Paulo Freire e a simplificação da obra de Machado

Sugerido por jc.pompeu

a propósito do apólogo achado de Machado e para encher linguiça no post: um loooongo artigo sobre um Machado alienista alienado alienante…

Do Jornal Opção

Discípula de Paulo Freire assassina Machado de Assis

artigo de José Maria e Silva

Em sua arbitrária simplificação de Machado de Assis, em que comete erros primários de intepretação de texto, a escritora-empresária Patrícia Secco embrutece o espírito do leitor ao falsear o mestre e descaracterizar seus personagens

 adaptação demagógica comete erros graves de interpretação de textos e destrói a universalidade do autor

Machado de Assis: adaptação demagógica comete erros graves de interpretação de textos e destrói a universalidade do autor | Foto: Wikipédia

Localizado nas proximidades do Viaduto do Chá, que, desde a inauguração em 1892, se tornou, durante muitos anos, o principal cartão postal da cidade de São Paulo, o Vale do Anhangabaú será palco, em junho próximo, de um evento literário inusitado — um túnel construído não por concreto, mas por 60 mil livros. Trata-se do lançamento da nova edição de uma das mais importantes obras da língua portuguesa de todos os tempos, a novela “O Alienista”, de Machado de Assis, que, depois da morte do escritor em 1908, separou-se de “Papéis A­vulsos”, o volume de contos em que fora originalmente publicado em 1882, e se tornou um livro autônomo, traduzido em vários idiomas. Mas não se trata exatamente da obra-prima de Machado — o que o leitor vai encontrar nesse lançamento faraônico é uma adaptação de “O Alienista”, coordenada pela escritora Patrícia Secco e patrocinada pelo Ministério da Cultura, por intermédio da Lei Rouanet.

“Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis. Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso”, disse Patrícia Secco, em 4 de maio último, numa entrevista ao jornalista Chico Felliti, da “Folha de S. Paulo”. Proprietária da Secco Assessoria Empresarial S/C Ltda., que juntamente com sua pessoa física já teve aprovados no Ministério da Cultura projetos que somam cerca de R$ 10 milhões captados, Patrícia Secco produz literatura infanto-juvenil em ritmo industrial, com mais de 200 títulos publicados, a maioria com temas da moda, como meio ambiente, direitos humanos e inclusão social. Com o propósito de facilitar a leitura de quatro clássicos da literatura brasileira, Secco pedira autorização ao Ministério da Cultura para captar R$ 1,53 milhão; por incrível que pareça, foi autorizada a captar R$ 1,45 milhão, ou seja, quase o montante que havia pedido para seu projeto. Na prática, conseguiu captar uma cifra milionária — R$ 1,039 milhão — para produzir dois livros a serem lançados num mesmo volume: “O Alienista”, de Machado de Assis, e “A Pata da Gazela”, de José de Alencar.

A princípio, a ideia de adaptar um clássico não é necessariamente condenável, especialmente se for para crianças. As adaptações de clássicos da literatura — começando pela Bíblia — devem ser tão antigas quanto o ato de ler. Em sua já clássica “Uma História da Leitura”, o argentino-canadense Alberto Man­guel conta que, em 1387, John de Trevisa, que estava traduzindo do latim para o inglês a epopeia “Polychronicon”, do monge beneditino Ranulf Higden (c. 1280-1364), resolveu fazê-lo não em versos, mas em prosa, pois sabia que o público já não queria ouvir uma recitação pública da obra (que, por sinal, se tornaria muito popular no século XV), preferindo lê-la diretamente. Da mesma forma, a “Divina Comédia”, de Dante Alighieri, originalmente escrita em versos, mereceu adaptações em prosa e versões condensadas para crianças, que exploram o viés aventureiro de sua viagem ao Inferno, Purgatório e Céu, transformando-o numa espécie de Julio Verne do espírito.

Uma das primeiras justificativas para se adaptar uma obra é, sem dúvida, sua extensão. Poucas crianças são capazes de ler um romance ou uma epopeia que se estende por mais de 500 páginas. A boa adaptação é uma espécie de resumo que tenta extrair a essência da obra sem desvirtuá-la. Carlos Heitor Cony, que adaptou diversos clássicos para o público infanto-juvenil, como Dostoievski, Melville, Mark Twain, Dumas, Gogol, Eça, Manoel An­tônio de Almeida e Julio Verne, ao ser indagado numa entrevista à revista “Cult” se reescrevia ou resumia os livros, respondeu: “Era uma condensação. Eu eliminava pontos mortos, alguns diálogos, detalhes técnicos. Deixava o texto mais denso. Mas preservava a história, o clima e principalmente a expectativa”. Cony foi taxativo: “O bom adaptador não falseia o original”.

Facilitação de Machado nega o escritor

 

 Wikipédia

Paulo Freire: pedagogia análoga à escravidão condena o pobre à fala de tijolo, como se um operário não pudesse ouvir estrelas | Foto: Wikipédia

Infelizmente, Patrícia Secco falseia Machado de Assis. Além de lhe desfigurar o estilo, ela o emburrece. Sua adaptação é um retrocesso, que sacrifica até os avanços linguísticos do estilo machadiano, já ousadamente próximo da linguagem coloquial, numa antecipação das vanguardas do modernismo que só iriam se consolidar no Brasil quase meio século depois. A autora esqueceu-se de que Machado, assim como Borges, Beckett, Graciliano, não dá para ser adaptado em prosa sem que se perca a essência de sua arte. A obra machadiana é basicamente linguagem. Em seus romances, não há enredos rocambolescos nem profusão de personagens, como há em Homero, Cervantes e nos clássicos românticos. Mesmo “O Alienista”, talvez o enredo mais movimentado de toda a sua obra, depende substancialmente da linguagem, pois é nela que moram a argúcia e a ironia do conto.

Para justificar sua adaptação, Patrícia Secco recorre a afirmações demagógicas. “Estou horrorizada. É muito triste pensar que algumas pessoas acham que Machado de Assis, o mestre da literatura brasileira, não pode ser lido pelo sr. José, eletricista do bairro do Espinheiro, que, apesar de gostar de ler, não cursou mais que o primário, ou pelo Cristiano, faxineiro de uma farmácia de Boa Viagem, que não sabe nem mesmo o significado da palavra boticário”, disse a escritora-empresária à repórter Maria Fernanda Rodrigues, do “Estadão”, em matéria de 9 de maio último. Ora, quem disse que um faxineiro não pode compreender Machado de Assis? Se fosse assim, o próprio Machado — descendente de agregados e ex-escravos, somente com o ensino primário — nem existiria. Foi justamente porque em seu tempo não existia uma Patrícia Secco facilitando-lhe Camões, Vieira e Almeida Garrett que o Machadinho do Morro do Livramento embebeu-se dos clássicos, aprendeu francês sozinho e não apenas se tornou capaz de compreender os mestres da literatura universal como até mesmo se tornou um deles.

Com sua adaptação de “O Alienista”, a escritora-empresária Patrícia Secco destrói a universalidade da literatura de Machado de Assis com a pequenez ideológica da pedagogia de Paulo Freire. Foi o criador da “Pedagogia do Oprimido”, uma espécie de marxismo de autoajuda, quem consagrou a tese pedagógica de que o aprendizado é um epifenômeno das circunstâncias materiais e é somente a partir delas que se pode alfabetizar uma criança e despertar-lhe a consciência. O pedagogo brasileiro foi um grande admirador de Mao Tsé-Tung e, assim como o monstruoso comunista chinês mandava os lavradores arrancarem até as flores nativas, porque eram inúteis no universo do trabalho, Paulo Freire também arranca as palavras burguesas da cartilha do trabalhador, determinando a alfabetização a partir das tais “palavras geradoras”, como “tijolo”. É o que chamo de pedagogia análoga à escravidão — o filho do lavrador deve ter os olhos presos ao chão e está proibido de ouvir estrelas.

Patrícia Secco professa a mesma filosofia: se o faxineiro da farmácia não sabe o que é “boticário”, que se arranque então essa maldita palavra dos textos clássicos. Nunca ocorreu a ela que seria muito mais fácil, barato e respeitoso oferecer um dicionário ao faxineiro? Aliás, um trabalhador que resolva ler “O Alienista” — e isso está longe de ser raro — nem precisará de dicionário para descobrir o significado dessa palavra. O próprio conto, que sempre associa o boticário Crispim Soares a remédios, já lhe oferece a resposta. Além disso, tão logo veja a palavra no texto, o faxineiro irá se lembrar de que existe uma rede de perfumaria com esse nome e, por associação de ideias, poderá lembrar-se da palavra “botica” que pode ter ouvido a um parente mais velho. Caso não disponha de um dicionário em casa, o faxineiro machadiano sempre poderá consultar uma pessoa letrada de seu meio, parente ou um conhecido, que se não for capaz de sanar sua dúvida, saberá onde encontrar a resposta. Ou Patrícia Secco acha que só existe vida inteligente em seu meio social e que nas classes pobres não há ninguém capaz de trocar ideias com um faxineiro interessado em literatura?

Censo de 1872 abalou a literatura brasileira

O psicólogo Yves de La Taille, professor da USP e autor do livro “Limites”, considera que os limites morais comportam três dimensões, uma das quais significa desafio — uma pessoa, além de respeitar limites em face dos direitos dos outros e de impor limites em defesa de sua intimidade, deve também superar limites, o que significa superar a si mesma, buscando a maturidade e a excelência. É tudo o que Pa­trí­cia Secco não quer do leitor, com sua simplificação dos clássicos. Nin­guém aprende sem esforço próprio, recebendo tudo de mão bei­jada. Graciliano Ramos começou a ser escritor quando se sentiu de­safiado pelas mesóclises da “Carta de ABC”, do lendário A­bí­lio César Borges, o Barão de Ma­caú­bas, que trazia a máxima “fala pouco e bem, ter-te-ão por al­guém”. A frase o levaria a indagar à sua meia-irmã Mocinha se “ter-te-ão” era um homem. Co­mo Mo­ci­nha, a adolescente se­mial­fabetizada que o ensinou a ler, também não tinha ideia do que fosse aquilo, o me­nino Gra­ci­li­ano, enfezado vi­vente das Alagoas, criado a cascudos e beliscões, teve que descobrir so­zinho, devorando, antes dos dez anos, a prosa romântica de José de A­lencar, bem mais distante da linguagem comum do que a linguagem coloquial de Machado de Assis.

Ao se dar conta da indignação que sua proposta suscitou no País, desde um abaixo-assinado contrário até artigos e editoriais — Patrícia Secco publicou na “Folha de S. Paulo”, no dia 13 de maio, uma defesa de sua adaptação. O título do artigo não poderia ser menos machadiano: “Machado não gostaria de permanecer desconhecido para quem não lê”. Que afirmação mais esdrúxula! Ma­chado, revolucionariamente, sabia-se texto e, como tal, sabia-se também de­pendente do leitor. Em sua tese “Os Leitores de Machado de Assis” (Editora da USP, 2004), o professor da USP Hélio de Seixas Guimarães chega a sustentar que a obra machadiana foi influenciada pelo Censo de 1872 (o primeiro realizado no Brasil e divulgado em 1876), ao revelar que apenas 18,6% da população livre e 15,7% da população total, incluindo escravos, sabiam ler e escrever. “A tomada de consciência da escassez de leitores, problema que se inscreve de maneira cada vez mais radical em seus romances, parece-me fator relevante para ajudar a guinada que o escritor imprimiu a sua carreira”, escreve Seixas Guimarães.

Mas Machado de Assis, como sociólogo e psicólogo nato, também estava preocupado com os que não sabem — ou não querem — ler, oferecendo-lhes não a literatura-texto, mas a literatura-ins­tituição, encarnada na Acade­mia Brasileira de Letras, que detém até o monopólio legal da língua, tão grande é a sua importância. Aliás, ao contrário do que pensa Patrícia Secco, isso torna Machado de Assis o escritor mais conhecido pelos que não sabem — ou não querem — ler, no­meando ruas e escolas e simbolizando as letras nacionais da mes­ma forma que o desgrenhado Be­ethoven simboliza a música para quem nunca pisou numa sala de concerto e só conhece da música erudita o eterno “tchan-tchan-tchan” da Quinta Sinfonia. No pró­prio modo de composição da ABL, que aceita políticos e notáveis travestidos de escritores (como o Barão do Rio Branco, Marco Maciel e Ivo Pitan­guy), Machado de Assis revelou toda sua engenharia político-institucional, dando à literatura brasileira uma dignidade social que ela jamais poderia alcançar numa nação de analfabetos se continuasse sendo produzida em bares, por uma despreocupada geração de boêmios.

E quando procurou fazer da literatura brasileira também uma instituição social descarnada do texto, capaz de chamar a atenção da sociedade por outros meios, Machado de Assis não estava pensando exatamente nas camadas populares da nação — estou certo de que ele pensava, sobretudo, na preguiçosa elite nacional, que, mesmo sabendo e podendo ler, não lia, nem em seu tempo, nem hoje. Machado estava consciente de que, mesmo entre as elites, eram poucos os que tinham o habito da leitura, tanto que seu grande amigo José de Alencar se queixava de que o público conhecia mais “O Guarani” pelo teatro do que pelo texto do romance em si. Portanto, Patrícia Secco revela todo o seu preconceito contra os pobres quando cita uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostrando que 58% dos brasileiros não leram nenhum livro nos últimos seis meses e, logo em seguida, afirma que, “por trás desses números existem rostos e vidas”, mas ao desvendá-los só se lembra de pessoas como “Seu Roberto, motorista de táxi, o Cristiano, caixa da farmácia da esquina, a Dona Nice, copeira do escritório”, pois, segundo ela, “eles são não leitores”.

Ora, só eles? E quantos são leitores entre as elites econômica, social e política do País? Essa preocupação perpassa a obra de vários críticos ao longo do tempo, como José Ve­ríssimo, Sílvio Romero e Otto Maria Carpeaux, que se an­gus­tiavam com o grande número de profissionais liberais, como médicos, engenheiros, advogados, professores e outros profissionais de nível su­perior, que passam ao largo da li­teratura, limitando-se às leituras técnicas de suas respectivas áreas e re­servando o tempo livre para outras formas de lazer, que nada têm a ver com as letras. Por isso, quando se pensa em pobre como sinônimo de não leitor, o que se quer, no fundo, é uma justificativa para arrancar dinheiro dos cofres públicos.

Simplificar livros agrava o problema da leitura

 

 R$ 10 milhões captados no Ministério da Cultura e produção de literatura infanto-juvenil em ritmo industrial

Escritora-empresária Patrícia Secco: R$ 10 milhões captados no Ministério da Cultura e produção de literatura infanto-juvenil em ritmo industrial

Linguagem difícil nunca foi o maior empecilho à leitura. Mário de Andrade, com seu espírito galhofeiro, disse que para se gostar de Machado de Assis é preciso já nascer velho. Eu vou mais longe: para se gostar de literatura é preciso envelhecer cedo. Por isso, o Eclesiastes diz que “o muito estudar enfado é da carne”. Em nenhuma época ou lugar, a leitura foi a mais popular das formas de lazer. A literatura é a mais reflexiva das artes e a maioria das pessoas abomina reflexão, que, para muitos, rima com depressão. Isso ocorre também com a música erudita. Quantas pessoas, ricas ou pobres, formadas ou não, tão logo se sentem tocadas por um concerto de Mozart, uma sonata de Beethoven, logo tendem a afastá-las dos ouvidos, pedindo uma “música alegre”, sob a alegação de que aquele tipo de música lhes provoca tristeza?

Creio que isso ocorre com qualquer povo, só que, no Brasil, fugir da reflexão como o diabo foge de cruz não é uma característica só das massas, mas também das elites. Uma frase de Machado de Assis talvez explique esse fenômeno: “A verdadeira ciência não é a que se incrusta para ornato, mas a que se assimila para nutrição”. Infelizmente, no Brasil, a educação nunca foi um meio de edificação intelectual e moral do indivíduo, como pregava Machado, mas um salvo-conduto para o sucesso social. Nas nações que levam a sério o conhecimento, o indivíduo primeiro busca o saber e, como consequência, conquista o diploma. No Brasil dá-se o contrário: o sujeito busca avidamente o diploma e, se sobrar tempo, vai à cata de algum conhecimento para fingir que não é de todo ignorante. Por isso, lê-se pouco no Brasil, mesmo entre a gente letrada: ler exige uma posição de sentido do espírito — que é cada vez mais rara numa nação que sempre desprezou o mérito.

Simplificar livros não resolve o problema — pelo contrário, agrava-o. Iniciativas como a de Patrícia Secco abastardam o povo brasileiro ao impedi-lo de conhecer o verdadeiro Machado de Assis, sufocado por uma montanha de 600 mil falsificações de sua obra. Nesta semana que passou, dormi menos de três horas por dia, em média, varando as madrugadas na comparação — linha por linha — da sagrada escritura de “O Alienista” de Machado de Assis com o apócrifo de mesmo nome da escritora Patrícia Secco. Ao cabo dessa ingente labuta (que Secco, toscamente, “traduziria” por “ao fim desse grande trabalho”), faço minha a indignação de Alcides Vilaça, professor da USP: “Apre­sentar como sendo de Machado de Assis uma mutilação bisonha de seu texto não devia dar cadeia?” Sim, devia dar cadeia, sobretudo para os tecnocratas do MEC que torraram mais de R$ 1 milhão dos cofres públicos nessa falsificação grosseira de Machado de Assis.

Machado de Assis para consumo próprio

Nem se pode chamar de adaptação esse trabalho de Patrícia Secco. Em sua arbitrária simplificação de “O Alienista”, com graves erros de interpretação de texto, a escritora-empresária embrutece o espírito do leitor ao falsear o estilo de Machado de Assis, descaracterizar seus personagens e descontextualizar sua obra. Segundo ela própria contou a Chico Felliti, da “Folha”, a equipe que “descomplica” o texto é formada “por um monte de gente” (expressão dela, segundo o jornalista), entre eles a própria escritora e “dois jornalistas amigos”. É como pegar pintores de parede num bar e levá-los para restaurar a Capela Sistina. O resultado não poderia ser pior. Onde Machado de Assis escreve: “Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte”; Patrícia Secco traduz: “Uma curiosidade científica iluminou os olhos de Simão Bacamarte”. Além de destruir a musicalidade da frase, a troca de palavras assassina o sentido do texto: “volúpia” tem uma forte conotação sexual, imprescindível para se compreender a paixão de Bacamarte pela ciência, algo que se perde completamente com a palavra “curiosidade”. Além do mais, palavras como “volúpia” e “alumiar” não precisam de tradução: a primeira pode ser lida na Bíblia ou ouvidas em homilias católicas e pregações evangélicas e a segunda, em que pese fazer parte do repertório clássico da língua, é perfeitamente compreensível para qualquer lavrador que nunca frequentou escola, mas sabe perfeitamente o que é uma candeia alumiando.

A impressão que fica é que Patrícia Secco e sua equipe traduziram Machado de Assis para consumo próprio. Ou alguém imagina que uma pessoa esforçada o suficiente para ler um livro não vai ser capaz de compreender, com a ajuda do contexto da obra, palavras e expressões como “congregar”, “atarantado”, “estatelar-se”, “pessoa de consideração”, “déspota”, “laudas”, “demanda”, “estar em erro”, “arruaças e clamores”, “vereança”, “eloquência”, “aritméticos”, “abono”, “vestuário”, “gaiato”, “intuito”, “oficiou”, “lusitana”, “juiz-de-fora” e outras do mesmo nível? Pois todas essas palavras foram substituídas por sinônimos catados arbitrariamente no dicionário sem levar em conta o contexto da obra muito menos o estilo do autor. Analisei minuciosamente a adaptação de Patrícia Secco e hei de voltar a ela. Mas já adianto: trata-se de um caso clínico de analfabetismo funcional, digno de ser recolhido às dependências da Casa Verde de Simão Bacamarte. Em vários momentos, Secco e sua equipe não conseguem compreender o que Machado diz com sua peculiar clareza e desvirtuam completamente o original.

Machado de Assis escreve: “Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. Patrícia Secco deturpa: “Simão Bacamarte começou organizando um pessoal de administração. Convencendo o farmacêutico Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. Reparem no absurdo: a adaptadora transforma o alienista num subordinado do boticário, a quem precisa convencer sobre a necessidade de uma administração em seu próprio manicômio. Em outro trecho, o Padre Lopes diz: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo”. A adaptadora reescreve: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, prejudica o juízo”. Chega a ser inacreditável essa troca da popularíssima expressão “vira o juízo” por “prejudica o juízo”, um barbarismo que deve ter revirado o estômago do primeiro verme que roeu as frias carnes do defunto Brás Cubas!

Deturpando o enredo e a história

Machado conta que, como D. Evarista não conseguia ter filhos, o Dr. Simão Bacamarte “fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial”. Entretanto, “a ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, — explicável, mas inqualificável, — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Qual­quer dona de casa sem nenhum estudo compreende que D. Evarista, por amor à saborosa carne de porco de Itaguaí, não quis fazer a dieta proposta pelo marido e, por isso, não conseguiu ter filhos. Agora vejam a versão analfabeto-funcional de Patrícia Secco: “[Simão Bacamarte] acabou por indicar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre dama, que deveria se alimentar exclusivamente com a carne de porco de Itaguaí, não atendeu aos conselhos do esposo. E, à sua teimosia — explicável, mas inqualificável — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Ela simplesmente está dizendo que o alienista receitou uma dieta de carne de porco à esposa, quando foi o contrário.

Mais adiante, quando descreve a revolta dos Canjicas contra a Casa Verde, Machado de Assis narra: “Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro”. Patrícia Secco estropia o texto: “Os soldados pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse. Mas, enquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro”. A adaptadora não faz ideia da conjunção “conquanto” e, em vez de recorrer a “embora”, a traduz por “enquanto”, transformado Ma­chado em analfabeto. No mesmo episódio, o escritor diz que o ca­pitão dos “dragões” mandou “carregar contra os Canjicas”. Patrícia Secco traduz “carregar” (que, no contexto, significa “investir contra”) por “disparar”, sem perceber que os dragões — como os “Dragões da Indepen­dência” de hoje — usavam espadas e não armas de fogo. Com isso, o leitor de sua adaptação vai achar que Machado de Assis fazia realismo mágico: uma tropa mete fogo na multidão e essa multidão arrosta as balas, sem medo da morte.

Na arbitrária simplificação de “O Alienista”, com erros de interpretação de texto, escritora embrutece espírito do leitor ao falsear estilo machadiano

Na arbitrária simplificação de “O Alienista”, com erros de interpretação de texto, escritora embrutece espírito do leitor ao falsear estilo machadiano

Uma das admiráveis qualidades do conto “O Alienista” é o cuidado com que a história aparece nele. Machado de Assis preocupa-se com os mínimos detalhes históricos e escreve que Simão Bacamarte era “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”. Patrícia Secco corrige para “Espanha”, sem fazer a menor ideia de que, na época colonial em que se passa a história, a Espanha era oficialmente chamada de “Reino das Espanhas”. Em outro trecho, Machado diz que, para D. Evarista, ver o Rio de Janeiro “equivalia ao sonho do hebreu cativo”, sintetizando nessa expressão a sensação de exílio e confinamento que a acanhada Itaguaí produzia no espírito frívolo da mulher de Bacamarte. Patrícia Secco estraga a imagem, substituindo “hebreu cativo” por “judeu cativo”. Ela confunde os hebreus que se tornaram escravos no Egito e foram libertados por Moisés com os filhos da tribo de Judá que, já na terra prometida de Canaã, séculos depois, emprestariam o nome de sua tribo para todo o povo eleito. Se ao citar Dante, Machado tivesse dito, com precisão histórica, “poeta florentino”, não tenho dúvida de que Patrícia Secco iria corrigir para “poeta italiano”. Aliás, numa das raras e lacônicas notas de rodapé, a adaptadora faz isso: ela diz que Averrois é um filósofo e poeta “hispano-árabe”. É o mesmo que chamar Santo Agostinho de filósofo romano-argelino.

Por que Patrícia Secco e sua equipe cometem essa profusão de erros de extrema gravidade ao adaptar o conto de Machado de Assis? Sem dúvida, porque não estão à altura da tarefa. No fundo, a escritora e seus amigos jornalistas, a cada vez que buscam um sinônimo para um termo ou expressão do conto, estão traduzindo a obra para eles próprios e não para o eletricista, o faxineiro, o motorista de táxi, que precisam menos do que eles dessa facilitação. Para se ter uma ideia do quanto é absurda essa adaptação, Machado empregou o termo “transeuntes” e a adaptadora achou por bem substituí-lo pela expressão “os que por ali passavam”. Imagino Patrícia Secco ouvindo uma rádio AM do interior na década de 70, quando o Brasil era muito menos escolarizado do que hoje. Ela ficaria pasmada (ou “espantada” conforme sua tradução de Machado) ao se dar conta de que um dos grandes sucessos de Tonico & Tinoco, dedicado por peões de fazenda às suas respectivas namoradas, era a canção “O Gondoleiro do Amor”, um poema de Castro Alves, cantado pela dupla caipira ao som de violinos. Saudosos tempos em que uma dupla de lavradores elevava o povo até Castro Alves; hoje, gente como Patrícia Secco faz é rebaixar o povo quando dá a ele um Machado de Assis no nível de si mesma.

Redação

43 Comentários

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  1. Lamentável o trabalho dessa mulher. . .

    Lamentável o trabalho dessa mulher, ao reduzir o texto nas obras de Machado de Assis, que por sinal era um mestre do resumo e trocar palavras simples como “boticário”, ela está  incentivando o leitor não evoluir, a achar um castigo consultar um dicionário, privando-o da riqueza da língua portuguesa ela está na verdade emburrecendo o leitor

  2. Paulo Freire, que Deus o

    Paulo Freire, que Deus o tenha em toda a sua glória socialista, não tem nada haver com isso. Quem quer desconstruir Machado é a escritora Patrícia Secco.

  3. Caro Nassif e demais
    Acredito

    Caro Nassif e demais

    Acredito que, tanto Paulo Freire, como Machado de Assis, sentem vergonha do ocorrido.

    Saudações

     

  4. Um grande esforço para atacar

    Um grande esforço para atacar Paulo Freire, que nem opinião tem sobre a Patricia Secco, distorcendo bastante. a meu ver, a pedagogia daquele.

     

    Depois disso, perdi a vontade de acompanhar os argumentos do autor do texto.

     

    Talvez fosse bom uma atenção editorial maior do blog antes de publicar  um texo e escrever uma manchete (essa foi meio “pigenta”,  como dizem por aqui).

  5. É isso que venho criticando

    É isso que venho criticando no chão da escola desde 98: a simplificação cultural. Taí o porquê do lepolepo.

  6. Simplificar só tem vantagens,

    Simplificar só tem vantagens, isto me lembra como se dizia eram as narrações de futebol em alhures:

    Bola para cá, continua para cá, bola para lá, segue pará lá, volta para cá, anda para cá, vai mais para cá, goooolo para cá.

    Estão todos do lado de cá a comemorar!

  7. O ministério da cultura apoia mercenária das letras

    A nefasta cria do socialismo, com a utilização dos recursos públicos repassados pelo governo petista, está fazendo o seu trabalho. Emburrecer o indivíduo para que este não possua capacidade crítica e assim apoiar os seus patrocinadores é o objetivo da maléfica. O lado sombrio da força, comandado pelo imperador das trevas Lulatine, é o maior inimigo da cultura no Brasil. O PT promove o analfabetismo funcional para manter o povo no cabresto, até mesmo no ensino superior brasileiro hoje aumenta os que são incapazes de interpretar um texto, já ultrapassou um terço dos alunos.

    O PT é a verdadeira saúva.

  8. Picareta

    Basta o trecho abaixo para se perceber do que se trata:

    — Machado conta que, como D. Evarista não conseguia ter filhos, o Dr. Simão Bacamarte “fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial”. Entretanto, “a ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, — explicável, mas inqualificável, — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Qual­quer dona de casa sem nenhum estudo compreende que D. Evarista, por amor à saborosa carne de porco de Itaguaí, não quis fazer a dieta proposta pelo marido e, por isso, não conseguiu ter filhos. Agora vejam a versão analfabeto-funcional de Patrícia Secco: “[Simão Bacamarte] acabou por indicar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre dama, que deveria se alimentar exclusivamente com a carne de porco de Itaguaí, não atendeu aos conselhos do esposo. E, à sua teimosia — explicável, mas inqualificável — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Ela simplesmente está dizendo que o alienista receitou uma dieta de carne de porco à esposa, quando foi o contrário.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

    Indefensável. Essa mulher é uma PICARETA. Nassif, gostaria de saber quem foram os patetas dentro do MinC que aprovaram esse projeto.

  9. Amo Machado e a crítica

    Amo Machado e a crítica parece pertinente. Mas o que o autor critica na Patrícia Secco – a simplificação de Machado – repete igualzin igualzin com Paulo Freire, Pior, mais que simplificação, falsificação.

    E daí que Paulo Freire admirava Mao? Hitler gostava de Wagner que gostava de Roxane que não lhe dava bola. E eu detesto salsichas. E daí?

    O autor escreve “(…) uma espécie de marxismo de autoajuda, quem consagrou a tese pedagógica de que o aprendizado é um epifenômeno das circunstâncias materiais e é somente a partir delas que se pode alfabetizar uma criança e despertar-lhe a consciência.”

    Paulo Freire fez uma clara opção pela senzala. E como isso incomoda a casa grande, ah! como isso incomoda…

    Abaixo, um olhar sobre aprendizado, a partir do próprio Paulo Freire, que refuta a mirada – ideológica, ainda que não lhe pareça – de josé Maria:

    Cada item é um capítulo.

    Do índice da Pedagogia da Autonomia:

    1. Ensinar exige rigorosidade metódica

    2.Ensinar exige pesquisa

    3. Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos

    4.Ensinar exige criticidade

    5. Ensinar exige estética e ética

    6.Ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo

    7.Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação

    8.Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática

    9.Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural

    10.Ensinar exige consciência do inacabamento

    11.Ensinar exige o conhecimengto de ser condicionado

    12.Ensinar exige respeito à autonomia do ser educando

    13.Ensinar exige bom senso

    14.Ensinar exige humildade, tolerãncia e luta em defesa dos direitos dos educadores

    15.Ensinar exige apreensão da realidade

    16.Ensinar exige alegria e esperança

    17.Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível

    18.Ensinar exige curiosidade

    19,Ensinar exige segurança, competencia profissional e generosidade

    20.Ensinar exige comprometimento

    21.Ensinar exige  compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo

    22.Ensinar exige liberdade e autoridade

    23.Ensinar exige tomada consciente de decisões

    24.Ensinar exige saber escutar

    25.Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica

    26.Ensinar exige disponibilidade para o diálogo

    27.Ensinar exige querer bem aos educandos.

    1. O MinC errou feio ao aprovar esse projeto

      Tirando a má compreensão das ideias do Paulo Freire, a substância da crítica dele está correta. A mulher chega ao cúmulo de inverter o sentido de passagem da obra original!!!!

      Questões:

      – se um projeto tem objetivo didático, ele não deveria passar pelo crivo do Ministério da Educação? Como é que puderam aprovar essa bomba de projeto?

      – não deveria ser um governo de centro-esquerda o primeiro a ter interesse em evitar essas distorções?

      Infelizmente é populismo pedagógico, sim. Os militantes do PT têm que saber aguentar a crítica quando o governo erra e erra feio. Essa mulher é uma PICARETA.

       

      1. Ato Falho, camarada.

        Você faz crítica aos que atacam o autor da ideia e não a ideia, mas está se contradizendo ao atacar a autora chamando-a de PICARETA. Tirando esse fato, ninguém tem que ler um artigo de segunda só para entender o que o lambisgoia quer dizer. A certa altura do texto, já se vê de quem se trata. Ler textos desenxabidos faz mal ao fígado.

        1. PICARETA SIM, camarada

          PICARETA SIM, camarada, sinto muito. A mulher montou uma espécie de fábrica de texto e chega a inverter o sentido do que o autor diz! Você sabia? Claro que não, afinal você não leu, né espertinho? Esse projeto é indefensável. O cara é reaça? Prolema dele. Ao menos ele se deu ao trabalho de ler a “mercadoria”, nem isso você fez. Esse tipo de militância desmoraliza a esquerda.

          1. Metapicaretagem

            De fato, não li. Estou mais interessado na queda tendencial da taxa de lucro que comecei a estudar para compreender melhor o que a empresária dos livros está aprontando. Não vou ler a papagaida do ilustre beócio. Parei na parte que a múmia desce o sarrafo no Paulo Freire. No google pode ser constatado: é um imbecil de véu e grinalda. Bezerro desmamado do Olavão, o pensador que virou fumaça. Esses adjetivos são para fazer o rejunte dos autores com as suas criaturas. Ao contrário de você, não acho que haja inteligência alguma no pensamento da direita, com todo o respeito. Façamos assim: eu volto aos estudos de Marx e você volta à erudição dos velhacos. 

             

  10. Não sei o que é mais

    Não sei o que é mais lamentável: o estrago que ela fez na obra do Machado ou o que o articulista tenta fazer na de Paulo Freire… Neste sentido, Patricia Secco e José Maria e Silva se igualam pra mim.

  11. Paulo Freire Não Haveria de Ser Conspurcado; sequer Arrolado.

    Bom dia.
    Estranhei, a princípio, a correlação Paulo Freire | Machado de Assis, pois, malgrado se possa, em livre pensar, criar uma ponte entre os filólogos e seus dois tratados, oneroso o é, pois tratam-se de temas assaz distintos. Paulo Freire foi o nosso maior pensador no universo da Educação. Os militares o exilaram, não pela sua tacanhez, como aduz-se, no texto, e sim pela profundidade do seu pensar e pela eficácia do seu método. Machado é o nosso psicólogo | sociólogo | antropólogo | escritor, cronista, retratista de época. Pouco há de se dele falar.
    Mas considero bastante infeliz a cunha criada sobre a obra de Paulo Freire. Extemporânea. Lesiva, até. Sem o confronto das obras, seria mais fácil digerir o objeto, que parece ser a deturpação da obra machadiana, por parte da aludida escritora | empresária.

  12. Cuidado com acusações.

    A crítica é pertinente no que tange a obra em si.

    Quando critica Paulo Freire o autor erra e erra feio.

    Erra tambem quando tenta buscar culpa no financiamento do Minc.

    Eu não sei como funciona estes financiamentos. Acredito que nenhum burocrata do Minc tinha a adaptação à mão para poder fazer a crítica e barrar o financiamento.

    O Financiamento foi concedido para a execução do projeto. Ou não ?

     

    1. Os processos de financiamento


      Os processos de financiamento público não dispõe da obra já feita. Só  depois que do gasto é se poder saber o que a mercadoria.

      1. “Mercadoria”

        Mesmo antes da publicação já se conhecia o critério desse projeto: fazer uma “tradução” sentença a sentença. O que ia sair a “mercadoria” já estava anunciado. Para se aprovar um projeto é preciso conhecimento sobre o assunto, não? Desculpe mas a postura do MinC infelizmente não tem defesa.

  13. Quanta arrogância

    A impressão que tive, após ler o texto acima é que o que o autor do artigo quer mais é mostrar a sua erudição. Percebe-se, em alguns casos, que não domina o assunto da citação, no caso de Paulo Freire de quem ele parece ter asco pelo mesmo ser marxista, e em outros casos cita frases que nem de longe ajudam em seus argumentos, apenas para mostrar que já leu muito.

    Para mim está “dando no saco” esta quase perseguição à esta adaptação do Machado de Assis? Tá parecendo até algumas religiões extremistas, que proíbe a publicação de qualquer assunto com o qual não concorda. Menos gente, não gosta não compre. Proibição e perseguição não.

    Podemos discutir a aprovação pela Lei Rouanet para este trabalho mas aí não teríamos que falar apenas desta captação e sim de mais de 50% delas. Até outro dia a Cláuda Leite era a campeão de captação com a desculpa de poder fazer shows com preços populares, me poupe.

    Não estou nem de longe querendo defender a Patrícia Secco de quem jamais havia ouvido falar mas está ocorrendo uma perseguição exagerada.

    Não vejo problemas com adaptações, as bem feitas, por óbvio, mas quantos aqui já leram esta adaptação do Alienista e estão criticando com base e quantos aqui estão criticando sem ao menos ler a obra??? E se for mal feita o ostracismo é o remédio e não a caça às bruxas.

    Esses dias, visitando um sebo, bati os olhos numa versão de O Enfermeiro em quadrinhos. Não tive dúvidas, peguei na hora para levar para casa antes que outro o fizesse. É a minha obra favorita do Machado de Assis, superando até a outra que mais gosta que é justamente O Alienista. Ainda não li mas deixei em cima da mesa e vi que minha filha de 9 anos folheou o livreto. Só por isso já valeu a compra, me deu a oportunidade de falar de Machado de Assis para ela, não deve nem lembrar mais do que eu falei mas fica uma semente na sua cabeça. As adaptações talvez sirvam para isso.

    1. Ele leu a tal “adaptação”, ao contrário de você

      Ele leu a tal “adaptação”, apontou vários trechos, ao contrário de você que sequer se deu ao trabalho de ler o texto dele com atenção. Quem é o arrogante? Se você não teve preguiça de escrever, deveria ter procurado se inteirar do assunto antes de comentar, não? Tivesse você lido, veria que a postura dele em relação a Paulo Freire é criticável, sim, mas que ele está correto na essência do artigo. A tal “adaptação” não passa de um bomba oportunista que muito provavelmente o próprio Paulo Freire criticaria. Esse caso é ainda pior do que aprovar projeto da Cláudia Leite, pois um projeto com propósito didático deveria passar pelo Ministério da Educação, ou ao menos que o pessoal do MinC tivesse um mínimo de sensibilidade, pra início de conversa. Ser militante não significa ser tapado.

      1. Acho que não me fiz entender

        Meu título ficou forte demais, após a publicação do post tentei editá-lo e não consegui, paciência.

        Minha crítica não é só para este artigo específico onde pelo menos ele leu a obra. Minha crítica é contra o que eu acho um exagero.

        A gritaria geral que tenho visto é mais pelo “pecado” de se adaptar Machado de Assis, como se ele fosse uma espécie de santo, e menos pelo financiamento. Quanto ao financiamento eu acho válida a discussão, pelo pecado não.

        Não defendo a obra da Patrícia Secco que realmente ainda não li, mas defendo o direito da mesma ser executada. O que tenho visto por aí é uma verdadeira caça às bruxas.

        E por fim as áreas de cultura e educação se sobrepõe, tem projetos que cabem dentro tanto do Ministério da Cultura quanto do da Educação, uma maior cooperação entre os dois em casos como esse talvez fosse a solução.

         

        1. O problema é que NÃO É uma adaptação.

          Peixe, o problema é que NÃO É uma adaptação. Se ela tivesse feito uma adaptação, livre, não tinha problema nenhum. Nesse caso o escritor pega o argumento, os personagens, a linha narrativa, e escreve uma novo texto, seu e totalmente original. Inclusive com a liberdade de ambientar a história como bem entender. A rigor ela não adaptou, o que ela fez foi uma espécie de “tradução” português-português, montou uma espécie de fábrica de texto onde distribuiu o conteúdo e cada um saiu “simplificando” as sentenças. O troço é tão mal feito que chega a inverter o sentido do que está sendo dito! Picaretagem pura. Isso mostra que no mínimo o MinC não teve filtro para aprovar esse projeto. É triste ver questões do âmbito da Educação e Cultura serem tratadas dessa forma. O cara pode ser reaça, não o conheço, mas infelizmente a substância da crítica dele está correta.

  14. O autor do texto é discípulo

    O autor do texto é discípulo de Olavo de Carvalho, defensor da ditadura militar. Seus textos costumam ser reproduzidos em blogs de extrema direita. Não sei se o dono blog se deu conta de quem é esse personagem quando transformou em post. 

    1. O blog é plural

      O blog é plural e o Nassif destaca o texto que ele bem entender. Atacar a pessoa em vez das ideias é típico de quem não tem argumento a respeito do assunto. A tal adaptação é indefensável, nenhum didata responsável vai defender essa bomba. Se deram essa munição para a direita a burrice é do MinC. Ser militante não significa ser tapado.

      1. Eu não ataquei a pessoa,

        Eu não ataquei a pessoa, apenas informei quem ele é e onde, na rede, suas diatribes costumam ser reproduzidas. Sei muito bem da pluraridade do blog pois já o frequento há muitos anos mas também sei que o dono do blog não costuma dar espaço para personagens do tipo acima. Por isso minha dúvida, imaginei que ele o postou como provocação mesmo.

        Quanto ao livro, eu não o li mas conheço bem esse tipo de adaptação de clássicos em outras línguas, são bem feitas e prestam-se a uma função importante, tanto que são produzidas pelas mais conceituadas editoras do mundo. Esse senhor que ataca virulentamente tanto a autora quanto Paulo Freire cuspiria igualmente em cima de qualquer uma dessas obras usando os mesmos argumentos pretensiosos. Pinça as palavras que foram substituidas por outras mais simples e desanca o autor, e assim  vai desenvolvendo sua crítica torta sem se aperceber de que a própria lógica de todas as edições simplificadas é essa: trabalhar em cima de um vocabulário reduzido.

        Como vc externou uma opinião definitiva sobre a obra, suponho tê-la lido e bem poderia nos ajudar trazendo ao blog uma análise detalhada da obra da Secco. 

    2. Como dizia Odelle D’Caravaggio

      Não defendo Nassif, pois ele não precisa ser defendido em seu blog. Ele aceita gregos, troianos e quem mais for, só que respeitando os critérios civilizados do bom convívio de ideias. Quem ficou exposto aqui nesse post foi quem o escreveu. Os de direita defende seus argumentos, enquanto os de esquerda os rejeita. Assim é a vida: “O cachorro é o cachorro, o gato é o gato e o homem é a combinação dos dois, com os latidos e miados, inclusos”. – Odelle D’Caravaggio.

  15. É a mesma discussão do ¨Lepo

    É a mesma discussão do ¨Lepo Lepo  e Popuzuda¨ . Quando se trata de conhecimento para o povo e vindo do povo, surge a elite querendo barrar. Para pobre cortar lenha e matar fome um macahdo tosco e rombudo  vale tanto quanto um machado bem afiado

  16. Esse crítico é um imbecil.

    Quem não sabe ler, não lê Machado, Paulo Freire nem Patrícia Secco. Chamar a “Pedagogia do Oprimido” de “uma espécie de marxismo de autoajuda” é uma simplificação burra e cega. Fala que a interpretação da autora é ruim e simplista e não olha o próprio rabo. A direita se veste com cada roupa…

    O mesmo jornal, última opção, publica uma entrevista exclusiva do Roberto Freire, o defunto morto que fala. Quem se interessa? 

  17. Criar versões simplificadas

    Criar versões simplificadas de grandes clássicos da literatura é coisa muito comum na língua inglesa e em outras também – em francês também se faz – e é feito por editoras de renome.  É uma forma de estímulo à leitura para quem está ainda aprendendo a língua e tem um vocabulário reduzido. Claro, isto é feito com muito critério. Define-se o público alvo pelo nível de domínio da língua, iniciante, médio ou avançado. Para cada nível cria-se um vocabulário e então  “espreme-se” a obra até que caiba dentro do vocabulário preestipulado. Serve muito bem ao propósito. Agora se a adaptação de Machado feita por esta escritora foi feliz é outro assunto. A idéia em sí tem méritos.

    O autor do artigo, porém, cria uma falsa polêmica em torno desta adaptação apenas como pretexto para fazer o que mais gosta de fazer: agredir verbalmente tudo que lhe pareça, mesmo que vagamente, de “esquerda”. A partir daí desfia seu imenso rosário de preconceitos, clichês e desinformação, totalmente desconectados da realidade histórica dos fatos. 

  18. Parei em “Mao Tse

    Parei em “Mao Tse Tung,monstruoso comunista chinês”. Um boa causa defendida com argumentos desonestos e frágeis,comprometem  o julgamento ,desclassificam  seu mérito.

  19. Quem é José Maria e Silva????

    Tenho minhas ressalvas com relação os repasses da Lei Rouanet e com as adptações dos clássicos, mas não consegui terminar de ler essa aberração.

    Não tinha ideia de quem era José Maria e Silva.

    Joguei no nome do caboclo Google.

    Para minha surpresa:

    O primeiro link que me aparece é da VEJA

    De autoria do AUGUSTO NUNES,

    Classificando o artigo de esplêndido…

    Pelamor, né???

  20. Procuras e indagações.

    Por onde estudei (Informática, Psicologia e Ciências Sociais, afora Engenharia) e também o que presenciei em escolas são pedagogos, são professores e são alunos que falam abundantemente em Paulo Freire. Mas minha limitação não vi nenhuma aplicação do Método Paulo Freire. Mas nada que diferenciasse da mais tradicional pedagogia no Brasil. Talvez por eu viver nos centros urbanos, e no centro dos centros, mas (hpótese não desprezível) talvez por supor que o Método Paulo Freire se possa aplicar a comunidades muito a comunidades pobres e analfabetas, e superexploradas, sem terem a mínima consciência quanto a alternativas de visão de mundo (interior de Pernambuco, p.ex.). No mais, procurando-se pela web, melhor em sites em inglês, encontram-se posições pedagógicas que já antecediam e influenciaram o Método. Também o papel de autoridade, a figura messiância, que lembra Cristo ou os estereótipos do senso comum quanto a filósofos, tem seu valor (em qualquer área). Em sites em português, encontram-se críticas a Paulo Freire o Método Paulo Freire (mas em inglês, também), e não acho que seja só coisa de direita. Repito que nunca vi aplicação do método paulo freire. estive recentemente numa escola do interior do nordeste em que não só se falava do método, mas também da pedagogia construtivista: me pareceram apenas palavras sem nada se diferenciarem de ensinos os mais tradicionais e alienantes possíveis (alunos calados ou quase calados aqui e professor falando lá. Como morreremos sempre aprendendo (pois só se aprende, mesmo, se se for questionando, principalmente a si próprio, confesso que tenho dúvidas quanto ao aclamado P. Freire). Infelizmente, somos domesticados a não dar nenhum espaço à dúvida e não raro em concocrdar com a maioria, ou se constranger em se manifestar diante de uma maioria (me refiro também ao blog). Sem cair em niilismos.

    1. O Post: Numa entrevista com equivocada tradutora

      Só esqueci de dizer que vi uma entrevista com a tradutora. De muito boa fé, convicta. Mas muito equivocada.

      Saí um pouco fora do assunto principal do Post, mas ainda acho que está relacionado ao fazer referências a Paulo Freire.

      1. De um sociólogo que respeito

        Ele tem um blog,  nem sempre concordo com ele, alíás, muitas vezes não, mas o leio, às vezes pra me estarrecer ou melhorar meu humor ou ver uma boa dica de filme e de jazz (e de autores de que nunca ouvi falar). Ao ler o Post, enviei email pra ele que logo me respondeu. Perguntara se alguma universidade de excelência adota Paulo Freire e seu Método (apesar de tantas láureas internacionais). Resposta de Roberto Martins: “Ele não existe”.

        1. “(…) e onde está a sabedoria que perdi no conhecimento? “

          ” Onde está o conhecimento que perdi na informação,

            e onde está a sabedoria que perdi no conhecimento? “
           

          (  poeta T.S. Eliot, seg. lido uma vez no blog de Roberto Martins,

            Sinal+: Sociedade e Cultura  http://bobmartins.blogspot.com.br/ )

        2. Pensador nenhum tem de ser unanimidade

          Ricardo, pensador nenhum tem de ser unanimidade, pensamento é reflexão, não é religião. Paulo Freire é um pensador da Educação dentre outros, vale a pena estudar. Ocorre que os conservadores normalmente valorizam o elitismo e a meritocracia no pior sentido desses termos, e esse ranço se percebe no texto destacado pelo Nassif. No entanto, a crítica do autor do texto ao projeto está correta, e afinal é disso que se trata.

          1. Flávio, eu não disse diferente de você

            Flávio, concordo com você, e eu não disse diferente. O que eu disse (esperava que tivesse sido mais bem entendido, e não me confundido como um dogmatico, e todo dogmático é um conservador) é que há, sim, um conservadorismo, uma inércia e uma religiosidade em torno de seja qeum for. Acho, então, que vou postar uma longa entrevista com um dos autores de Imposturas Intelectuais, provavelmente você tenha lido ou tomado conhecimento dos autores, pois fizeram o maior auê ao desmascarar uma revista dita científica, ser lido o artigo com seriedade, e depois os dois autores escreverem que foi justamente pra verificar a falibilidade e a crença no que for apresentado como “científico”, numa linguagem pseudo científica (mas não ignorando o valor das crenças, p.ex., de povos primitivos, de camponeses, de indígenas com uma sabedoria que depois biólogos e outros cientistas vão confirmar e desenvolver – aí seria mais seara de antropólogos e cientistas sociais como no descorrer da longa entrevista você notará claramente. E a entrevistadora é muito boa, o questionou muito.

  21. “Imposturas Intelecutais” – Entrevista

    http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-77011998000100007&script=sci_arttext

    Rev. Antropol. vol.41 n.1 São Paulo  1998

    Revista de Antropologia

    Print version ISSN 0034-7701

    Rev. Antropol. vol.41 n.1 São Paulo  1998

    doi: 10.1590/S0034-77011998000100007 

    Entrevista com Alan Sokal

    Entre a paródia e a denúncia: trajetos de dois físicos nos bosques das Humanidades

    Alessandra El Far

    (Doutoranda em Antropologia/USP)

    Rose Satiko Gitirana Hikiji

    (Mestranda em Antropologia/USP)1

    Nos dias 27 e 28 de abril, os departamentos de Antropologia, Ciência Política e Filosofia da FFLCH em conjunto com o Instituto de Estudos Avançados (IEA) e o Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP promoveram o simpósio “Visões de Ciência: encontros com Sokal e Bricmont”. Os físicos Alan Sokal, professor da New York University, EUA, e Jean Bricmont, da Université Catholique de Louvain, Bélgica, trouxeram ao Brasil sua crítica ao que consideram “imposturas intelectuais” cometidas por vários humanistas franceses que teriam empregado de forma inadequada e abusiva, em suas obras, conceitos das ciências exatas.

     

    A barulhenta incursão destes dois cientistas nas Humanidades teve início em abril de 1996, quando a Social Text, uma conceituada revista norte-americana na área dos Estudos Culturais (Cultural Studies), aceitou e publicou o artigo de Sokal intitulado “Transgressing the boundaries: toward a transformative hermeneutics of quantum gravity” (Transgredindo fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica).

     

    Nesse artigo, o autor constrói um texto repleto de argumentações infundadas e sem sentido, usando incorretamente conceitos da física e da matemática, na tentativa de elucidar temas sociológicos ou filosóficos. A intenção do autor foi colocar em questão não somente a falta de rigor dos editores da revista mas, principalmente, a de toda uma corrente do pensamento humanista, em especial aquela baseada no relativismo cognitivo que propõe pensar as teorias científicas e a realidade como construções sociais.

     

    A paródia foi desmascarada com a publicação do artigo “A physicist experiment with cultural studies” (Um experimento físico com estudos culturais), na edição de maio/junho de 1996 da revista Lingua Franca, no qual Sokal detalha as incoerências existentes no artigo da Social Text e explica algumas de suas motivações ao evidenciar os usos indiscriminados de “nonsenses”por alguns intelectuais das humanidades.

     

    A repercussão do episódio surpreendeu Sokal e a própria comunidade acadêmica ao ganhar a primeira página de alguns dos principais periódicos norte-americanos e estrangeiros. Um ano depois, o físico norte-americano decidiu dar continuidade a esse debate, convidando Jean Bricmont a escrever com ele o livro Impostures Intelectuelles (Paris, Édition Odile Jacob, 1997), no qual focalizam trechos de obras de Jacques Lacan, Julia Kristeva, Luce Irigaray, Bruno Latour, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio com o intuito de demonstrar alguns tipos recorrentes de abusos na utilização de conceitos e termos provenientes das ciências físico-matemáticas. Entre essas recorrências estariam: 1) usar terminologias científicas (ou aparentemente científicas) sem conhecimento de seu significado; 2) importar noções das ciências exatas para as ciências humanas sem a preocupação com uma justificação empírica ou conceitual; 3) exibir uma erudição superficial ao apresentar termos especializados ao leitor “leigo”, em um contexto no qual eles não têm pertinência alguma; 4) manipular frases desprovidas de sentido e se deixar levar por jogos de linguagem. A partir desses critérios, os autores, inicialmente, listam uma série de imposturas nas obras em questão e, em seguida, partem para uma crítica ao relativismo cognitivo.

     

    O amplo horizonte intelectual atingido pela crítica dos autores – que vai da psicanálise à filosofia, passando pela lingüística e ciências sociais – tem proporcionado debates que atraem pesquisadores de várias áreas. O simpósio realizado na USP reuniu em torno dos autores – cujas conferências abriram e fecharam o evento – uma diversidade de temas tratados em mesas multidisciplinares.

    O simpósio foi dividido em quatro blocos: o debate em torno do livro propriamente dito, a questão do relativismo cultural e cognitivo, a metodologia nas ciências naturais e humanas e as relações entre ciência, educação e poder.

     

    Além dos autores, participaram os filósofos da USP Ricardo Terra, Marilena Chauí, Caetano Plastino, Andréa Loparic e Jean-Yves Béziau, do LNCC/RJ, os cientistas sociais Mauro Barbosa de Almeida (Antropologia/Unicamp), Otávio Velho (Antropologia/UFRJ), Sérgio Micelli (Sociologia/USP), Simon Schwartzman (IBGE/RJ), Paula Monteiro (Antropologia/USP), Márcio Silva (Antropologia/USP), Gabriel Cohn (Ciência Política/USP), Renato Lessa (Ciência Política/Iuperj), Jesus de Paula Assis (NUPES), os educadores Nélio Bizzo e Myriam Krasilchik (Educação/USP), os teóricos da comunicação Francisco Dória (Comunicação/UFRJ) e Leonardo Moledo (Comunicação/Univ. Buenos Aires), a professora do departamento de Letras Modernas da USP Victória Rubén, os físicos Antonio T. Piza (IF/USP) e Carlos Escobar (IF/Unicamp), o psicólogo César Ades (Psicologia/USP).

     

    Dos vários temas abordados nos dois dias do evento, destacamos, na entrevista que realizamos com Sokal, no dia 29 de abril, no IME, aqueles que despertaram maior interesse junto aos antropólogos e demais cientistas sociais presentes no simpósio)” seja como debatedores, palestrantes ou ouvintes2. Apesar do livro Impostures Intectuelles não ter como alvo direto nenhum antropólogo, várias de suas críticas atingem, indiretamente, temas sempre em pauta na Antropologia, como o relativismo cultural, as implicações políticas do conhecimento científico e a pós-modernidade. Permeando toda a discussão, fica a pergunta pelas reais possibilidades do diálogo “entre culturas”.

     

    Entrevista com Alan Sokal, realizada em 29 de abril de 1998, no IME

     

    Alessandra/Rose: Gostaríamos de iniciar a entrevista com um breve histórico sobre a “polêmica Sokal-Bricmont”. Quais as motivações científicas, políticas ou pessoais que levaram o senhor e Jean Bricmont a questionarem o que consideram o uso abusivo de terminologia das ciências exatas por cientistas humanos, e criticarem, de forma mais abrangente, o relativismo pós-moderno? E qual o contato com as ciências humanas que os senhores tinham até então?

     

    Alan Sokal: Creio que nós dois sempre tivemos interesse pela filosofia da ciência, pelas ciências sociais e, sobretudo, pela política. Eu militei por solidariedade com a Nicarágua, nos verões de 1986, 87 e 88, ensinando matemática na Universidade Nacional de Nicarágua como voluntário. Nós dois temos muito interesse em questões para além da física, em particular no que diz respeito a esta crescente tendência do relativismo cognitivo em certos meios de ciências sociais e letras, nos Estados Unidos. Mas, eu não me sentia competente em participar publicamente nesse debate, porque sou um físico, e não sociólogo ou antropólogo. No entanto, quando me dei conta de que essas idéias relativistas estavam sendo aplicadas não somente nas ciências sociais, mas também, na filosofia e sociologia das ciências naturais, me senti mais à vontade em intervir.

    Inteirei-me dessas questões através de um livro escrito por um matemático, Norman Levitt, e um biólogo, Paul R. Gross, que se chama Higher Superstition: The Academic Left and its Quarrels With Science, publicado nos Estados Unidos em 1994. A primeira coisa que pensei quando vi uma referência sobre esse livro foi: “oh, não! Será mais uma publicação sobre como os subversivos marxistas estão se espalhando pelas universidades, lavando o cérebro de nossa juventude e etc.” E a segunda coisa foi: “a esquerda acadêmica e suas disputas com a ciência” soa estranho, pois eu me considero um acadêmico de esquerda, e nem por isso tenho alguma disputa com a ciência! Para falar a verdade, eu não sabia que a esquerda acadêmica tinha uma disputa com a ciência. Depois de ler o livro eu me inteirei dessa corrente de uma parte da sociologia da ciência e de pessoas ligadas aos Cultural Studies. Em comum, fazem muitas críticas às ciências, baseadas em má filosofia ou em uma filosofia muito confusa, sem conhecimento a propósito do conteúdo da ciência que pretendem criticar.

    A primeira coisa que fiz após ler o livro foi correr à biblioteca e buscar os livros e artigos que Gross e Levitt citaram para ver se eles os haviam tratado de maneira justa, ou se haviam distorcido o sentido dos textos. Me dei conta de que, em 80% dos casos, eles haviam sido completamente justos, que os textos eram tão ruins como diziam. Em algumas semanas de investigação na biblioteca, buscando referências, eu consegui compilar um dossiê bastante grande de disparates escritos não somente por essa corrente norte-americana, mas também por grandes intelectuais franceses, como Derrida, Lacan, Irigaray, Deleuze, Guattari, Virilio, e percebi neste momento que eu poderia fazer uma intervenção útil nesse debate. Agora eu poderia tocar em um ponto no qual eu me sentia competente. Em seguida pensei que se eu escrevesse um artigo direto, normal, para criticar esses textos, esse artigo cairia em um buraco negro. Muitas outras pessoas das ciências sociais haviam criticado o relativismo cognitivo, o jargão obscurantista do discurso pós-moderno, mas essas críticas não tiveram efeito. Pensei que seria mais divertido e mais útil, ao invés de criticar, escrever um artigo elogiando esses textos. Então, tive a idéia de escrever uma paródia, que fosse, ao mesmo tempo, um experimento – ainda que não científico – e um embuste. Pensei que a sátira e o humor poderiam ser armas mais potentes que um artigo normal para desbloquear um debate que há muito tempo estava bloqueado. Assim, eu submeti o artigo à Social Text, uma importante revista dos Cultural Studies, em novembro de 1994. O comitê editorial aceitou o artigo em abril de 1995 e o publicou em abril de 96. Eu não sabia, mas os editores estavam preparando justamente um número especial da revista, chamado Science Wars (Guerra das Ciências), para criticar Gross e Levitt. Neste cenário, meu artigo serviu como uma luva: “um verdadeiro cientista ao nosso lado na ‘guerra das ciências'”. Para mim, não é uma guerra, mas um debate de idéias. Passado cerca de um mês, eu publiquei em outra revista, a Lingua Franca, o artigo revelando a paródia.

    Minhas motivações em toda essa história foram intelectuais e políticas. Intelectuais porque, a meu ver, o relativismo cognitivo partia de idéias corretas e deslizava para idéias radicais e incorretas. E políticas, o que é o mais importante para mim, porque essas críticas vinham de pessoas que se diziam de esquerda. Como uma pessoa de esquerda, eu julgava ser completamente auto-destrutivo para a esquerda norte-americana ter em mente uma filosofia relativista. Me parece que temos que fazer afirmações a propósito do funcionamento da sociedade, fazer propostas. E temos que afirmar que nossa análise é melhor que as outras. Não basta dizer “minha teoria feminista é tão boa como tua teoria machista”, é necessário dizer que é melhor e explicar por quê.

    A paródia foi divertidíssima. Entretanto, o que lá foi publicado consistia apenas em uma ínfima parte do dossiê de disparates que compilei. Meus amigos que o leram, disseram: “você agarrou esses grandes intelectuais com a mão na massa, em flagrante delito. Deveria tornar público esse dossiê”. Mas não bastava publicar o dossiê. Era preciso explicar ao público leigo porque se tratam de absurdos. Nesse momento, Jean Bricmont aceitou escrever comigo os comentários. Visto que os intelectuais criticados eram principalmente franceses, achei que deveríamos escrever o livro em francês, e ele acabou sendo publicado em outubro de 1997.

     

    Alessandra/Rose: Essa polêmica ganhou a primeira página do New York Times, e também teve destaque em outros jornais estrangeiros e brasileiros, fato incomum em se tratando de um assunto acadêmico. Como vocês vêem o interesse da mídia nessa polêmica?

     

    Alan Sokal: Esse affaire tem dois atos – não sei se é uma comédia ou uma tragédia. O primeiro ato foi a paródia e suas conseqüências; aconteceu a partir de maio de 1996, nos Estados Unidos, e acabou ganhando a primeira página do New York Times. Para mim foi uma surpresa completa. Eu pensava que seria um escândalo significativo em um mundo pequeno, acadêmico. Nunca imaginei que também fosse ocupar a primeira página do International Harold Tribune, na Europa, mais tarde a primeira página do The Observer, de Londres, do Le Monde, quando a polêmica finalmente chegou à França. O segundo ato foi o lançamento do livro na França em outubro de 1997, que desencadeou um outro escândalo, que chegou a ser a capa de um dos três semanários mais importantes desse país, o Nouvel Observateur.

    A avaliação positiva que fazemos da repercussão do caso nos jornais norte-americanos foi o fato de desbloquear o debate que já estava latente entre vários setores das Ciências Sociais e das Letras. Muita gente nas universidades tinha tido contato com os escritos pós-modernos, com seu estilo obscuro. Então foi bem-vinda a idéia de que alguém veio mostrar que, na verdade, “o rei está nu”.

    Mas também houve um aspecto negativo. Alguns comentários foram marcados por um ar de anti-intelectualismo, e isso até em jornais supostamente “sérios”. Por exemplo, o New York Times ilustrou o absurdo do meu artigo, observando que utilizava palavras grandes como “hegemonia” e “epistemologia”. Obviamente não é isso o que torna o artigo absurdo. Essas palavras não se ouvem habitualmente nas ruas de Nova Iorque, mas são termos filosóficos com um sentido muito claro, são perfeitamente legítimas.

    Do lado político, houve também aspectos positivos e negativos. Positivos na medida em que o artigo abriu espaço para um debate importante na esquerda acadêmica norte-americana, sobre o pós-estruturalismo e o relativismo. Isso é muito importante, pois faz parte do processo de renovação intelectual da esquerda, no qual devemos examinar criticamente e sem preconceitos toda idéia e toda ortodoxia. O aspecto negativo é que certos ideólogos de direita aproveitaram o caso para afirmar que a esquerda inteira é intelectualmente fraca e confusa – não só os editores da Social Text. No Brasil, Roberto Campos fez isso, elogiando-me sem revelar que eu também sou de esquerda. Isso me enojou e respondi com um artigo na Folha de S. Paulo, ressaltando que 80% dos comentários na imprensa de esquerda norte-americana me apoiaram.

     

    Alessandra/Rose: Durante o seminário, o senhor expôs a necessidade de diferenciar conhecimento e crença. Além disso, em um de seus textos o senhor critica ironicamente os usos do conceito de “local knowledge” (“conhecimento local”) pelos pós-modernos e pós-estruturalistas, defendendo com isso uma posição específica. O senhor poderia explicar melhor essa distinção?

     

    Alan Sokal: Para mim, assim como para a maioria dos filósofos, a palavra “conhecimento” significa “crença verdadeira justificada”, ou algo similar. Justificada quer dizer que você tem boas razões para crer que é verdadeira, e não uma casualidade. Conhecimento é, portanto, diferente de crença, porque existem as condições de ser verdadeira e de ter boas razões para se crer que é verdadeira. É preciso não obliterar

    Outra confusão é com a palavra “fato”. Para mim um fato é algo que se passa no mundo, fora de nós. Outra coisa é o que sei do fato, ou o que creio a propósito do fato. Vê-se na literatura frases ambíguas como “a construção social dos fatos”. Os fatos, pelo menos os naturais, não são construídos socialmente, mas sim, nossas crenças a propósito desses fatos é que são construídas socialmente. Isto me parece crucial distinguir…

     

    Alessandra/Rose: Mas essas crenças verdadeiras justificadas – o “conhecimento” – também não são construções sociais?

     

    Alan Sokal: Claro! Todas as crenças são construções sociais. Todas as teorias científicas são construções sociais, obviamente. São construções de seres humanos, que trabalham em comunidades sociais. Mas insisto em que as teorias científicas não são meras construções sociais. São construções sociais das quais se pode dizer se são verdadeiras ou falsas, objetivamente. Insisto em distinguir entre o que é e o que nós pensamos, ou nós sabemos.

    Consideremos, por exemplo, as teorias sobre a origem dos povos indígenas da América. A teoria arqueológica geralmente aceita diz que vieram em uma migração (ou em várias) da Ásia, há 10, 20 mil anos aproximadamente. As teorias de certas tribos afirmam que seus antepassados estiveram sempre na América. Em primeiro lugar, insisto que essas duas teorias não podem ser ambas verdadeiras, é uma questão lógica. Ademais, o que aconteceu com os seres humanos há 10 mil anos é um fato, apesar das minhas e de suas crenças. E essas teorias fazem afirmações sobre a história humana, não sobre as nossas crenças. Portanto, a veracidade ou falsidade dessas teorias depende unicamente dos fatos da história humana: não é relativa a uma cultura.

     

    Alessandra/Rose: O senhor não concorda que as crenças de outros povos podem ser “verdadeiras” e “justificadas” no interior da lógica própria de suas cosmologias?

     

    Alan Sokal: Sim, no caso de “justificada”; não, no caso de “verdadeira”. A palavra “verdadeira” significa uma certa relação entre uma afirmação e os fatos externos a nós. Não é relativa a uma cultura. A palavra “justificada” é diferente. Justificação é relativa às informações que se tem. Uma teoria falsa pode até ser racional, justificada, com base no conhecimento que se tem.

     

    Alessandra/Rose: Provavelmente um dos maiores desafios da antropologia tem sido entender que o que é verdadeiro para uma determinada sociedade nem sempre é igualmente válido para as demais. Com isso, a disciplina propõe um esforço de compreensão da elaboração de formas tão diversas de perceber o mundo, sem restringi-las a uma avaliação dicotômica entre verdadeiro e falso…

     

    Alan Sokal: Aceito completamente que algumas questões podem ser importantes para algumas culturas e não para outras. Aceito também que podemos analisar o papel social de certas crenças sem necessariamente entrar na questão delas serem verdadeiras ou falsas. Mas convém notar que essa questão é somente central para as pessoas dessa sociedade. Por exemplo, muitas tribos indígenas da América do Norte se interessam pela origem de sua tribo. É natural querermos saber de onde viemos, de onde vieram nossos antepassados. Eles têm suas teorias a propósito disso. Os arqueólogos também têm as suas teorias. Eu sustento primeiramente que duas teorias mutuamente incompatíveis sobre os mesmos fatos não podem ser ambas verdadeiras. Não pode ser verdade que os indígenas da América vieram da Ásia há 20 mil anos e também que os indígenas da América sempre viveram na América. Não é possível que as duas coisas sejam corretas. Talvez as duas teorias sejam falsas, essa é outra possibilidade. Mas antes de abordar a questão “quem tem razão?”, o mínimo que precisamos é estar de acordo com esta trivialidade lógica: que as duas teorias não podem ser verdadeiras, no sentido normal de verdadeiro; no sentido de ser uma afirmação correta a propósito do que verdadeiramente se passou na história. Não confundamos isso com a questão de valor social ou psicológico das crenças. Pode ser que a crença de certa tribo indígena – apesar de ser falsa a propósito de sua história – tenha certo valor social etc.

    Se o antropólogo diz “não me interessa muito saber se a cosmologia dos Zuni, por exemplo, é verdadeira ou falsa, como relato da história de seu povo, o que me interessa é o papel que joga no interior da sua cultura, sua organização social, religião etc.”, não há nenhum problema. Estou de acordo. Porém, o que parece é que muitos antropólogos não chegam a separar este relativismo metodológico de um relativismo cognitivo, radical.

    No livro, quase não tratamos de antropologia. No entanto há uma breve menção no epílogo (:195-6), quando estamos nos interrogando sobre as fontes do pós-modernismo: de onde surgiu, por que tem apoio nas ciências sociais. Achamos uma das fontes no que chamamos o relativismo “natural” nas ciências humanas. Uma certa atitude relativista é metodologicamente natural, em particular quando se estudam os gostos e os costumes. O antropólogo busca compreender o papel desses costumes em uma sociedade dada e considera ruim deixar suas próprias preferências estéticas interferirem em sua pesquisa. Da mesma maneira, quando o antropólogo estuda certos aspectos cognitivos, por exemplo, a maneira como as crenças cosmológicas de uma cultura funcionam no quadro de sua organização social, este não se interessa principalmente em saber se essas crenças são verdadeiras ou falsas. Porém essa atitude metodológica razoável levou, muitas vezes, devido a confusões de linguagem, a um relativismo cognitivo radical, afirmando que a veracidade ou falsidade de uma afirmação é “relativa a uma cultura”. Isso equivale a confundir os papéis psicológicos e sociais de um certo sistema de pensamento com seu valor cognitivo, e, com isso, ignorar a força dos argumentos empíricos que podem ser usados a favor de um sistema ou de outro. Se trata, portanto, de distinguir o relativismo metodológico natural e razoável dos antropólogos do relativismo cognitivo radical, que consideramos injustificável.

     

    Alessandra/Rose: A partir do momento em que o senhor afirma que o saber científico está mais próximo da verdade, enquanto o saber local não passa de crença, de um sistema periférico, o senhor propõe uma hierarquização de saberes, colocando o científico em um patamar privilegiado. Será que essa hierarquização não tem conseqüências éticas e políticas, por exemplo, numa situação de confronto entre culturas locais e aquelas que detêm o saber científico?

     

    Alan Sokal: Existe uma hierarquização de crenças, queiramos ou não: algumas são mais verdadeiras que outras, pois correspondem melhor aos fatos do mundo externo. Mas isso não tem as conseqüências políticas que você teme. É importante ressaltar a distinção entre fatos e valores. Conhecer a verdade a respeito de um fato – por exemplo, a origem dos povos da América -, isso não resolve os problemas éticos e políticos. Seria completamente coerente dizer que a cosmologia dessas tribos indígenas, a respeito de sua origem, por exemplo, é falsa e, mesmo assim, que elas têm direito às suas terras. Não tem nenhuma relação lógica.

     

    Alessandra/Rose: Mas não é isso o que ocorre na prática. Historicamente, a antropologia nasce dos interesses do imperialismo europeu, que entendia como necessário conhecer para melhor colonizar. Em muitos casos, ainda hoje, a disciplina se depara com situações em que a linha que separa ciência, ética e política é muito tênue…

     

    Alan Sokal: O que estou dizendo é que é um erro tirar dessa hierarquia de saberes implicações políticas. Se há implicações políticas, é por um erro de pensamento de alguém. Podemos criticar esse erro. Sim, é uma verdade histórica que a antropologia nasceu em parte como arma do imperialismo europeu. Mas, do mesmo modo, a teoria de Darwin da evolução por seleção natural estava historicamente ligada ao darwinismo social – havia muitas pessoas partidárias de ambas as teorias simultaneamente. No entanto, não há uma relação lógica entre as duas teorias e creio que temos boas provas da veracidade da teoria darwiniana da evolução biológica, enquanto o darwinismo social não é considerada uma boa teoria social. Infelizmente, há muitos laços sociológicos entre pares de idéias que não são justificados logicamente. Creio que em vez de criticar uma idéia correta porque está ligada socialmente com outra idéia incorreta, convém criticar o laço. Então, o fato de uma tribo ter uma cosmologia equivocada não justifica tratá-la mal. Não esqueçamos que 47% dos norte-americanos têm também uma cosmologia equivocada, acreditando na veracidade literal do relato histórico da Bíblia.

     

    Alessandra/Rose: Afirmar que uma cosmologia é “equivocada” não é uma avaliação a partir de nossos valores e conhecimentos do mundo? Em O pensamento selvagem, o antropólogo Claude Lévi-Strauss mostra a maneira pela qual o pensamento “primitivo” se baseia, assim como o científico, em operações como observação empírica, comparação e classificação, e não, como imaginado pelo senso comum, em superstição e arbitrariedades.

     

    Alan Sokal: Pode haver crenças equivocadas, mas racionais e baseadas na observação e etc. Nós, cientistas, também nos equivocamos. Às vezes, temos informações parciais, somente uma parte das provas, que nos levam a um resultado incorreto. Da mesma maneira, uma tribo primitiva poderia estar atuando de acordo com todos os melhores critérios da racionalidade científica moderna e equivocar-se. Não é criticá-la, dizer que se equivoca. Nós nos equivocamos sempre. Como disse, nós, por vários motivos históricos, dispomos de informações as quais as outras culturas – ou nossa própria, no passado – não dispõem. Como iria saber que a água é feita de átomos? Observando-a, ela me parece um fluido contínuo. Unicamente agora, no último século, dispomos de boas razões para crer que é feita de átomos.

    Quero insistir na diferença entre verdade e justificação. Entendo que os antropólogos se interessam pelo respeito a outras culturas. Estou completamente de acordo. Entendo também que o respeito está ligado à questão da justificação, porque este implica que são seres humanos, com as mesmas faculdades mentais que as nossas, que nós não somos mais inteligentes que eles, por isso queremos respeitar suas diferenças. Estou completamente disposto a reconhecer que em muitos casos eles tenham feito inferências razoáveis e descoberto verdades que nós não conhecíamos. Se vivem em uma selva, são especialistas na flora e na fauna dessa selva. Ultimamente, tenho lido histórias de biólogos que estão investigando as crenças médicas tradicionais de certas tribos e, às vezes, descobrem que as plantas têm realmente os efeitos atribuídos pelo grupo; e até chegam a isolar os componentes químicos, desenvolvendo novos medicamentos. Não há nenhum conflito em reconhecer que muitas das inferências de uma cultura podem ser justificadas a respeito de suas informações e, não obstante, equivocadas.

     

    Alessandra/Rose: Uma das principais críticas dirigidas ao livro que ouvimos no seminário “Visões de ciência” por parte dos especialistas em ciências humanas foi o que denominaram o uso de um “truque retórico”: vocês partiriam da constatação de erros (no uso de conceitos matemáticos e físicos) em partes isoladas de algumas obras, e teriam colocado em suspeição a obra como um todo, sem levar em conta seu contexto. Como vocês respondem a esta crítica?

     

    Alan Sokal: Procuramos ser o mais claros possíveis no livro e em tudo o que dissemos e escrevemos depois a propósito da lógica de nosso argumento, que, na parte das “imposturas” – e não naquela que se refere ao relativismo -, é a seguinte: examinamos a parte da obra de Lacan, Deleuze, Baudrillard etc. que trata das ciências físicas e matemáticas, os ramos que nós conhecemos bem. E constatamos que nessa parte de suas obras – que não é uma enorme parte, mas, tampouco, insignificativa – há graves abusos. Não se trata de meros erros, mas de graves incompetências ao escrever supostas profundidades a propósito de assuntos que eles não conhecem ou não entendem quase nada, ou de desonestidade intelectual. Não pretendemos descobrir se se trata de incompetência ou desonestidade intelectual: para isso teríamos que entrar na mente desses autores, o que não é nosso propósito.

    Creio que quando a grave incompetência ou a desonestidade intelectual é descoberta em parte do trabalho de alguém, é natural querer estudar de forma mais crítica o resto dessa obra. Não quer dizer pré-julgar o resultado da análise, mas sim, lê-la com olho mais crítico, sem deixar-se influenciar pela aura de profundidade que recobre esses senhores. Tudo o que queremos fazer com esses autores é abrir os olhos e deixar que outros estudem o resto de suas obras, sem o efeito da imposição. Tomemos o exemplo de Lacan. Ele utiliza a matemática, e constatamos que é um abuso grave. Também utiliza muito a lingüística. Seria interessante saber se esse uso é razoável, ou se é também um abuso. Nós não somos lingüistas, não somos competentes para levar a cabo esse trabalho, mas nós gostaríamos de abrir um debate. Como físicos e matemáticos, tínhamos uma obrigação moral de tornar público o dossiê e explicar para o público não-científico do que se trata e porquê são graves abusos. Tenho que dizer honestamente que colocar as obras em suspeição é nosso propósito. Escrevemos o livro não somente para assinalar alguns abusos. Para dizer a verdade, suspeitamos que talvez no resto de suas obras existam outros problemas. Talvez não abusos da mesma gravidade, ou talvez sim. Talvez existam idéias interessantes, mas menos profundas do que se pensa.

     

    Alessandra/Rose: No livro, os senhores afirmam duvidar da “existência de verdades profundas” nos textos que estão sendo discutidos (página 18 da edição francesa). Essa afirmação não seria uma forma de suspeição de toda a obra baseada na constatação de alguns erros específicos?

     

    Alan Sokal: Não. O contexto dessa afirmação é uma objeção freqüentemente feita ao nosso argumento: “vocês admitem que não entendem todo o trabalho psicanalítico de Lacan. Como podem julgar a parte matemática sem entender o todo? Não poderia ser uma obra profunda que vocês simplesmente não teriam compreendido?” Temos uma resposta. Esses autores utilizaram a matemática sem explicar a pertinência dessa utilização, sem explicar ao leitor não-científico o conteúdo dessas idéias matemáticas. Usam as partes mais complicadas e rebuscadas da matemática, que quase não são utilizadas nem na física, e que, de repente, tornam-se milagrosamente úteis na psicanálise ou na análise da linguagem poética. Respondemos que, sim, há critérios que se podem buscar para julgar a pertinência de partes da obra, ainda que sem compreender todo o trabalho de Lacan. Poder-se-ia pensar que esses autores expressam de maneira desastrada verdades profundas a respeito da condição humana. Responderíamos que a complexidade das idéias se perde quando são explicadas por termos científicos mal digeridos e utilizados fora de contexto. Quanto à dúvida com relação à existência de verdades profundas a que nos referimos no livro, ela diz respeito apenas aos trechos – que no livro foram chamados de textos – que citamos, não à obra, ou aos artigos como um todo. Com relação a Lacan, sou bastante cético quanto às suas obras que contêm mais palavreado que conteúdo. Talvez as obras mais antigas tenham intuições interessantes sobre o ser humano, sobre psicologia. Mas eu não sou especialista em Lacan. Estou falando unicamente dos trechos citados no livro.

     

    Alessandra/Rose: O professor Mauro Barbosa de Almeida defendeu no seminário a prática de uma certa “anarquia metafórica”, ou seja, uma liberdade no uso de conceitos das ciências exatas por filósofos e cientistas sociais, à medida que estes conceitos pareçam interessantes para elucidar ou ilustrar algumas questões colocadas por suas pesquisas. O que o senhor acha dessa posição?

     

     

    Alan Sokal: Em primeiro lugar, o objetivo de uma metáfora é geralmente esclarecer algo, relacionando um fato menos familiar a outro mais familiar. Não entendo o sentido do uso de idéias de mecânica quântica para esclarecer debates em antropologia. Segundo: se alguém quer usar idéias de outro campo para inspirar-se metaforicamente não vejo nenhum problema. Pode até usar seu mal-entendido a propósito do outro campo para inspirar-se. Alguém poderia chegar a ter uma idéia interessante em antropologia a partir de um mal-entendido sobre a teoria da relatividade, de mecânica quântica etc. A inspiração pode vir de qualquer campo: física, um mal-entendido sobre física, poesia, maconha, ou o que seja. Mas essa inspiração não serve para justificar sua idéia. Uma vez concebida, deve-se justificá-la com raciocínios a propósito do campo que pretende estudar. Estou fazendo a distinção bastante clássica em filosofia da ciência entre contexto de descobrimento e contexto de justificação. No contexto do descobrimento tudo é lícito: indução, dedução e também alucinação. Insisto que o fato de ter uma inspiração a partir da física não tem nenhum valor demonstrativo. Depois, é preciso justificar suas idéias antropológicas com raciocínios antropológicos.

     

    Alessandra/Rose: Os senhores propõem no livro uma crítica ao que denominam “pensamento pós-moderno”. Mas sabemos que não existe um consenso a respeito do que seja o pós-modernismo. Ao fazer uma afirmação generalizante, não se corre o risco de julgar precipitadamente autores com diferentes atuações reunidos sob um mesmo rótulo?

     

    Alan Sokal: Sabemos que há diferentes entendimentos sobre o que seja o pós-moderno. No livro, já na primeira página, nós o definimos como uma corrente intelectual caracterizada pelo rechaço mais ou menos explícito à tradição racionalista do Iluminismo, por elaborações teóricas independentes de todo o texto empírico e pelo relativismo cognitivo e cultural que trata a ciência como uma narração ou construção social como quaisquer outras. Ademais não pretendemos fazer uma crítica global ao pós-modernismo, mas só tratar de dois aspectos: o abuso do jargão científico e o relativismo epistêmico.

     

    Alessandra/Rose: Como o senhor avalia, após a repercussão do livro e do artigo, juntamente com as palestras e seminários nos diversos meios acadêmicos, a possibilidade do diálogo entre o que vocês chamam “as duas culturas”, ou seja, as ciências humanas e as exatas?

     

    Alan Sokal: O debate em torno da paródia e do livro foi um enorme provocador de diálogo entre as ciências humanas, naturais e a filosofia. Meu objetivo não era convencer os que já estavam convencidos. Não queria falar apenas a físicos, mas a colegas das ciências sociais, filosofia, literatura. Isso acabou acontecendo em simpósios realizados em mais de quinze universidades nos EUA e no exterior. A paródia provocou uma aproximação entre as diversas disciplinas. Nos demos conta de que havia discrepâncias significativas nem sempre corporativas. Há também discrepâncias filosóficas dentro das ciências sociais. Nem todos os antropólogos são relativistas cognitivos e, muito menos, os historiadores são pós-modernos.

     

    Alessandra/Rose: Como o senhor sentiu a recepção de seu livro e desse debate aqui no meio acadêmico brasileiro?

     

    Alan Sokal: No Brasil, as únicas referências que tenho são esse seminário de dois dias aqui na USP e uma conferência no Rio de Janeiro. Creio que houve interesse, mesmo as pessoas tendo diferentes pontos de vista. O seminário tocou em diversos pontos que nem sempre têm a ver diretamente com o livro e isso foi importante, pois o livro foi o ponto de partida para o debate de questões de mútuo interesse.

     

    Alessandra/Rose: A partir desse diálogo com cientistas sociais, teóricos da literatura e filósofos, os senhores vislumbram alguma mudança no livro?

     

    Alan Sokal: Sim, incorporamos já na versão inglesa do livro – que será a base para as versões em português e espanhol – algumas questões colocadas nos debates. Aproveitamos as objeções que nos fizeram para esclarecer nossos pontos de vista, por exemplo no item “Sim, Mas…” [que responde às possíveis objeções ao argumento dos autores, na introdução (:16-22)]. Além disso, corrigimos pequenos erros, incorporamos algumas críticas feitas por partidários de Popper e de Quine, e também ressaltamos no prefácio do livro a existência de “dois livros” distintos — um sobre os abusos da linguagem científica, outro sobre o relativismo científico —, que devem ser avaliados separadamente, e que a relação entre os dois é sociológica e não principalmente lógica. Fizemos muitas modificações, mas não alteramos as linhas gerais do argumento.

     

    Notas

    1 Alessandra e Rose Satiko são bolsistas da FAPESP, instituição à qual agradecem.

    2 Agradecemos os comentários e sugestões de temas a serem abordados na entrevista de Fernando de Luiz Brito Vianna e Edgar Teodoro da Cunha, mestrandos em Antropologia na USP.

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  22. Flávio, Eis o que deu num auê, o eterno questionamento
    IMPOSTURAS INTELECTUAIS O ABUSO DA CIENCIA PELOS FILOSOFOS POS-MODERNOS

    Formato: Livro Autor: BRICMONT, JEAN Autor: SOKAL, ALAN D. Idioma: PORTUGUES

    Editora: RECORD Assunto: FILOSOFIAEis o que deu num auê, o eterno questionamento

  23. Versões simplificadas de

    Versões simplificadas de clássicos da literatura para crianças e adolescentes existem e existiram, não só em outros países, mas no Brasil, há muito tempo. Monteiro Lobato e centenas de outros ótimos autores fizeram essa versões simplificadas e traduções adaptadas. Não conheço o trabalho de Patrícia Secco, em questão, mas desconfio da versão do Jornal Opção sobre esse trabalho, só pela maneira como trata Paulo Freire. Vade retro…

    1. Pelo jeito vossa senhoria não

      Pelo jeito vossa senhoria não se deu ao trabalho de ler o texto. Brilhante matéria aliás, conquanto seja possível discordar de partes dela.

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