pôr. Portanto, não existia “motivo fonético para o ritmo acentual forçar a ênclise”.  A adoção da ênclise foi uma decisão política, para marcar a diferença do português em relação ao castelhano, refletindo o momento de consolidação da independência total depois da derrota final dos espanhóis e a ascensão do poderio naval português. E anterior à atonalização da língua.

            Os galegos também usam os pronomes objetivos pospostos na escrita e na fala e nunca houve nem sinal de redução das sílabas átonas na língua deles.

            Não quero me estender mais sobre a gramática normativa e os meus gostos pessoais, não acho que valha a pena. Mas sim quero dizer algo sobre a crase. Não se trata apenas de desconhecimento do “código”, seja lá o que isso for. A crase é uma contração, de uma preposição com um artigo feminino. Se o indivíduo escrevente deixa de usar a crase onde ela é necessária, pode-se alegar que ele desconhece o código, muito bem, passemos. Mas quem usa crase de a+a diante de um substantivo masculino mostra que sim conhece o código, mas não o entendeu, não o sabe usar. E quem tem esse nível de compreensão da própria língua, quem não entende algo tão básico como a diferença entre masculino e feminino, não pode ser bom escritor. E tanto isto é verdade que nem o Paulo Coelho nem a multidão de novos “escritores” que pulula nas páginas culturais dos jornais e revistas é capaz de escrever uma única linha original, mostrar o mais mínimo sinal de um uso pessoal da língua comum que justifique a sua pretensão à literatura. Ao contrário, com raríssimas exceções, escrevem textos sem nenhuma graça, mambembes, pobres, primários, bem equivalentes ao conhecimento que essa txurma tem dos recursos da língua. Se fazem sucesso, vendem livros, vão às feiras, é porque sempre há “críticos” dispostos a falar bem de qualquer bosta em troca de uma noite de hotel em Parati na época do FLIP, ou, no caso específico do Paulo Coelho, porque fala de temas que a máquina de promoção do obscurantismo já cuidou de inculcar no distinto público. E se alguém apontar o dedo prà tramoia, sempre haverá um linguista pra dizer que é conservadorismo e que a gramática normativa etc. 

            E não, não se trata de um fenômeno brasileiro. A porcarização é mundial. E essa porcarização, como a precarização do trabalho, não é um retrocesso, um recuo de algo anteriormente bom que se deva conservar. É o estágio final da construção de um mundo com donos, para perpetuar essa posse. E os que queremos um mundo sem donos, os que lutamos pelo fim deste mundo e não para reformar a porcaria, não aceitamos nenhum aspecto dessa porcarização, onde quer que ela se manifeste. “Conservadores” são os que colaboram com ela. A ignorância é contrarrevolucionária, sempre.

          15. Nao estou enganada nao. VOCÊ está

            Respondendo por pontos isolados, porque estou cansada.

            1) Sei que nao se falava com ênclise antes; e continuou nao se falando por muito tempo… A mudança do sistema fonológico ultrassegmental nao foi consequência da ênclise, isso nao faz nenhum sentido, é o contrário que aconteceu; vc nao quer que seja assim, continue acreditando no que acha, que que eu posso fazer?

            2) Língua nao se muda voluntariamente, isso é uma heresia; meia dúzia de escritores e gramáticos decidirem que a língua vai ser assim ou assado, nao me faça rir. Quer continuar acreditando nisso, vide 1.

            3) Usar crase diante de substantivo masculino obviamente nao significa nao reconhecer a diferença de masculino e feminino, apenas significa que a pessoa em questao nao conhece as regras — explícitas, codificadas — do uso da crase.

            4) Se Paulo Coelho é mau escritor, nao sei se é ou nao, nao é por usar mal a crase, obviamente também.

            4) Porcarizaçao, ignorância — vc só está exibindo seu ELITISMO.

             

          16. O que cansa é a autoridade

            1) Não me interessa o que você leu. Mostrei que a ênclise veio antes, muito antes da redução das átonas (basta recitar Camões ou Gil Vicente em voz alta para ver isso, foi justamente este o início da conversa), mas você só tem a dizer que não é assim porque não é assim, num mal disfarçado argumento de autoridade. Mostre o contrário do que eu disse, explique como é que algo que ainda não existia pode ter influenciado a adoção da ênclise.

            2) De novo a autoridade, desta vez canônica, contra o hereje. E de novo, não me interessa o que você leu. O alemão e o italiano são línguas artificiais, sistematizadas e sintetizadas por gramáticos por razões políticas, que ninguém falava, e hoje são línguas nativas de quase duzentos milhões de pessoas. Fale disto, em vez de apelar para o Santo Ofício.

            3/4) É óbvio que o Paulo Coelho e os seus semelhantes não são maus escritores porque não sabem usar crase. Eles não sabem usar crase porque são maus escritores, porque desconhecem a língua. A “obra” deles não enriquece a língua com novos recursos e novas maneiras de contar uma história. Muito pelo contrário, fazem um uso limitado dos recursos já existentes, assaltam a lógica, mancham a beleza e atentam contra a economia da escrita; como têm recursos limitados, produzem textos repetitivos e substituem o estilo pela abundância de adjetivos. Escrevem, em resumo, mal.

            5) Que você é partidária da porcarização, já sabíamos. O uso do epíteto “elitista” para os que se insurgem contra a porcarização é um recurso demagógico comum de uma certa esquerda de araque que defende a “democratização” das misérias do capitalismo.

          17. Ai que cansaço! Respondendo, pq tb sou teimosa

            1) Vc mostrou que a ênclise veio antes? Na literatura, na escrita, coisa que nao importa. Vc faz de conta que nao “ouviu” as coisas que eu já disse.

            2) Estou usando um argumento de autoridade? Bom, se vc acha que usar resultados de autores que fazem pesquisa sobre isso é argumento de autoridade, entao estou. Aliás curioso esse seu desprezo pelo conhecimento específico, para quem defende tanto a “qualidade” (que nao sei onde andaria, vc nao dá os critérios dela… ; em questoes estritamente de língua nao há critério para tal, coisa que eu já disse à exaustao).

            3) Já respondi sobre o italiano e o alemao; é mais ou menos  (mas em grau menor, porque se deu entre línguas mais próximas), o mesmo que o uso das línguas latinas que vieram a ser faladas por povos que antes tinham outras línguas; questao de substituiçao de línguas por motivos ligados ao poder, e nao de transformaçao interna de uma língua já usada. Se vc nao vê a diferença, paciência.

            4) Nao discutirei Paulo Coelho. Nao saber novos modos de contar uma história é mau para um escritor literário. Mas tem pouco a ver com “desconhecer a língua”. Todos os comentários que vc fez sobre ele, que nao sei se justos ou nao, tem a ver com o autor literário, nao com o usuário da língua.

            5) Blablablá. Desconhecimento dos males do preconceito linguístico? Talvez, na melhor das hipóteses. Acho que é elitismo mesmo, ou talvez saudades de uma língua e de um tempo que já passou.

            E CHEGA! Essa discussao nao está levando a nada.

          18. Sou mais teimoso ainda

            1) E da escrita passou à fala, sim, exatamente como eu disse.

            2) A “qualidade” é o uso máximo dos recursos da língua, a economia do estilo, a criatividade e a expressividade. Coisas todas ausentes em quem não domina a ferramenta, mas quer exercer o ofício. Não ligo se um engenheiro põe vírgula entre sujeito e predicado, ou que um médico escreva “pra mim fazer”. Mas do meu advogado espero que saiba pelo menos usar subordinadas, para evitar que um advogado que sim saiba não se aproveite de uma frase canhestra para lhe dar uma interpretação contrária aos meus interesses. E de profissionais da língua, de gente que ganha dinheiro escrevendo, de tradutores como eu, de jornalistas, revisores e, sobretudo, de escritores, exijo que conheçam a fundo a língua em que escrevem. Ou que procurem outro ofício.

            2b) Não desprezo o conhecimento específico, muito pelo contrário. Desprezo certas construções acadêmicas ideológicas com pretensão a “conhecimento” que não levam em conta a realidade da língua e tentam encaixá-la nos seus conceitos.

            3) Você está comparando a “passagem” do vêneto, do celta, do lusitano para o latim, língua do conquistador militar, completamente estrangeira. Eu estou falando da adoção de formas de falar a mesma língua, ou variantes dela, correntes na corte ou outros centros de poder, sistematizadas pela literatura e a gramática e adotadas pela população por imitação e desejo de ascensão social, ou por qualquer outro motivo, pouco importa. O que importa é a direção deste movimento, da literatura e da gramática para a fala. A ênclise não foi resultado de uma “transformação interna da língua”, mas da decisão consciente e deliberada de poetas e gramáticos, depois assimilada pela população geral. E na evolução da língua portuguesa em Portugal a partir do século XVI isto está claríssimo e não se pode negar, a não ser que você postule que os gramáticos do século XVI previram a redução das síilabas átonas 150 anos antes de ela começar a ser realidade na fala e se anteciparam em pôr os pronomes átonos na posição que viria a ser mais confortável para os falantes do futuro.

            4) Um escritor é um superusuário da língua. E maus escritores são usuários que não sabem usar a própria língua.

            5) Repito o que disse.

          19. É mesmo. Conseguiu me cansar deveras

            Concordo com o que vc disse no 5. Vc repete o que disse. E eu cansei de repetir os argumentos contra, que já disse mil vezes. Entao, vc fica com o que acha, e eu fico com o que sei (sim, sei, porque acredito em pesquisas empíricas, mais do que em impressoes que alguém extraiu da sua leitura literária).

            E, repare, a discussao já descambou. E eu posso ter te chamado de conservador e elitista, mas nao desconsiderei a sua vivência literária; vc, além de desconsiderar o conhecimento acadêmico, simplesmente disse que sou adepta da porqueira. Ora, ora, se nao há respeito — e isso começa a ser mútuo, o que nao era no início — para que discutir? Nao vale a pena argumentar com quem nao respeitamos. Pena, a discussao poderia ter sido mais proveitosa do que foi.

          20. Aí podemos concordar

            Pode ser que você tenha razão. Não me senti particularmente agressivo, mesmo porque o tema não comporta, mas ando metido em muitas discussões ao mesmo tempo e o espírito de uma pode ter vazado para a outra. Seja como for, quem decide se é ofensa é o ofendido, e peço desculpas. Não foi intencional.

          21. Ok quanto a isso

            Acho — e vc pode achar que isso é uma presunçao minha — q vc nao sabe as consequências de certas posiçoes sobre língua. Nao seria assim intencionalmente elitista, apenas nao tem noçao do que seu tipo de posiçao representa. Mas vamos encerrar, antes que a coisa se esquente demais novamente.

          22. Só duas observações, sem argumentação

            1) As minhas posições sobre a evolução da língua portuguesa são fruto de estudos empíricos, in loco. Morei cinco anos em Portugal, convivi com linguistas portugueses, coordenei por três anos um grupo de quarenta tradutores portugueses, dei palestras e participei de mesas redondas nas universidades de Lisboa e Évora sobre as diferenças entre PE e PB e participei de um grupo de trabalho sobre história da língua portuguesa na Pompeu Fabra de Barcelona, dei um curso especial de português para tradução automática na Alemanha e depois na Rússia, fui convidado a dar um curso e a fazer um doutorado sobre “bancos de dados bilíngues etiquetados e esqueletos morfossintáticos” no departamento de linguística computacional da universidade de Leeds  e, sobretudo, consultei facsímiles e transcrições de praticamente todos os documentos sobreviventes de português do século XII ao século XV nos arquivos da Torre do Tombo. Não concordamos, e posso até estar errado, mas sei do que estou falando. A minha relação com a língua portuguesa é antes de mais nada profissional. É também poética e amorosa, mas esta é outra história.

            2) Também sei muito bem o que você está dizendo quando fala em preconceito linguístico e em elitismo. E não só não estou de acordo como considero a sua posição preconceituosa e elitista.

          23. OK. Respondendo

            Sobre 1. Bom, diferentemente de vc (pelo que vc disse, rs) respeito bastante o conhecimento acadêmico (mesmo realizado fora da academia) e em especial pesquisas empíricas. Donde, se vc tem pesquisas que provam isso que vc diz, devia tentar comunica-las aos linguistas brasileiros que fazem história da língua e da gramática, pois as pesquisas deles dizem coisas diferentes. Seria o caso, talvez, de comparar metodologias e o tipo de textos usados como base.

            Sobre 2. Duvido que vc saiba do que estou falando quando falo DAS CONSEQUÊNCIAS, sobretudo ESCOLARES (mas nao só), do preconceito linguístico. E nao há como as posiçoes reais que tenho (nao as que vc imagina e me imputa…) serem consideradas preconceituosas e elitistas.

            Vou voltar a algo que vc disse, e peço apenas que vc pense no caso, nao precisa me responder. Em um de seus comentários anteriores, vc disse aceitar mesmo na escrita alguns usos linguísticos nao conformes à gramática normativa “dentro de certos limites”. Bom, como te disse, nao há nenhum critério objetivo para demarcar esses “limites”. Quer que eu te diga qual é o real limite? Nao digo que vc pense explicitamente isso, mas é o único limite que pode ser traçado quando se aceitam infraçoes à gramática normativa, mas nao todas. Aceita-se aquilo em que a língua usada pela classe média alta e pessoas escolarizadas tb apresenta; mas nao aquilo que os membros do povo fazem, sobretudo questoes de concordância. Pense no que isso significa…

          24. Algo interessante sobre a colocaçao dos clíticos em espanhol

            Consultando a Wikipédia para o espanhol, me deparei com o seguinte:

            “Antes del siglo XV, los clíticos nunca aparecían en la posición inicial, incluyendo no sólo la posición inicial en la frase principal pero también en la posición inicial después de una conjunción coordenada, una pausa entonacional (intonational pause) o, en verso, a cesura. Podían preceder un verbo conjugado si había otro material procedente como un sustantivo, un elemento negativo o un adverbio. Por ejemplo, “Fuese el conde” pero “El conde se fue”, “No se fue el conde”, “Entonces se fue el conde”. 4 La misma regla se aplicaba a los gerundios, los infinitivos y los imperativos. […]

            En el español moderno la regla para la colocación de los pronombres clíticos es determinada morfológicamente y depende del tipo de verbo. Los clíticos preceden un verbo conjugado—pese a la posición en la frase—pero siguen un verbo infinitivo o un imperativo positivo. Por ejemplo:

            me vio pero verme, viéndome, ¡véame!”

            Ou seja, se os autores literários quiseram mudar a colocaçao pronominal em português para se distanciar do espanhol, eles teriam que usar a ênclise onde os espanhóis nao a usavam mas nao usá-la onde eles tb a usavam. Se os resultados do meu pequeno exercício com Camoes podem ser generalizados, nao foi o que aconteceu. Camoes só usa a ênclise onde os espanhóis tb a usam, seja antes ou depois do Séc. XV, e usa a próclise nos mesmos casos que os espanhóis já a usavam no tempo dele (Séc. XVI).

          25. Tomás, fiz um pequeno exercício

            Vc tinha falado sobre o uso da ênclise por Camoes e Gil Vicente. De Gil Vicente só li o Auto da Mofina Mendes, e há exatamente 50 anos atrás, quando fiz vestibular; nao lembro nada. Mas Camoes é um poeta que adoro e leio frequentemente. Estranhei o fato de nao ter notado esse uso majoritário de ênclise, embora quando a gente lê poesia por prazer nao seja costume notar esse tipo de coisa. Resolvi fazer um pequeno exercíc io, e contei todos os pronomes oblíquos do episódio de Inês de Castro.

            Bom, se eu nao fosse justa, e fosse contar apenas os usos sem verificar os fatores que favorecem ou exigem a próclise ou a ênclise seria um banho absoluto a favor da próclise: 23 x 9, quase 3 vezes mais. Mas como sou linguista, e sei que nao é assim que se faz pesquisa quantitativa, levei em conta os condicionantes. Ainda assim a próclise vence de lavada. Dos 9 casos de ênclise, TODOS sao em circunstâncias que até mesmo falantes brasileiros que ainda usam pronomes oblíquos usariam a ênclise: 5 casos após imperativo, onde ela é obrigatória, 3 casos após infinitivo, onde é favorecida, e apenas um de ênclise com verbo finito, mesmo assim em início absoluto. Já dos 23 casos de próclise seria justo descontar os 16 em que mesmo os portugueses de hoje usariam próclise (em oraçoes iniciadas por conjunçao subordinativa ou pronome relativo, após nao ou advérbios, etc.); sobram sete casos onde tanto se poderia usar a próclise como a ênclise; em todos eles Camoes preferiu a próclise.  

          26. Rapidamente, estou inundado

            Oi, Anarquista, desculpe o aparente descaso com os seus comentários. Estou, ao contrário de há alguns dias, atolado em trabalho. Depois de uma longa temporada de seca, entraram juntas quatro encomendas às quais eu, conhecendo a minha famosa tendência a deixar o trabalho por último, tenho de dedicar atenção exclusiva para não perder os prazos — o que, no meu ramo de tradução, é mais grave do que começar uma frase com pronome átono.

            Quando acabar esta série, prometo uma resposta dada com a atenção que os seus comentários merecem. Mas já adianto que os decassílabos do Camões, tanto n’Os Lusíadas como nos Sonetos, não são o lugar mais apropriado para ver como ele usava a ênclise. Os versos decassílabos têm regras rígidas, que praticamente obrigam a licença poética (fazendo o Camões cometer um “nunca contentar-se”, por exemplo), entre outras coisas porque os versos têm duas sílabas poéticas tônicas, a sexta e a última, e é a sexta que dita o ritmo de todo o poema, cabendo à última carregar a rima. As redondilhas das obras teatrais, com versos de cinco ou seis sílabas, e as cartas pessoais estão muito mais próximas do uso “canônico” das regras então vigentes de colocação pronominal. Seja como for, do ponto de vista gramatical, o Camões escrevia como a maioria dos portugueses hoje fala, e como muitos escrevem. E também como escreveram o Machado, o Mário de Andrade e o Guimarães Rosa, enquanto os brasileiros continuamos falando como o Camões provavelmente falava, junto com a maioria dos portugueses da época. Muito do que se diz sobre as “diferenças” entre o PE e o PB escritos decorre do desconhecimento mútuo de como a outra variante funciona de fato na prática cotidiana – desconhecimento que se estende até as academias de letras dos dois países, ou não teríamos tido o desastre que foi a última reforma ortográfica.

            Mas já vou eu me entusiasmando, já pensando em ir buscar fontes e referências. Corto por aqui, antes que seja tarde, e volto dentro de uma semana, mais ou menos.

          27. Esperarei. Se vc responder, e aparente/ eu nao ligar, me avise

            O sistema de avisos do Blog nao está funcionando bem, voltei aqui por intuiçao, nao recebi aviso do seu comentário. Comentando, por favor clique no meu ícone e vá à minha página, me mandando uma mensagem.

          28. Combinado

            Mas vou abrir uma linha nova, aqui não cabe mais.

            Enquanto isso, dê uma olhada nisto:

          29. E o que talvez seja ainda mais importante

            Não foi só a fonologia que mudou no português europeu.. Foi também a colocação pronominal, que adotou a ênclise recomendada pelos gramáticos, e que não era utilizada por ninguém no século XVI, exceto os cortesãos e seus fâmulos.

          30. Mudança sintática PROVOCADA por fatores fonológicos

            Com a mudança do ritmo para acentual, que reduziu imensamente as vogais e tornou os pronomes oblíquos totalmente átonos (e nao semi-tônicos, como em PB) a próclise, sobretudo inicial absoluta, se tornou IMPOSSÍVEL.

          31. Continuando, pq nao estou conseguindo editar p/ acrescentar

            Há vários casos em que mudança num subsistema da língua provoca mudanças em outros. O que estamos vendo no sistema pronominal brasileiro é um exemplo disso. O abandono das formas tu e vós, substituídas por formas que, embora de segunda pessoa real, levam o verbo para a terceira gramatical, como você e o senhor, etc., e mais o progressivo abandono da forma nós, tb substituída por uma forma de terceira pessoa do singular, como a gente, diminuiu grandemente o número de formas verbais diferentes, sobretudo nos tempos em que as formas de primeira e terceira pessoa sao iguais. Isso por sua vez provocou a aceleraçao da perda da concordância, que ocorre em graus diferentes em todas as variedades da língua (e que agravou a diminuiçao do número de formas diferentes, porque tb as da terceira do plural se tornaram iguais às da terceira do singular na maioria dos tempos) o que por sua vez reforçou uma mudança sintática significativa do PB (ACHO que tb ocorre no PE, mas em grau muito menor; nao tenho certeza), que é a perda do dito “sujeito oculto” (salvo em caso de oraçoes sem sujeito, estamos cada vez mais preenchendo os sujeitos, mesmo quando o sujeito é eu e a forma de primeira pessoa é diferente da da terceira), o que por sua vez provoca a desapariçao gradativa dos sujeitos pospostos ao verbo (meus alunos chegam a nao compreender certas frases com sujeito posposto). A mesma confluência de formas, que criou ambiguidade de significado para os pronomes de terceira pessoa gramatical, levou a especializaçao de certas formas de terceira pessoa gramatical (em especial os pronomes antes dativos, lhe, lhes, mas tb os possessivos de terceira pessoa gramatical) para a segunda pessoa do discurso, usando invés disso para ele, ou dele, dela etc, para a terceira pessoa real. Os pronomes antes dativos inclusive avançaram sobre os pronomes acusativos (o, a, etc) que estao desaparecendo da língua falada (frases como “Eu lhe estimo muito”, que nao provocam estranheza em mais ninguém). Já alguns falantes tendem a nao usar os pronomes dativos para o objeto direto, mas entao “misturam pessoas”, usando o pronome te para alguém a quem tratam de você. Isso é língua real, é o que está ocorrendo cada vez mais no uso de cada vez mais falantes, sobretudo nos mais jovens, e inclusive na escrita, influenciada pela fala. E escrita de cronistas, jornalistas, cientistas, que nao podem ser chamados de “ignorantes”.

      2. Ignorância da língua? Em nome do quê?

        Em nome de um “certo” totalmente artificial, decretado por meia dúzia de gramáticos? Quem votou neles para dizer o que é certo? Falantes nativos, por definiçao, conhecem sua língua, nao a língua artificial dos gramáticos, mas a língua real.

        PE e PB sao línguas que estao diferindo há pouco tempo, claro que ainda há intercompreensao entre os falantes de ambas (na pronúncia, nem tanto… Já viu filmes portugueses sem legenda? Compreendê-los é bem difícil…). As diferenças se aceleraram no Séc. XX, donde Machado e Eça nao sao bons exemplos para se julgar isso. Mas provavelmente há diferenças menores de língua entre ambos. E nao sei sobre o seu português, nao prestei atençao, mas duvido que o português que eu escrevo em blogs seja aceito como correto em Portugal, nao é nem no Brasil a se julgar pela gramática normativa. Só que os gramáticos normativos brasieiros fazem de conta que as diferenças entre o PE e o PB nao existem, as gramáticas escritas aqui poderiam se aplicar ao PE. E dizer que se mede uma língua pela escrita, pelos céus, isso é um sacrilégio do ponto de vista linguístico. A escrita é OUTRO SISTEMA SEMIOLÓGICO, que serve para representar a linguagem oral, logo é secundário em relaçao a ela. Há centenas de línguas no mundo que nem escrita têm.

  3. em 1992

    Participei do FITEI (Festival Internacional de Teatro e expressão Ibérica) na cidade do Porto em 1992, é um encontro de paises de lingua espanhola e portuguesa, certo dia estava eu num café com uns amigos portugueses, dentre eles um linguista onde começamos a falar sobre a diferença de português falado no Brasil e em outras partes do planeta, fiquei perplexo quando o linguista afirmou que a minha forma de falar era arcaica, me senti ofendido (idiota que sou) mas ele provou rapidamente, pegou de um panfleto onde tinhamos a primeira estrofe d’ Os Lusíadas e mandou a moça a meu lado que lesse a estrofe, ela leu, depois me passou e pediu que eu lesse ao fim o liguista (lamento não lembrar seu nome) afirmou: Veja: da sua forma o poema é muito mais bonito! – calei-me, claro!

  4. Camões no português do Brasil

    “De modo que, tanto na carta de Pero Vaz de Caminha, como, por exemplo, no livro literário, que são as histórias de Antônio Gonçalves Trancoso, de grande circulação na colônia americana, hoje país independente chamado Brasil, esses dois documentos literários refletem bem a natureza linguística do português que veio para o Brasil. E isso se torna importante para a história do português em Portugal porque, a partir do século XVI, a língua portuguesa na metrópole europeia vai sofrer uma série de influências principalmente influências fonéticas, com um fortalecimento da sílaba tônica que vão provocar a queda das vogais átonas, quer pré-tônicas, quer pós-tônicas, o que deu, com o continuar do tempo, a impressão de que o falar português é mais rápido do que o falar brasileiro. Mas Camões revela bem que tinha a pronúncia daquele português a que o Eça chamou ‘português com açúcar’, porque na métrica de ‘Os Lusíadas’, ou da sua obra lírica, Camões leu os seus versos como qualquer brasileiro dos nossos dias. Isso significa que o português do Brasil não participou dos fenômenos que o português de Portugal conheceu, como, por exemplo, o que eu acabei de referir — a queda das pré-tônicas — e, no século XVII, a passagem do ‘e’ junto de palatal a um ‘ã’, assim não passou para o português, por exemplo, uma pronúncia como ‘baijo’ , como ‘expailho’. De modo que o português do Brasil desempenha para os estudiosos do português de Portugal um documentário extraordinário como fonte de laboratório de pesquisa lingüística.”

    Evanildo Bechara, em http://www2.camara.leg.br/a-camara/conheca/historia/historia/cdnos500anos/seminarios/semin2/fala12.html

  5. Esse livro do Burgess é maravilhoso!

    Li há mais de 20 anos (1994!). Uma das coisas que me marcaram foi a explicação dele sobre como a palavra lua é falada em vários idiomas, e a imagem poética do movimento da língua no português ao pronunciar essa palavra. Se não me falha a memória, a ponta da língua seria como uma lua cheia subindo num crescendo em direção ao céu da boca (ele faz essa alusão ao nosso idioma – em inglês, céu da boca é “roof of the mouth”, que quer dizer teto da boca, não guardando a mesma carga poetica), conforme a palavra lua é dita.

    Um livro para ler e reler.

    A propósito, o título, em português, seria “Um Bocado de Ar”. Pena que não foi traduzido.

  6. Quem mudou

    O Português de Portugal mudou muito nestes 500 anos, o nosso mudou muito pouco. O português falado em Portugal há 500 anos era muito parecido com o português brasileiro.

    Nestes 500 anos, Portugal entrou em contato com muitas outras nações – Leia-se foi invadido e até colonizado por outras nações européias. Teve um período da união ibérica, no qual Espanha anexou Portugal, após a morte de Dom Sebastião, teve um período em que Napoleão invadiu Portugal, e hoje os portugueses imigram tanto para o resto do mundo devido a crise, que o sotaque deles sofre influencias diversas.

    O próprio português na idade média era muito semelhante ao espanhol, de sorte que alguns afirmam que o português é uma evolução do espanhol. Por isto nós entendemos os falantes espanhóis tão bem e eles quase que não nos entendem, pois na lingua portuguesa, existem muito mais fonemas do que no espanhol. Visto pelo ponto de vista dos espanhóis, o portugues é derivado do espanhol, e visto pelo nosso lado, o português é a evolução do espanhol. Aliás a língua portugues é uma das melhores línguas para entender outras línguas latinas. O italiano por exemplo é quase intelígivel para nós, assim como o espanhol.

    Nós brasileiros não, tivemos poucos contatos com outros povos, algumas excessões os indígenas e africanos trazidos ao Brasil como escravos, além agora da influência americana em algumas palavras, por isto nosso sotaque se modificou pouco em 500 anos.

    1. Zé o português nao existia na Idade Média e NAO vem do espanhol

      Aliás, na Idade Média, a língua castelhana era isso, a língua da regiao de Castela. Havia várias outras línguas no território que hoje chamamos de Espanha, e que naquela época nao era um país só, dependendo do século havia os reinos de Astúrias, Leao, Galícia, Navarra, Castela, Aragao, Catalunha, e nem sei se estou esquecendo algum. A língua que veio a se tornar o português (e tb o galego) era o galaico-português,

      Tb nao é verdade que o português seja a língua mais próxima de outras línguas latinas, ao contrário, é uma língua de extremo de território, donde mais isolada das outras, salvo exatamente do galego, e depois do espanhol. A língua mais “intermediária” entre as outras é exatamente o italiano, que é mais próximo de espanhol do que do português, e mais próximo tb da outra língua de extremo, o francês, que pode-se dizer que seja a língua latina mais diferente da nossa, mas que é mais próxima do catalao e de algumas línguas menos conhecidas faladas na Itália e de uma outra língua tb falada na França, hoje quase extinta, o provençal. Há ainda outras línguas românicas mais distantes, como, por ex., o romeno e o romanche, mas delas nao sei quase nada.

      1. Concordo, mas

        Concordo, Anarquista, língua portuguesa na idade media foi só a maneira de falar. Na verdade, ambos, o português e o espanhol vem do latim, da época de Roma antiga, e sofreram influencias das tribos bárbaras que invadiram a península ibérica após o fim do império romano do ocidente.

        Mas o português, justamente por ser uma das línguas mais extremas do continente, mais afastadas, tem elementos da língua latina, e de outras línguas bárbaras, ele é mais complexo sim do que o espanhol, tem mais vocábulos e sons vocálicos. Por exemplo, o fonema “ã” não existe no espanhol. Palavras como “Maracanã, “Jaçanã” soam meio que ininteligíveis para os falantes do espanhol. Já a língua deles, por ter todos os nossos fonemas, é mais fácil de entender para nós.

        A brincadeira que eu disse sobre o português ser derivado do espanhol, vem da falsa concepção dos americanos de que aqui no Brasil falaríamos o espanhol, ou uma “variação do espanhol”. Eles em sua maioria não sabem que no Brasil se fala português, e muitos realmente acreditam lá que falamos espanhol. Na verdade o português é sim, uma evolução do latim, das mais complexas da Europa.

        1. Zé, sou chata com questoes de língua: nao há línguas + complexas

          Vc tem razao no fato de que o português tem mais fonemas do que o espanhol, sobretudo no caso das vogais, e que isso torna entender o espanhol mais fácil para falantes de português do que o oposto. Mas eles tb têm fonemas que nao temos, e nada disso torna uma língua eminentemente + complexa.

  7. Falar cantado

    Certa vez, ao perguntar a um francês que era professor de linguas, qual era na opinião dele a lingua mais bela do mundo, ele discordou que fosse o francês, mas disse que era o português! Justificou-se dizendo que os falantes da língua portuguesa falam “cantado” como se entoassem uma canção, ou um hino. Nunca havia reparado isto, mas comecei a perceber e é assim mesmo, falamos num ritmo cadenciado, como uma melodia. Por isto, quando um brasileiro aprende inglês, mesmo que fale com perfeição, a cadência co que pronuncia as palavras no idioma inglês, o denuncia a origem brasileira, é o que os americanos chamam de “sotaque brasileiro ” na lingua inglesa.

    Isto se dá na minha opinião, porque cada povo imprime a sua alma no idioma. O idioma alemão por exemplo, é frio, autero, disciplinado, quase que severo, em consonância com a alma do povo alemão. O sotaque portugues, de Portugal, é economico em vogais, permitindo uma eficiencia muito maior ao falar, uma vez que 30% dos fonemas são suprimidos na fala. E o nosso sotaque brasileiro é uma obra de arte, pois o brasileiro faz de tudo uma poesia de grande beleza, até transformar o idioma em música. 

    1. O galego é que é nosso “antepassado” linguístico

      Até pelo menos o séc. XIV a língua era a mesma, o galaico-português. E a mudança foi provocada nao só pelos fatores que atuam em todas as línguas vivas mas sobretudo pela meridionizaçao, digamos assim, do reino de Portugal, cujo centro deixou de ser a regiao do Porto e passou a ser a regiao de Lisboa. Até hoje os dialetos do norte de Portugal sao mais próximos do galego que os falados mais ao sul. 

    2. gostaria de agradecer de voce

      gostaria de agradecer de voce ter postado esse link,

      um mundo que me atringe em cheio,. a ser desvendado….

  8. O Português É Um Hino, Não Import´Onde

    Boa noite.

    Um ode à linguagem, pura e filologicamente falando. Mas me intriga muito mais, com relação ao idioma, o porquê das mutações, no Brasil, bem como noutras Colônias o sotaque lusitano se ter mantido (convivi com caboverdenses, angolanos, portugueses; foram oito anos em república estudantil e ciceroneando gente do mundo inteiro). Assustador. O clima, pule de dez dos filólogos, não explica.

    Sim, vale a pena ver Desmundo com toda atenção desmundo, digo, do mundo. Aula de português, história, sociologia, o escambal.

    E parabéns a Marco Neves. Belíssimo texto.

    1. Clima normalmente nao explica nada em pronúncia…

      E nao é verdade que o sotaque lusitano se tenha mantido. Há várias pronúncias em diferentes regioes do Brasil, mas em todas elas o ritmo é bem diferente do português europeu, nao reduzimos tanto as vogais. Em português de Portugal, por ex., querer é QUASE homônimo de crer, a primeira vogal é super reduzida, passa a ser uma vogal central e alta, semelhante ao dito e mudo do francês, ao passo que nós pronunciamos claramente a vogal, que para nós é anterior e nao central,  e média alta, e nao alta. É por coisas assim que os versos de Camoes ficam de pé quebrado lidos por portugueses, porque a vogal super reduzida nao conta como sílaba.

      1. Q’rer E Crer;

        Não me entendeste (ou não m´o fiz). O Sotaque de várias Nações “neo-lusitanas” é mais próximo do português lusitano do que do nosso, que é bem pausado e em que quase não fazemos supressão de vogais. Convivi, como disse, com pessoas de Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau e eles todos falavam de forma mais apressada e agultinante que o brasileiro mediano. A propósito, Víctor, colega caboverdense, quase apanha, uma vez. Em meio a fila enorme, no restaurante universitário, ele disse: — “Odeio bicha”. Foi possível contornar, mas alguns brigões se sentiram insultados e quiseram escalpelá-lo, sem dúvida…

        1. Agora ficou + claro; MAS…

          Isso é mais facilmente explicável, porque a colonizaçao é muito mais recente, e, além do mais, as elites dos países africanos, que sao quem normalmente aprendia português, normalmente estudavam em Portugal. Já a questao do “bicha” é de tipo diferente, é apenas uma diferença vocabular; poderia existir até em diferentes estados do Brasil; como abóbora e jerimum, por ex. E repare que os outros países de língua dita portuguesa tinham muita influência do portugues de Portugal e pouca do brasileiro, donde é normal que, quando há palavras diferentes aqui e em Portugal para a mesma coisa seja a portuguesa a que se encontra neles. Mas eles têm tb muitas palavras diferentes seja do português europeu seja do brasileiro.

  9. Dependendo da época da colonização das áreas do Brasil, os sotaques variam. Há áreas em que se fala o português dos séculos XVI e XVII; outras, do XVIII; em alguns locais, o do início do século XIX. Mas nós, brasileiros, falamos de modo mais parecido com a estrutura gramatical antiga (até o século XVIII – mais gerúndios e menos infinitivos, e são bem mais fáceis de serem compreendidos) com certo acento do norte português bem provinciano mesmo, como é fácil constatar pela leitura de documentos antigos e ao escutar pessoas de algumas localidades do norte de Portugal (principalmente o “R”). O português europeu é que mudou muito do final do século XVIII para cá e se destoa, em pronúncia, das outras línguas latinas – chega a soar como polonês ou russo, enquanto o português brasileiro soa como certos idiomas e dialetos italianos, como o sardo, sem esse chiado do “S” e sem essa correria (bem moderna) ao falar.

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