O vale de lágrimas da responsabilidade socioambiental, por Eliseu Raphael Venturi

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
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Victor Brauner, Acolo, 1949¹

O vale de lágrimas da responsabilidade socioambiental

por Eliseu Raphael Venturi 

Há algo em torno de uma década estava em ascendência o Direito Ambiental e em evidência o “desenvolvimento sustentável” que, inclusive, passou a integrar com seriedade o escopo de atuação institucional, por exemplo, com a inclusão do “desenvolvimento nacional sustentável” na legislação de licitações.

Sustentabilidade passou a ser um critério e regra tão rigoroso quanto vantajosidade e economicidade. Um avanço tardio, considerando a Política Nacional do Meio Ambiente dos anos 1980, mas, ainda assim: um avanço que em breve comemorará dez anos.

Matéria ambiental, àquela época, passou a ser vista com tanta seriedade e densidade quanto Direito Penal ou Civil, ou qualquer outro tradicionalismo jurídico, salvo, é claro, por aquela sempre presente parcela do deboche jurídico que se sente motivada apenas pelo chocalhar de um maço de dinheiro e animada pela pura e simples “desburocratização”, independentemente do que signifique a noção de “processo” ou mesmo tudo aquilo que a legítima noção de “burocracia” possa vir a resguardar.

A “racionalidade ambiental”, prescrita por autores como Enrique Leff, e o ecossociodesenvolvimento, de Ignacy Sachs, eram densas intersecções de Direito e Economia, demonstrando como há toda uma complexidade entre Sociedade, Meio Ambiente, Economia e direitos, densidade esta que não poderia, nem deveria, ser minorada.

A racionalidade ambiental, assim, demonstrava como o desenvolvimento sustentável está correto ao integrar promoção econômica e proteções social e ambiental como elos indissociáveis de um conceito único e indivisível.

Era um horizonte em expansão, promissor em termos de dimensões de direitos fundamentais e humanos: era como que os direitos ambientais fossem despertar a mesma libido jurídica dos direitos individuais e todos, digamos, seus cercamentos típicos e sacrossantos (e que, de fato, são valorosos para o desenvolvimento de uma vida e de uma personalidade, mas que não existem isoladamente).

Parecia estar em curso uma espécie de fechamento de arco de direitos em que certos espaços de discussão pareciam estar assegurados, embora houvesse também um ceticismo pouco propositivo que denunciaria “que nada disso passa de mais capitalismo” ou de neoliberalismo, em uma visão, no mínimo, senão polemista, de má-fé, segundo a qual sistemas produtivos, por si, são formas puras que não podem comportar mais dimensões do que o castiço e simples receituário de dualismos arcaicos, ortodoxos, dogmáticos e deterministas.

Nos últimos anos, contudo, a partir do universal-justificador da “crise” e dos moralismos, diferentes perfis políticos preferiram ocultar as dimensões da sustentabilidade para retornas às políticas estritas de crescimento econômico. Nesta, dragaram-se interesses legítimos de várias populações, inclusive daquelas que, muito provavelmente, suportarão (continuarão a suportar, ademais) toda sorte de passivos ambientais. E em um universo em que o sentido “ambiental” tinha se tornado bem amplo, o espectro desses passivos abarca um grande número de processos intensos de vida.

Ocultar é pouco: o Direito Ambiental (no qual se inclui o Direito Ambiental do Trabalho) foi posto em paredão de fuzilamento, para se usar uma imagem violenta ao sabor do gozo atual da violência. Se terraplanismo é um direito de liberdade democrático, não se pode negar que seja uma excrescência epistêmica. Se um modo de se retirar as pessoas da informalidade é retirar a formalidade, e se isso é considerado um exercício político legítimo, só se pode lamentar, até porque eventual controle judicial pode levar a surpresas ainda mais desagradáveis.

Mas é assim, nestas racionalidades e estratégias tortuosas, todavia, que hoje lidamos com diversas opiniões políticas que, inclusive, marcam a tomada de decisão de vários gestores no plano do mundo afora.

Passou-se, então, nestas lógicas, a voltar a se falar muito em desenvolvimento econômico, desenvolvimento tecnológico e desenvolvimento industrial, e os direitos sociais, eleitos os grandes inimigos, foram, então, levados às categorias de obstáculos ao desenvolvimento e, nesta visão, nem se falem os direitos ambientais, que foram alçados à repulsa. O Direito, literalmente, foi posto na bacia de rejeitos.

Retomou-se, ademais, um antigo e conhecido pressuposto equivocado de que qualquer crescimento, por si, alavanca empregos, qualidade de vida e bem-estar social, a despeito de haver políticas de justiça distributiva e de redução de desigualdades – entre outras políticas constitucionais evidentes.

Atacam-se, ainda, agendas mais indesejadas a setores específicos, tais como o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário – e qualquer outra dimensão do direito que possa resvalar no adjetivo “social” – a despeito da presença destes conceitos na constitutividade jurídica de noções como a de propriedade (pense-se a função social constitucional da propriedade).

Equipado o tanque de pressupostos equivocados, ou, mais, cheia a barragem de rejeitos, pronta estava a velha conhecida força bruta para varrer toda a vida que estivesse pela sua frente, passando por cima de tudo aquilo que possa significar “vida”, “comunidade”, “convivência”, “população”, restando do rescaldo da morte apenas o gigantismo econômico daquelas pessoas e entes imputáveis por deveres de prudência, de precaução, de fiscalização e de exploração racional dos recursos. O vale que resta é, apenas, o de lágrimas.

É interessante observar que bravejantes opositores da responsabilidade socioambiental venham a encenar algum tipo de sensibilidade com a tragédia anunciada e concretizada. É um tanto cínico, irônico e incoerente, mas nada mais do que se pudesse esperar de certos tipos de caráteres, internamente contraditórios e performativamente confusos e que encontram seu palco de desvario nas redes e nos cargos eletivos, também, em uma harmonia de enunciador e plateia.

Voltemos a Leff, a Sachs; precisamos pensar a racionalidade, porque pensar a racionalidade é identificar e exercer, também, em larga medida, os limites da responsabilidade ética que, em termos jurídicos, é uma responsabilidade socioambiental, inevitavelmente.

Não é uma questão de espaço, ou de ponto que se ocupa nesse espaço: nem Estado, nem iniciativa privada, nem tampouco este mundo contemporâneo nada binário em que Administração Pública e Iniciativa Privada são começos e fins, fluxos de um mesmo corpo em movimento. É uma questão de visão, de movimento, portanto, é uma questão de racionalidade dos agentes sociais, ocupem os espaços ou exerçam as funções que sejam.

Na sociedade de espetáculo, é certo, algumas tragédias são mais vantajosas do que outras: permitem maior cobertura, imagens mais chocantes, que vão desde o sangue até os caminhões de corpos, permitem mais revolta passageira, abaixo-assinados, enfim, capitalização da morte não é negócio novo, ainda mais se ela permitir um seriado que se esvai com o advento e sobreposição de novas tragédias.

Algumas desgraças, contudo, são o epifenômeno de uma mesma política de morte instalada e contrária à responsabilidade socioambiental, e que propicia imagens menos empolgantes do que as da catástrofe – ou seja, os efeitos cotidianos, invisíveis, sentidos a todo o momento por espectros variados de populações diversas desassistidas.

A quem pensa, ao menos que fique o signo dos resultados dos apagamentos de certas políticas-jurídicas, certos recortes propositais nas bandas de significação do Direito, sejam estes apagamentos por quais motivos forem (imprudência, imperícia, erro, dolo, corrupção etc.). Estes apagamentos são expressões de uma mesma racionalidade e de uma mesma irracionalidade.

O momento de comoção do infortúnio evidente seria, assim, um momento para pensar o sentido do Direito Ambiental nos tempos de sua evidente degradação: é quanto imagem, metáfora e realidade se alinham em uma mesma figura.

[1] Disponível em: <https://www.artic.edu/artworks/118657/acolo>. Acesso em: 26 jan. 2019.

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Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

Ana Gabriela Sales

Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.

2 Comentários

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  1. Muito juiz e pouca justiça,

    Muito juiz e pouca justiça, os males do Brasil são… O golpe com o STF com tudo submeteu o Estado ao mercado. Nesse contexto, quem puder mais (a Vale) comprará a maior quantidade de juízes, desembargadores e ministros do STJ e do STF. A justiça tem preço, entende?

  2. Parabéns pelo artigo! Minha

    Parabéns pelo artigo! Minha monografia foi sobre a cobrança pelo uso da água, lá nos idos de 2006. Tenho a mesma percepção de marginalização a que o direito ambiental foi exposto, como consequencia da “redução de custos” sociais para alavancagem da ganância empresarial. 

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