Luciano Hortencio
Música e literatura fazem parte do meu dia a dia.
[email protected]

Passagem das Horas, de Fernando Pessoa, por Marco Nanini

por Luciano Hortencio

 

Sentir tudo de todas as maneiras,

Viver tudo de todos os lados,

Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo.

Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos

Num só momento, difuso, profuso, completo e longínquo.

 

Beijo na boca todas as prostitutas,

Beijo sobre os olhos todos os souteneurs.

A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos

E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.

Tudo é a razão de ser da minha vida.

 

Cometi todos os crimes,

Vivi dentro de todos os crimes.

Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,

Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles

E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida…

 

Multipliquei-me, para me sentir,

Para me sentir, precisei sentir tudo.

Transbordei, não fiz senão extravasar-me.

Despi-me, entreguei-me

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

 

Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,

E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.

 

Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,

Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas.

Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares

Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.

Fui todos os ascetas, todos postos-de-parte, todos os como que esquecidos.

E todos os pederastas – absolutamente todos (não faltou nenhum).

Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!

 

Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te.

Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!

 

Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver.

Ah Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,

Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta.

A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,

Os seus half-holidays inesperados…

Mary, eu sou infeliz…

Freddie, eu sou infeliz…

 

Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,

Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fizesses.

Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco.

 

(Trecho da Passagem das Horas, de Fernando Pessoa “Álvaro de Campos”).

 

 

Marco Nanini – PASSAGEM DAS HORAS – Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) – Francis Hime.
Álbum: A Música em Pessoa.
Ano de 1985.

 

https://www.youtube.com/user/lucianohortencio

Luciano Hortencio

Música e literatura fazem parte do meu dia a dia.

14 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Pessoa é indiscutível.

    Pessoa é indiscutível. Daquela pena só saiu preciosidades. Falar que isso aqui é uma beleza é de uma obviedade sem tamanho. Fiquemos pois apenas num: “E do Pessoa, né?”

    Ah, o Nanini, também indiscutível.

  2. Declamação

    Olá, Luciano. 

    Esse disco (se não me engano era esse, sim) foi parte de minha formação poética. Eu tinha um amigo que tinha o LP e gravou para mim numa fita K7, pelos idos de 1985, 1986. Daquele dia em diante, a fita foi minha companheira nos carros que tive e que comportavam um toca-fitas. 
    Se não me engano, foi nese mesmo disco que conheci a interpretação maravilhosa de Milton para “Emissãrio de um rei desconhecido” e Olíkvia Byington para o “Livro do desassossego”. Porém, o que mais me surpreendeu foram as declamações de Jô Soares, em “Cruzou por mim, veio ter comigo numa rua da Baixa” e “O menino da sua mãe”, por Marília Pêra. Tanto que hoje declamo esses dois poemas, com orgulho! 

    https://www.youtube.com/watch?v=d6rDixTSxgk

    https://www.youtube.com/watch?v=idgti1hRWr4

     

    Apaixonantes.

  3. “Eu sei que nessa vida a vida está em algum lugar”

    Brava interpretação do queridoa Nanine. Tanto tempo não o vejo em seus trabalhos… De vez em quando, sobrando um tempinho ou o cansaço grande, fico ouvindo essas declamações de poemas, que hoje encontramos em profusão no youtube. As vezes comove-me ouvir as vozes dos poetas, como Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Vinicius… As interpretações de atores são excelentes também.

    “Me diga homem a quanto tempo que você não come
    Mas diga apenas uma vez pra eu não perder a fome
    Me diga homem o que é que fez pra estar pagando assim
    Mas diga apenas uma vez porque pobre de mim
    Eu vou
    Sei lá pra onde mas eu vou, eu vou…”

    [video:https://youtu.be/S5mzRL78L_s%5D

  4. “Cada um chora à sua maneira o tempo que passa”

    [video:https://youtu.be/9XAVwGMk_jU%5D

    Trecho Passagem das horas – Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

    “Não sei sentir, não sei ser humano,
    não sei conviver de dentro da alma triste, com os homens,meus irmãos na terra.
    Não sei ser útil, mesmo sentindo ser prático, cotidiano, nítido.
    Eu vi todas as coisas e maravilhei-me de tudo.
    Mas tudo sobrou ou foi pouco, não sei qual, e eu sofri.
    Eu vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos.
    E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
    Amei e odiei como toda a gente.
    Mas para toda gente isso foi normal e instintivo.
    Para mim sempre foi a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.
    Eu não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
    Eu não sei se sinto demais ou de menos.
    Seja como for a vida, de tão interessante que é a todos os momentos,
    a vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
    a dar vontade de dar pulos, de ficar no chão,
    de sair para fora de todas as casas,
    de todas as lógicas, de todas as sacadas,
    e ir ser selvagem entre árvores e esquecimentos.”

  5. Patife Band, banda de rock

    Patife Band, banda de rock dos anos 80, fez uma excelente versão musical de “Poema em linha reta”, de Pessoa: 

    “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. 
    Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. 

    E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, 
    Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, 
    Indesculpavelmente sujo.”

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=wpcTPKx8O8%5D

     

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador