A estranha unanimidade

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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A leitura diária dos jornais pode produzir um efeito anestesiante sobre a percepção do valor simbólico dos fatos narrados. Na chamada imprensa genérica, detalhes sobre a profissão, idade, gênero ou status social de uma vítima de homicídio, por exemplo, podem alterar os sentimentos produzidos pela notícia: se o morto é um ajudante de pedreiro, ou se é um empresário, se é homem ou mulher, se é branco ou não, se é um jovem de classe média ou morador de favela, são inúmeros os signos que podem definir o efeito sobre o público típico dos jornais, e, portanto, o interesse da imprensa em explorar o acontecido.

Essas são características inerentes a qualquer fato que venha a público através da mídia tradicional. Assim, pode-se imaginar a seguinte situação na rotina dos diários: um menino sai da favela empinando sua pipa e morre atropelado na rodovia; no mesmo dia, o cachorro de uma celebridade escapa da guia e é morto ao atravessar a Avenida Paulista.

Qual dos dois fatos tem mais possibilidade de sair no jornal?

O primeiro acontecimento só vai virar notícia se os moradores da favela decidirem bloquear a rodovia em protesto contra a falta de segurança, vertendo o evento fúnebre em fato social e econômico. Essa característica se repete na política e no noticiário econômico, mas a decisão editorial, nestes casos, não se prende ao interesse de satisfazer a curiosidade ou as preferências dos leitores, mas de influenciar seus valores.

No eixo principal do jornalismo praticado pelos veículos de maior prestígio, o processo decisório se inverte, e a imprensa procura impor ao leitor uma visão pré-elaborada. Na política e na economia, os fatos têm que se adequar à opinião.

Observe-se, sob esse critério, a convergência entre o noticiário político e o econômico nas edições dos três principais diários de circulação nacional de quinta-feira (3/4). Além dos fatos do dia, como a proposta de mais uma CPI no Congresso e a crônica das costumeiras rebeliões nas bases parlamentares em época eleitoral, os jornais jogam com a expectativa de uma pesquisa de intenção de voto que está sendo elaborada pelo Datafolha, e certos fatos econômicos são imediatamente atrelados aos resultados que nem foram anunciados.

Os humores do mercado

Parece claro, para quem ler os jornais do dia, que os editores já estão informados de que a pesquisa irá apontar no dia seguinte uma queda na vantagem que a atual presidente da República, Dilma Rousseff, mantém sobre seus potenciais adversários desde as primeiras consultas.

Numa conexão interessante, a imprensa noticia uma melhora no desempenho da Bolsa de Valores, afirmando que, sondando o mercado, foi detectado um aumento do otimismo por conta de boatos sobre a possibilidade de a atual presidente ter perdido pontos com os eleitores. O fato concreto é que a Bolsa foi impulsionada por um forte ingresso de recursos estrangeiros, subindo 2,85%, com o volume de negócios recuperando as perdas do início do ano.

Há muitos elementos nos próprios jornais a indicar outras razões para otimismo, entre as quais se pode apontar o aumento do investimento estrangeiro direto – dinheiro que compra participação em empresas nacionais ou em infraestrutura – que favorece o movimento de negócios com ações e títulos.

Também se pode afirmar que a Bolsa é influenciada por muitos fatos positivos noticiados pela imprensa no mesmo dia. Por exemplo, o número de famílias paulistanas endividadas é o menor dos últimos quinze meses. Outro exemplo: a produção da indústria cresceu, em fevereiro, pelo segundo mês consecutivo, apontando para um aumento do Produto Interno Bruto no primeiro trimestre. Um terceiro exemplo: dados do Dieese publicados na mesma quinta-feira (3/4) informam que a recuperação do poder de compra dos salários segue em plena força: em 2013, nada menos do que 87% dos reajustes salariais superaram a inflação.

Há outros elementos positivos, como o recuo no preço dos imóveis, abaixo do índice inflacionário do setor. Além disso, embora o IPC aponte um aumento da inflação acumulada para o ano, a expectativa ficou abaixo das previsões da imprensa, mesmo considerando o aumento do preço dos combustíveis e os efeitos da estiagem ou das chuvas excessivas sobre os alimentos.

Mas a imprensa credita o otimismo da Bolsa de Valores unicamente à suposição de que o “humor” do mercado melhorou com boatos em torno da pesquisa Datafolha sobre intenção de voto.

Não seria o caso de investigar esse possível vazamento de informações?

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

6 Comentários

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  1. Crime de quadrilha

    Se se  levar em consideração que a notícia é unânime nos jornalões e repercutida imendiatamente nos seus asseclas menores como a itaitaia e o em, por exemplo, fica caracterizadno o crime de quadrilha.

    É o que afirmo. Crime de desinformação trabalhada e de quadrilha.

    1. Os profissionais!

      São os profissionais, agora trabalhando a todo vapor, hc.coelho. Até as eleições, preparemo-nos para muita indignação!

  2. Investigar? Trata-se de rico

    Investigar? Trata-se de rico falando. 

    No Brasil, rico nao pode ser investigado. 

    Vide Satiagraha + Castelo de Areia

  3. Realidades Espúrias

    Philip K. Dick (1928-1982) dedicou a sua vida a questionar a natureza da realidade, a percepção, a maleabilidade do espaço e do tempo e a relação entre o humano e o divino. 

    Dick  publicou 36 romances de ficção científica e 121 contos ao longo de três décadas, explorando a essência dos perigos do poder centralizado sobre o ser humano. 

    Onze romances e contos de Dick foram adaptados para o cinema, destacando-se Blade Runner (baseado em Do Androids Dream of Electric Sheep?), Total Recall (O Vingador do Futuro), Minority Report e A Scanner Darkly.

    Perto do fim de sua vida, o seu trabalho voltou-se para as questões metafísicas profundamente pessoais sobre a natureza de Deus.

    Philip K. Dick:

    “Poque vivemos, hoje, em uma sociedade em que as realidades espúrias são fabricadas pela mídia, pelos governos, pelas grandes corporações, por grupos religiosos e grupos políticos, pergunto, então, se o que escrevo é real. Porque somos, incessantemente, bombardeados por pseudo realidades fabricadas por pessoas muito sofisticadas, utilizando mecanismos eletrônicos muito sofisticados, eu não desconfio dos seus motivos; eu desconfio do seu poder e eles possuem um monte dele: um poder surpreendente, o de criar universos inteiros (universos da mente), eu deveria saber porque faço a mesma coisa.”

  4. A imprensa, por ela mesma,

    A imprensa, por ela mesma, foi desmascarada.

    E a sua função de veículo manipulador ficou claro.

    Desmoronou a qualifidade e a eficácia foi à cabo.

    Os jovens não se informam mais pela mídia tradicional.

    Países que fazem estudo já anotaram o fim dela.

    Por enquanto influencia apenas o mundo da economia; é claro.

    Através dela é que alguns ganham.

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