Jornalista da BBC treinado em zonas de conflitos tentou salvar a vida de Santiago

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Jornalista da BBC descreve caos em tentativa de socorro a cinegrafista da Band

Por Wyre Davies

Da BBC


Cinegrafista Santiago Andrade é cremado em cerimônia no Rio de Janeiro

Hoje, fui ao funeral de um homem que eu não conhecia. Mas tudo o que ouvi e li sobre Santiago Andrade nos últimos dias me faz desejar tê-lo conhecido e passado mais tempo na companhia dele.

Os poucos minutos nos quais nossos caminhos se cruzaram em uma praça no Rio de Janeiro na semana passada foram caóticos, confusos e, em última análise, fúteis. Por talvez uma hora e meia, eu fiquei com aquele pai de família de 49 anos de idade em um hospital no centro da cidade enquanto médicos lutavam para salvá-lo.

Santiago Andrade não saiu do hospital com vida.

Faz exatamente uma semana desde que o cinegrafista da Rede Bandeirantes caiu com a explosão de um artefato, um tipo de sinalizador ou peça de fogos de artifício, atrás de sua cabeça enquanto ele cobria um dos protestos contra o governo no Rio de Janeiro.

Menos de quatro segundos depois, meu colega da BBC, Keith “Chuck” Tayman, e eu estávamos a seu lado.

Antes de chegar ao Brasil há cerca de cinco meses, eu passei os últimos três anos baseado no Oriente Médio cobrindo, entre outros eventos, as quase sempre traumáticas revoltas árabes. No Egito, em Gaza e na Líbia, eu presenciei cenas chocantes, emocionalmente aflitivas e vi, com muita frequência, as terríveis consequências dos conflitos.

Então, quando ajoelhei ao lado do corpo de Santiago, não fiquei congelado ou em dúvida sobre o que deveria fazer, mesmo vendo seus ferimentos terríveis. A explosão deixou uma enorme ferida em sua cabeça, através da qual o sangue já começava a escorrer.

Todos os funcionários da BBC que trabalham em áreas de conflito passam por um treinamento chamado “hostile environment” (ambiente hostil) – cuja parte mais valiosa é, sem dúvida, a preparação para prestar primeiros socorros. Tendo trabalhado anteriormente como guia de expedições em montanhas, eu também já havia usado esse conhecimento em outras ocasiões.

Na falta de um kit de primeiros socorros ou de bandagens apropriadas, Chuck instintivamente retirou sua camiseta e a pressionou contra a ferida na cabeça de Santiago para estancar a hemorragia. Apesar de inconsciente, Santiago respirava pesadamente. Em meio ao caos, fizemos o melhor que podíamos para estabilizá-lo.

Eu já vi muitas vítimas de violência deixadas deitadas no chão enquanto policiais e transeuntes ficam imóveis, por relutância ou incapacidade de ajudar, durante aqueles que podem ser os momentos mais críticos para a sua sobrevivência.

Na hora em que a ajuda médica profissional chega, frequentemente, é muito tarde; a vítima pode ter morrido pela perda de sangue, insuficiência cardíaca ou simplesmente porque ninguém verificou se ela continuava respirando.

Os ferimentos de Santiago eram tão graves que nós sabíamos que deveríamos levá-lo ao hospital imediatamente. Mas alguns policiais – talvez não percebendo a gravidade da situação – acabaram dificultando nossa passagem enquanto muitos manifestantes protestavam e gritavam culpando a polícia pelo ataque. Foi demonstrado, de forma quase inegável, que o artefato foi disparado por uma dupla de manifestantes que acabou sendo identificada.

Enquanto tratávamos de Santiago no chão, também tivemos que “controlar” a situação. Após alertar diversas vezes os policiais sobre a urgência do momento, carregamos cuidadosamente seu corpo, de 82 quilos, para a parte de trás de um carro de polícia e corremos para o hospital mais próximo.

O tempo pareceu uma eternidade, mas, desde o momento em que vi Santiago soltar sua câmera e cair no chão até a corrida contra o fluxo do tráfego pela principal avenida do Rio para o hospital, passaram-se apenas seis minutos.

Eu e Chuck esperávamos que tivesse sido tempo suficiente para ajudar a salvar a vida de Santiago Andrade.

Ameaça de violência

Sabendo que aquela provavelmente seria a última vez que veria seu pai com vida, Vanessa Andrade também passou bastante tempo ao lado de seu leito no hospital nesta semana.

Escrevendo com o coração, mas com a consciência de alguém que quer dizer as coisas certas e relembrar momentos preciosos, a jovem de 29 anos falou sobre o pai e sua última “conversa” com ele.

“Ele me ensinou muitas coisas, que pessoas de origem humilde têm que trabalhar duas vezes mais duro para vencer na vida”, disse Vanessa, que deu continuidade à vocação do pai como profissional de mídia.

Em uma homenagem comovente, ela continuou: “Hoje, eu disse adeus, só eu e ele. Com minha cabeça em seu ombro, falamos de muitas coisas. Eu pedi perdão pelas minhas falhas… . Eu sei que ele está bem. Claro que ele está. E eu sou a continuação da vida dele”.

Em uma sociedade frequentemente brutal e polarizada, muitos colegas descreveram Santiago como um homem grande e gentil que odiava violência e fazia todo o possível para evitar confrontos.

Durante seu velório e funeral lotados hoje no subúrbio do Rio, colegas da Band News e dezenas de outros jornalistas brasileiros relembraram um homem que trabalhou para minimizar as ameaças a profissionais de mídia.

Aqui na América Latina, onde jornalistas frequentemente correm o risco de se tornarem alvos, em vez de poderem operar como livres observadores independentes, o conceito de direitos legais para profissionais de mídia ainda não está enraizado.

De acordo com números divulgados recentemente, mais trabalhadores da imprensa foram mortos no Brasil do que em qualquer outro lugar na região, incluindo o México, onde repórteres são frequentemente intimidados e forçados a trabalhar de forma anônima.

“No Brasil, jornalistas trabalham sob uma ameaça generalizada de violência e grande operações repressivas da polícia”, afirmou o 2014 World Press Freedom Index (Índice de Liberdade de Imprensa no Mundo), que foi divulgado nesta semana.

É uma curva de aprendizado para jornalistas também. Permanecer como observadores imparciais de eventos complicados e traumáticos é a melhor maneira de se conseguir enxergar o cenário como um todo.

Infelizmente, nos dias após a morte de Santiago, partes da imprensa brasileira correm perigo de serem usadas e manipuladas por forças políticas para demonizar o movimento de protestos como um todo, não apenas os poucos sem consciência que estão empenhados em ações de violência e confronto.

Esses têm sido dias perigosos porém fascinantes para ser um jornalista no Brasil – um assunto que eu teria adorado conversar com um homem comprometido com seu trabalho e sua família.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

10 Comentários

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  1. Lembro-me de ter visto no dia

    Lembro-me de ter visto no dia do incidente trágico, ao lado do cinegrafista todo ensanguentado, um homem gordo sem camisa, cuidando do cinegrafista. Dava pra ver o quanto ele se envolvia com o problema para encontrar soluções. Muto bonita a solidariedade desse jornalista. 

  2. Caos tem cor

    Excelente depoimento com uma ressalva. Só culpa a polícia e não a direita que está por trás dessa violência toda.No Brasil sempre ocorreram manifestações e nunca houve esse quebra-quebra e bota-fogo em tudo como hoje. É uma cópia do que faziam os fascistas europeus seja na Alemanha de Hitler como na Itália dos anos setenta onde eu morava e vi. Está na hora de se dar nome aos verdadeiros responsáveis pelo caos que está imperando nas ruas. Esse nome tem cor e muito dinheiro. Eu estive na manifestação por Diretas Já no Anhangabaú.-SP. Mais de um milhão de pessoas ali se manifestando. Algum ferido ou morto? Nenhum. Alguma violência, fogo, quebra-quebra? Nada. Logo, tirem suas conclusões. A quem interessa hoje o caos?

  3.  
    O mais dificil para os

     

    O mais dificil para os jornalistas brasileiros não é proteger-se das bombas, vindas da polícia ou dos manifestantes e sim, fazer o que o Jornalista gringo disse:

    “….Permanecer como observadores imparciais de eventos complicados e traumáticos é a melhor maneira de se conseguir enxergar o cenário como um todo….”

  4. Herói internacional tentando salvar herói local

    O PIG e o seu braço global escalando personagens heroicos.

    Enquanto ninguém sequer lembra do menino morto por rojão, na Bolívia, o PIG vai criando a canonização de um novo Tim Lopes. Lá, no estádio boliviano, ninguém poderia imaginar isso. Agora, em plena manifestação, a Band errou ao não equipar com EPI ao seu repórter.

     

  5. Solidariedade

    Legal e digna de nota a solidariedade do jornalista da BBC. Mas o texto ou está apressado, e o autor já deve ter feito alguma correção, ou o jornalismo inglês anda com a mesma mania do linchamento imediato do efeito manada que conhecemos bem: “…Foi demonstrado, de forma quase inegável, que o artefato foi disparado por uma dupla de manifestantes que acabou sendo identificada…”. Mais devagar, slow down old chap, mesmo alguns membros da nossa imprensa “mainstream” já começaram  a refletir com mais calma, como no artigo da Barbara Gancia na folha de São Paulo, conforme citado aqui hoje. Devagar, ainda vai aparecer muita coisa até que tudo fique claro.

  6. Não é relutância nem incapacidade de ajudar: Não somos monstros

    Eu já vi muitas vítimas de violência deixadas deitadas no chão enquanto policiais e transeuntes ficam imóveis, por relutância ou incapacidade de ajudar, durante aqueles que podem ser os momentos mais críticos para a sua sobrevivência.

    O JORNALISTA NOS PINTOU COMO MONSTROS QUE APENAS ESPERAM A VÍTIMA MORRER quando na verdade a imobilidade das pessoas diante de um corpo caido no chão como o de Santiago  é que nos incutiram que não podemos colocar as mãos na vítima enquanto não chega a equipe de primeiros socorros, foi isso o que foi transmitido à população, é este o senso comum, quanto a ser correto não sei, só sei que se o atendimento os primeiros socorros por pessoas do povo não forem feitos corretamente a situação pode piorar, de qualquer forma é um debate interessante, quem sabe esta convicção que carregamos esteja mesmo errada. 

  7. Capacete, inutil

    Neste caso, pois os capacetes modernos, tipo de kevlar, mesmo sendo resistentes a impactos diretos, possuem uma proteção muito pequena na região cabeça – pescoço, onde o cinegrafista foi atingido.

    Um rojão semelhante aquele, quando utilizado da forma correta, “para cima”, alcança a força de 100 joules, quando detona sua carga há 30/35 mts de altura, mas no caso de disparo horizontal, como o ocorrido, menos de 15 mts, a força de impacto recebida pelo alvo, deve ter se aproximado de 400/500 joules, não contando na equação o potencial de queimadura decorrente da explosão da carga, que não é desprezivel, e 450 joules é o poder de impacto de um projetil .38 – na região atingida – mata.

    Detalhe: Para utilizar um capacete (EPI-C), e ele ser efetivo, não basta coloca-lo na cabeça, é necessário um treinamento prévio, ou ele pode até matar o usuário, como quando ocorre um deslocamento de ar pós-explosão, e o EPI está fortemente ancorado no usuário, a pressão oriunda da detonação próxima, pode entrar por baixo do EPI, com consequencias mortais ao usuario.

    Por mais que eu não goste deles (são chatos, insubordinados, se acham a ultima bolacha do pacote), a proteção dos profissionais de imprensa, seja ela qual for: PIG, alternativos, midia ninja, etc..,é função do Estado.

      

  8. Comentário.

    Quando eu comentei que os colegas patrões mandam seus colegas empregados para a linha de fogo sem proteção, houve de tudo pra dizer que não era bem assim.

    Só quando toma uma bala de borracha no olho ou se lembra  do Tim Lopes que a coisa pega.

    Por isso que tem muito jornalista de pantufa, preferindo ser a voz das assessorias de imprensa – quando ele mesmo não constitui uma – ou indo para a publicidade (mais pela crise de sua própria área do que pela escolha profisssional).

    Devem ser esses os problemas do jornalismo atual: achar que certas coisas não ocorrem, convencer-se de que certas situações-limite são meros espetáculos e não terem nenhuma preparação para a realidade. Afinal, o estereótipo é que jornalismo é “curso de rico”…

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