Uma fatia da História brasileira, em forma de ficção, 50 anos atrás

Por Sebastião Nunes

Érico Veríssimo, como Jorge Amado, não era grande estilista, mas sabia contar histórias. “O senhor embaixador”, romance publicado em 1965, um ano depois do golpe militar no Brasil, cruza a vida de vários personagens em torno de Gabriel Heliodoro Alvarado, embaixador de uma republiqueta latino-americana. O trecho abaixo é um dos diálogos finais do livro, entre um membro da embaixada brasileira em Washington e uma funcionária norte-americana da embaixada de Sacramento, país fictício do Caribe. Nada mudei ou acrescentei, apenas atualizando a ortografia. Deixo por conta do “desocupado leitor” (Cervantes) confrontar a ficção de 1965 com nossas instituições políticas e sociais de hoje, meio século depois. Mutatis mutandis, notei pouca diferença.        

**********

– Ó Gonzaga, que é que você tem? As coisas também não lhe correm bem?

Não, não corriam. Apesar de todas as informações que sua embaixada mandara ao Governo Brasileiro sobre a firma à qual uma das autarquias nacionais ia comprar uma grande partida de feijão, a transação se consumara e verificara-se depois (os jornais noticiavam o escândalo) que o feijão estava podre!

Vieram os coquetéis.

– E agora… que é que vai acontecer? – perguntou Clare.

– Nada – Gonzaga bebeu um gole de Manhattan. – Feijão po­dre! Um símbolo de nosso regime, da podridão de nossos go­vernantes e políticos. O Brasil, Clare, é um país saqueado. De fora para dentro. De dentro para fora. De cima para baixo… Ninguém nunca é responsabilizado por coisa alguma. Ninguém vai para a cadeia. Ó não! Somos encantadores, temos corações de ouro maciço! Inventamos as anedotas mais engraçadas do mundo. Achamos que todos devem nos adorar, pois não somos hospitaleiros e bons causeurs? Fazemos troça de todos, inclusive de nós mesmos. Temos remédios infalíveis para os males de todos os países, menos para os do nosso. A simpatia no Brasil é a grande panaceia. E é nessa simpatia, Clare, nesse nosso bom-mocismo (que torna o convívio com o brasileiro individualmente tão agra­dável), que reside nossa desgraça como nação! No Brasil tudo está bem se um sujeito é simpático. Por simpáticos (e também ir­responsáveis e levianos) esperamos que as coisas nos caiam do céu. Por simpatia votamos em homens incompetentes e ou deso­nestos para os cargos públicos. Se somos governantes ou políticos, por simpatia dizemos sim a tudo o que nos pedem, embora depois não cumpramos o prometido. Por simpáticos damos empregos ou concessões rendosas (nem sempre lícitas) a parentes, amigos, compadres, afilhados, protegidos. . . e, que diabo!, por simpáticos fazemos as maiores concessões a nós mesmos, e satisfazemos a to­dos os nossos apetites. E essa nossa simpatia, sinal, repito, dum co­ração de açúcar, nos impede de fazer cumprir a lei, de sorte que bandidos e ladrões andam às soltas e podem ser senadores, depu­tados, governadores e até Presidentes da República. Por sim­páticos achamos que todos nos devem ajudar sem nunca nos pedir contas de nada. Por simpáticos (ah! e por inteligentes, espertos e mestres na arte da improvisação) não planejamos nada, produzimos pouco, gastamos o que não podemos, e confiamos sempre nas soluções mágicas. Porque no Brasil se acredita que até o deus ex machina é brasileiro. Ah, Clare! Como somos simpáticos! Você já tinha notado isso, não? Pois é. Somos tão simpáticos que nos acostumamos à miséria em que vivem mais de dois terços da população total do país… uma miséria abjeta que, no nosso Nordeste, é igual ou pior que a asiática… E como somos simpáticos e caridosos e, às vezes, vamos aos domingos à missa, durante a qual sorrimos e acenamos de longe para Deus (que deve ser um sujeito simpático), de vez em quando damos esmolas aos mendigos, vagamente convencidos de que assim estamos contribuindo para resolver o problema social.

– Gonzaga, você exagera. O saldo brasileiro não é assim tão negativo.

– Eu sei que não é. Mas hoje estou com um humor negro. E já estou meio “alto”.

– Dentro de alguns anos mais, o Brasil será uma das cinco nações mais poderosas do mundo.

– Não direi que não. Mas essa cantiga já me está cansando. O país do futuro… Bolas! – Gonzaga tornou a beber o resto do coquetel num largo sorvo único. – Ah! Não pense que estou me inocentando em toda essa história. Sou um pulha. Mas pulha ainda maior que eu é o excelentíssimo senhor meu pai. Um grande filho da puta.

– Ó Gonzaga, não diga uma coisa dessas de seu Velho!

– Minha avó era uma dama de virtude impecável. Estou apenas usando uma figura de linguagem em torno dum figurão da política. O Dr. Severino Gonzaga é Senador da República por um partido que, como quase todos os outros, não passa dum conglomerado amorfo de aproveitadores e pedintes, sem programa político e social definidos. Os que estão em baixo pedem empregos e favores que pagam com seus votos e seus aplausos e vivas nos comícios. Os que estão em cima, aproveitam a posição para fazerem negócios (lícitos e ilícitos, tudo vale, é uma questão de oportunidade, semântica e simpatia) e para satisfazerem suas vaidades de mando, de prestígio… As exceções são tão poucas que se podem contar nos dedos das mãos. Pois o Senador Gonzaga, que Deus o abençoe, cria cavalos de raça… Até aí está tudo muito bem. Outros criam coisas piores. Mas a UNICEF ou qualquer dessas instituições internacionais que se encarregam de alimentar as crianças po­bres do mundo, mandou partidas de leite em pó para o Brasil, destinadas à distribuição gratuita entre a população indigente do nordeste.           Pois bem, não sei em  que ponto do caminho, uma quadrilha de gangsters se meteu no negócio e essas partidas de leite foram desviadas de seu destino e vendidas, veja bem, vendidas no mercado negro. E o Senador Gonzaga, que é um encanto de pessoa, comprou algumas centenas de sacos desse leite e com ele alimenta seus cavalos de raça! Ótimo! Quantas crianças morrem por dia no Brasil? Sei lá! Sou fraco em estatística. Mas são centenas, talvez milhares… Imagine agora um belo cavalo de raça correndo num hipódromo, na frente duma multidão entusiasmada onde se veem damas ele­gantemente vestidas, exibindo vestidos e chapéus caríssimos, ansiosas por aparecerem nas colunas sociais dos jornais e nas reportagens ilustradas das revistas… Você não acha que as damas e os cavalos são animais muito mais belos, nobres e de­corativos do que essas crianças esqueléticas, doentes e subali­mentadas do Nordeste ou de qualquer outra parte do Brasil? Claro que são! E merecem o nosso leite e a nossa simpatia!

– Gonzaga, pare de beber!

– Pararei de beber, mas não de falar. Quantas toneladas de leite em pó tiveram esse destino no Brasil? Nobody knows. Ninguém pede contas a ninguém. Somos todos simpaticíssimos. A vida continua. O Senador Gonzaga é um verdadeiro gentleman. É acionista dum banco que empresta dinheiro a juros de 48% ao ano. E não me olhe com esses olhos, Clare, que neste seu admirável país também existem big sujeiras…

– Gonzaga, meu amor, não fomos nós os americanos que inventamos a natureza humana.           

Orlando Gonzaga olhava fixamente para o fundo de seu copo.

– Não pense que eu me estimo por estar aqui a dizer-lhe estas coisas, Clare. Repito que sou um pulha. Quem se portou como um homem foi o Pablo. Tomou uma decisão de macho. Mas eu sou um parasita como meu pai, que, como a quase maioria dos grandes comerciantes e industriais do Brasil, so­nega o pagamento de impostos e com o dinheiro da sonegação compra dólares que deposita num banco da Suíça, numa conta numerada ou em bancos de Manhattan. Ó boy! Mais um banco da Suíça… digo, mais um Manhattan!

Clare, porém, fez um sinal negativo para o garçom e pediu-lhe a nota.

– Vamos embora, Orlando.

– Quem paga sou eu, o grande simpático.

Quando o empregado voltou, ele lhe arrebatou a conta das mãos.

Sebastiao Nunes

2 Comentários

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  1. E que ninguém pense que é mera ficção!

    Embora criança sem culpa direta, de uma classe média próspera como era, posso confessar que me lembro claramente (salvo falha, predominando o branco e amarelo) do enorme latão de leite em pó (como esses latões de tinta de parede) que um amigo “bem relacionado” nos presenteou, mais de uma vez,

    Em minha defesa, ao contrário do poder histórico de fato que tem saudades dessa época que querem (sempre) restaurar, eu prefiro e torço fortemente para que ela fique definitivamente no passado.

    A ver…

     

     

     

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