O resgate do lúdico no bojo do processo, por Felipe A. P. L. Costa

O resgate do lúdico no bojo do processo

Por Felipe A. P. L. Costa

Pelo mundo afora, profissionais e voluntários leigos estão envolvidos em ações que visam proteger a vida selvagem. As iniciativas incluem uma vasta e diversificada rede de empreendimentos, desde obras de melhoria nas instalações de antigos jardins botânicos até a implantação efetiva de unidades de conservação (e.g., reservas e parques). Esses esforços, ao contrário do que comumente é divulgado, não representam tão somente uma aposta em direção às futuras gerações, estando também intimamente associados a possíveis melhorias e benefícios imediatos para as gerações atuais.

Quer dizer, há boas e numerosas razões pelas quais nós deveríamos nos envolver de modo mais efetivo com a proteção de populações naturais (animais e vegetais). Basta lembrar que são elas que integram os sistemas ecológicos cujos ‘bens e serviços’ sustentam as teias da vida em nosso planeta – incluindo, claro, a própria civilização humana. Além disso, em termos puramente econômicos, valeria a pena lembrar também da crescente profusão de estudos de valoração desses bens e serviços ecológicos. Os resultados de tais estudos nos dão uma ideia do que significaria cuidar preventivamente dos sistemas de manutenção da vida.

Uma perspectiva evolutiva

De um ponto de vista biológico, nem todas as iniciativas que visam  proteger a vida selvagem são igualmente valiosas. É preciso notar, por exemplo, que enquanto alguns empreendimentos envolvem a ‘conservação’ efetiva da biodiversidade, outros lidam apenas e tão somente com a sua ‘preservação’.

No primeiro caso, visando garantir a continuidade do processo evolutivo, os esforços se voltam para a proteção de comunidades ecológicas inteiras, como acontece, por exemplo, quando resguardamos amostras representativas de hábitats dentro de reservas e parques. Já nas atividades de preservação, a preocupação está mais voltada para o bem-estar de indivíduos ou grupos de indivíduos que estão vivendo fora do seu hábitat natural, como ocorre em jardins botânicos, aquários e ‘bancos genéticos’, nos quais sementes, gametas e outros materiais biológicos podem ser armazenados por períodos prolongados de tempo.

Zoológicos, por exemplo, podem representar uma esperança de sobrevivência para certas espécies, notadamente grandes animais cujas populações foram deprimidas numericamente (e.g., por excesso de caça) ou aqueles cujos hábitats foram destruídos ou fragmentados. Além disso, a propagação em cativeiro pode ajudar a restabelecer populações que estejam passando por períodos críticos de estiagem ou declínio numérico. Em todo caso, a manutenção em cativeiro deveria ser vista como uma alternativa temporária, não como um fim em si mesmo; os indivíduos deveriam permanecer retidos pelo prazo mais curto possível – o mínimo necessário, digamos, até que seus hábitats originais estejam devidamente restaurados.

Entre nós, a distinção que habitualmente se faz entre conservação e preservação tem um caráter mais ideológico do que propriamente científico. (Não há consenso sobre o uso dos termos ‘conservacionista’ e ‘preservacionista’, de sorte que alguns autores atribuem a eles significados diferentes dos que são dados neste artigo. Seja como for, as diferenças persistem e frequentemente há grupos distintos de militantes ambientalistas ocupando lados opostos do ringue.) Leva-se em conta, por exemplo, a presença ou o tipo de relação que populações humanas mantêm com o lugar, sem uma preocupação explícita com as implicações evolutivas do empreendimento em questão.

Assim, enquanto os conservacionistas afirmam ser difícil compatibilizar a proteção integral da vida selvagem com a presença de populações humanas, os preservacionistas dizem que questões ambientais e sociais estão definitivamente interligadas, sendo assim indissociáveis – nesse caso, na verdade, as questões não seriam nem mais ambientais nem sociais, mas sim socioambientais. Neste sentido, biólogos, veterinários e outros profissionais que trabalham no campo tendem a ser adeptos da conservação, enquanto administradores, políticos e outros profissionais de gabinete geralmente falam em favor da preservação.

Um exemplo espinhoso

O tema em questão possui óbvios e importantes desdobramentos políticos. No entanto, se vamos pautar nossa conduta por princípios bem fundamentados, vale a pena lembrar que argumentos de autoridade, tão comuns no mundo corporativo e na esfera política, não têm valor duradouro em assuntos científicos. Quer dizer, para sustentar uma dada hipótese é necessário oferecer evidências positivas a seu favor – não basta ter chiliques ou agir como um juiz provinciano que diz qualquer coisa sob a luz dos holofotes.

Eis um exemplo espinhoso: a ideia de que as chamadas populações tradicionais (índios, quilombolas, ribeirinhos etc.) vivem em suposto equilíbrio ou harmonia com o seu ambiente, como certos autores afirmam, é, no melhor dos casos, uma hipótese a ser testada. Cabe ressaltar que os registros disponíveis (históricos, antropológicos, econômicos) não parecem combinar muito bem com a noção de que essas populações (ou quaisquer outras) exploram os recursos de modo ecologicamente sensato. Em geral, os consumidores tendem a explorar os recursos até a exaustão, sobretudo quando se trata do uso de ‘bens de uso comum’ (e.g., um pasto, um lago, a atmosfera). No mundo de nossos ancestrais, quando isso ocorria, uma solução comumente adotada era a migração para lugares até então desabitados; às vezes, porém, isso não era possível, daí advindo o colapso – fome, morte e extinção.

Para clarear o debate conservação vs. preservação – e não apenas esquentá-lo –, devemos enriquecê-lo com dados e informações obtidos em trabalhos de campo duradouros. É o tal negócio: reconhecer e encarar os problemas do mundo real – em vez de ignorá-los ou escondê-los – seriam as atitudes a serem tomadas por todo e qualquer indivíduo que pretenda de fato resolvê-los. Governantes populistas e pesquisadores preguiçosos preferem adotar outra postura: virar as costas para o mundo, espalhando platitudes e discursos pomposos, ricos em fórmulas vagas e inconsequentes, do tipo “o resgate do lúdico no bojo do processo”, “políticas públicas de meio ambiente”, “repartição de benefícios pelo uso sustentável da biodiversidade” e assim por diante. Não custa repetir: ontem, como hoje, reproduzir fórmulas vagas não irá nos levar a lugar algum.

[Nota: artigo extraído e adaptado do livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª ed., 2014); sobre a obra mais recente do autor, O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017), ver aqui ou aqui.]

Redação

1 Comentário

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  1. Tocando no ponto

    Concordo com a proposição de que sem estudos de qualidade não podemos definir prioridades reais e identificar intervenções significativas para manutenção dos ambientes naturais. Essa pesquisa está a cada dia mais sucateada por falta de financiamento e por incentivos “imediatistas”.

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