Destruam a democracia e depois queixem-se, por Rui Tavares

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Público

Destruam a democracia e depois queixem-se

por Rui Tavares

Como pode a TVI eximir-se de responsabilidade moral ao apresentar um criminoso racista como alguém que vale a pena ouvir sobre se precisamos de um novo ditador em Portugal?

Há dias em que um cronista só se pode lembrar da música dos Rádio Macau: “eu não sei se hei-de fugir / ou morder o anzol”.

A maior parte das vezes, fujo. Fugir significa escrever sobre as coisas realmente importantes. A chegada da China ao lado escondido da lua e o que isso indicia de uma nova corrida entre superpotências no espaço. Os vinte anos do euro e como a moeda da UE, mesmo feita pela metade, continua a desafiar as expectativas sobre a sua sobrevivência. O novo Congresso dos EUA e as pistas que ele traz para uma nova política progressista.

“Morder o anzol” seria escrever sobre o que não importa — sobre os iscos que todos os dias nos são lançados exclusivamente para chamar a atenção, ganhar audiências e abrir a porta a gente desesperada por dinheiro e poder. “Morder o anzol” seria escrever sobre uma estação de televisão, a TVI, que no desespero da concorrência por audiências leva a estúdio um reiterado criminoso racista para lhe perguntar se “precisamos de um novo Salazar”.

“Morder o anzol” é coisa que só se justifica quando por detrás dos golpes publicitários, sejam eles de aspirantes a políticos ou de vendilhões do jornalismo, está em risco um valor mais alto: a democracia e a sua sustentabilidade. Em situações normais, o perigo seria, ao denunciar, acabar por dar ainda mais divulgação a quem não a merece. Mas já não estamos numa situação normal. A degradação do espaço público que este tipo de oportunismos tem provocado já teve consequências funestas — na Europa, no Brasil, nos EUA, um pouco por todo o mundo. O perigo agora é não denunciar e deixar banalizar estes comportamentos. Sim, eles conseguem fazer-nos morder o anzol. Mas a denúncia é uma obrigação de defesa da democracia.
 
O que a TVI fez ontem, ao convidar o criminoso racista Mário Machadopara um programa da manhã e apresentá-lo como mero “autor de declarações polémicas” foi uma grave violação dos princípios que sustentam uma relação de confiança com os espectadores e, por conseguinte, da própria integridade do espaço público.
 
Mário Machado não é um “autor de declarações polémicas”. É um dos líderes de um movimento que tem no seu historial variadíssimas agressões racistas e vários outros crimes de coação, ameaças, ofensas corporais e posse de armas ilegal. Foi um dos participantes mais ativos nos ataques racistas do 10 de junho de 1995, que resultaram na morte de um cidadão português, Alcindo Monteiro, por ter pele mais escura.

Nós sabemos que a concorrência entre canais de televisão — por audiências, por apresentadores, por dinheiro da publicidade — é feroz. Mas ela não pode fazer-se sem regras, numa corrida desenfreada para o fundo. Lançar conteúdo fétido para a opinião pública sob o pretexto de serem “declarações polémicas” já é habitualmente mau; apresentar um criminoso racista é pior, inacreditavelmente pior.

Claro que a TVI faz isto agora porque a CMTV fez o mesmo há seis meses. Eis o que então escrevi: “Quando a vítima é esquecida e o perpetrador aparece quase que celebrado em todo o lado estamos perante o sinal claro de um falhanço coletivo. Que provocará novas vítimas, estejam certos. Vítimas que vos ficarão na consciência quando as audiências já estiverem esquecidas”.

Pergunto-me agora se não terei sido demasiado otimista ao supor que quem toma decisões destas possa ter consciência.

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

5 Comentários

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  1. esse importante artigo me faz

    esse importante artigo me faz lembrar da necessária pergunta; 

    QUANTAS EZES CAÍMOS E CAIREMOS NAS ISCAS DESSA MÍDIA-JUDICIÁRIO INFAME?

     

     

  2. Bater tambor pra maluco dançar

    Bem, no brasil a grande mídia deu voz para os fascistas para desestabilizar o governo, eu não sei como são as coisas são em Portugal, mas nos estados unidos se deu voz para um bando de lunáticos anti-intelectuais por causa da “liberdade de expressão”, não duvido que a mídia portuguesa use a mesma desculpa. Além de anões, mulheres seminuas e musica ruim, a direita hidrófoba também da muita audiência.

  3. Ou: em todo lugar a grande

    Ou: em todo lugar a grande mídia privada cria o monstro fascista para, depois, lamentar a sua própria morte pelas mãos das hordas por ela criada.

  4. ‘magina se jornalista vai

    ‘magina se jornalista vai deixar de pensar como se fosse dono da firma de comunicação em massa que o publica… como se fosse pessoa do povo – o que, de fato, é. Se serve de alento, o jornalista não é o único “tipo” de profissional que mandou sua responsabilidade cidadã à favas. A gente costuma pensar que a profissão de médico é uma das mais importantes. E mesmo os profissionais desse ramo – salvo exceções como os cubanos, por exemplo – perderam a noção de humanidade, entraram na onda privatista e neoliberal que os, advinha… donos de firmas privadas (como essas, de jornal) estão a izer ser não apenas o único mas o modo natural do ser humano…

    Não existe mais jornalista, não existe mais médico, não existe mais profissão nenhuma. Todo mundo agora só quer saber de se salvar, ganhar dinheiro e prestígio e só enxerga finanscismo prá isso.

  5. bom post.

    Enquanto houver alguém indignado a escrever sobre isso, ainda haverá esperança!!!.

    O problema será quando ninguém mais se indignar.

    No Brasil, fizeram pior, deram espaço a um. E poucos ficaram indignados nos grandes meios de comunicação.

    O resultado é este que conhecemos.

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