“Café”, o romance incompleto de Mário de Andrade

Crítica: Romance inacabado de Mário de Andrade é sagaz, apesar de falhas

por Luís Augusto Fischer

Folha de S. Paulo

Incompleto, sonhado por 20 anos (entre 1924 e 1945), produzido em espasmos, renegado, reaproveitado aos retalhos em contos, defeituoso: eis aí “Café”, pedaço de romance, de Mário de Andrade.

A bem cuidada primeira edição do livro foi produzida por Tatiana Longo Figueiredo, que assina prefácio e posfácio esclarecedores.

O Mário (1893-1945) que produz o que agora lemos é, no começo, apenas o professor de música, o agitador cultural e o poeta.

  B.J. Duarte – Iphan/Divulgação  
Mário de Andrade com crianças no Parque Infantil dom Pedro 2º, em 1937, em São Paulo
Mário de Andrade com crianças no Parque Infantil dom Pedro 2º, em 1937, em São Paulo

Depois lança “Macunaíma” (1928), vira gestor cultural em São Paulo, consolida seu protagonismo modernista, é o pedagogo das cartas, vive uma temporada no Rio, avança em sua pesquisa musical e etnográfica.

O Mário que dá as últimas demãos em “Café” é já o consagrado e escaldado escritor, ensaísta e figura pública. Já o Mário póstumo é um totem, sempre de difícil abordagem.

“Café” foi pensado para ter cinco seções, das quais apenas duas foram concluídas, ainda com anotações de revisão. Queria ser um romance realista em painel, algo insinuado já no título.

Seu primeiro protagonista é Chico Antônio, caboclo nordestino que migra para o Sul. Espécie de Macunaíma, deixa para trás compromissos (a esposa), assume tarefas que depois renega venalmente, finalmente conhece a cidade de São Paulo, frenética e misteriosa, com letreiros luminosos e figuras escusas da praça dos Correios de 1930.

VERVE COMENTARISTA

Aqui temos breves momentos de grande qualidade narrativa, logo estrangulados pela verve comentarista do narrador, que tende a transformar tudo em material para tese.

A segunda parte, “As Duas Irmãs”, é muito ruim: esquemática, apressada, com personagens sem densidade, quase sem nenhuma tensão, tudo isso agravado pelo traço “de tese”, obsessivo, ressentido, de alcance apenas paroquial.

Os defeitos solapam um enredo promissor: família de fazendeiro da região de Araraquara resolve morar na capital apenas para fazer bonito, e lá as duas filhas, deslumbradas, atuam segundo a pauta burguesa, que os pais não subscrevem mas precisam bancar.

Insinua-se um conflito psicológico entre as filhas, jamais realizado. Vinda a crise (de 29, parece), o patriarca retorna ao mundo rural (lá reaparece Chico), com uma das filhas e seu marido, para reestruturar a vida, enquanto a outra filha, casada com um testa de ferro de “ianques”, segue na capital.

Ficamos sem um romance, mas com um livro de grande interesse para conhecer mais do autor. Se na escritura o livro é falhado, em passagens e subtextos há coisa para valer.

Não raro dá a impressão de estarmos lendo memórias do autor (trechos sobre o submundo da noite são de grande vivacidade narrativa).

Ali adiante vem uma crônica azeda sobre o mundo social de São Paulo (com grande bronca contra os italianos endinheirados que não se inseriam na vida brasileira, nem contribuíam com instituições relevantes para o país, e mantinham namoro firme com o “fachismo”), e o tempo todo há juízos sumários sobre o Brasil, o Nordeste, os caboclos, os negros e mulatos, os estrangeiros que acorreram à capital paulista e a velha elite pasmacenta.

Tudo agudo e vivo, muito antes do ‘politicamente correto’, que teria bloqueado quase tudo.

LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na UFRGS.

 

 
livro

CAFÉ
AUTOR Mário de Andrade
EDITORA Nova Fronteira
QUANTO R$ 34,90 (264 págs.)
AVALIAÇÃO bom 

Redação

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