Acidente de Manaus: jornalismo onde a ética não tem vez


Imagem: reprodução das redes sociais.

A imprensa nacional tem uma enorme capacidade de não aprender com os próprios erros. Há inúmeros casos de sensacionalismo, de assassinatos de reputação e descompromisso com a informação, além do já conhecido sensacionalismo e exploração da miséria em busca de audiência. Em Manaus, a cidade onde nasci e formei as bases da minha carreira profissional, não poderia ser diferente – muito embora existam exceções à regra do “espreme que sai sangue”.

A coisa só piorou com o jornalismo online. A agilidade com que notícias, imagens e vídeos podem, entre um clique e outro, circular na rede, levou a uma corrida desesperada pelo furo. A necessidade de dar uma informação em primeira mão não seria um problema, desde que não comprometesse a qualidade do que é informado e o compromisso de quem veicula com o seu público. Esse tema já é batido e debatido, e esperava-se que já houvesse, a esta altura, alguma maturidade da imprensa nesse sentido. Não há.

De 2010 até aqui, arrisco dizer que os internautas de Manaus viram o número de “portais” triplicar. Portais, entre aspas, porque se, nos primeiros anos o conceito fazia algum sentido – com grupos organizados e tradicionais de comunicação criando suas versões news –, agora o que há é a proliferação do chorume. Portal, só se for do inferno. Pequenos blogs querem disputar a atenção, os cliques e os pageviews com sites maiores – e vale tudo para isso. Os grandes, em alguns casos, respondem à altura da baixeza.

Mas, abaixo dessa camada digital, há o submundo de quem apura e escreve. Jornalistas afobados, mais interessados em impressionar chefes, já tinham seus próprios canais de informação. Mas, agora, há um pequeno cartel informativo abaixo da superfície, em grupos no WhatsApp, em que estão muitos profissionais. Uma parte, evidentemente, lá está apenas para ter acesso ao que está acontecendo na cidade e facilitar a busca por pautas.

Mas há um subgrupo entre tais jornalistas que, nestes espaços fechados, sentem-se à vontade para se despir da falsa ética que vomitam diariamente nas redes sociais e mostram o que são, como pensam e como agem no dia a dia. Na noite desta sexta-feira, eles fizeram mais uma demonstração gratuita do jornalismo de esgoto ao qual se interessam e fazem.

Enquanto a população ainda digeria a informação, veiculada a esmo nas redes sociais, de que um caminhão carregado de areia se chocou violentamente contra um microônibus, no que facilmente o coloca entre os mais graves acidentes de trânsito da história da capital amazonense – até agora, a estimativa é de 16 mortos –, alguns representantes desse jornalismo obscuro estavam mais interessados em imagens – chocantes – das vítimas.

Sim, além do que era o óbvio e dever da imprensa – apurar os nomes das vítimas fatais e feridos, o nome da empresa dona do caminhão, que prestava serviços à Prefeitura, e cobrar a investigação do incidente, inclusive no que pode ser melhorado, legislativamente, para amenizar novas ocorrências –, alguns desses profissionais queriam, literalmente, ver e publicar fotos e vídeos que mostrassem os corpos esmagados entre as ferragens.

Em nome da “audiência”, do “ofício”, eles queriam expor as vítimas à apreciação de parte do público que tem uma necessidade doentia em ver o estado do corpo das vítimas. Ninguém precisa dizer que tais pessoas têm familiares que, como se não fosse pouco saber que um pai, mãe, filho, irmão, foi morto em um trágico acidente, ainda precisam lidar com a dor da exposição pessoal.

O bom senso diz e repete, há anos, que as imagens de vítimas em incidentes do tipo são desnecessárias. Pelo simples fato de que não informa; mas serve para alimentar a morbidez de quem não tem humanidade – e, nesse ponto, falo do jornalista que faz tal coisa, do editor que autoriza e do público que consome.

É bom dizer que tal postura não ficou impune de críticas internas, por parte de outros jornalistas que fazem parte do mesmo canal do WhatsApp. Houve um debate intenso entre alguns deles, ainda no calor dos acontecimentos, apontando a total falta de ética da banda obscura dos que informam com letras escritas com sangue. Tal debate permaneceu fechado, e o público que consome as obscenidades não tem ideia da baixeza de alguns representantes da imprensa vil.

Um deles, bem conhecido no meio, soltou a máxima do que considero total despreparo, falta de compromisso, respeito e humanidade. Talvez até “amor ao próximo”, já que muitos desses não exita em falar de sua religiosidade quando é conveniente ou cool. Não vou reconstituir todo o chorume, mas me limitar ao uso de duas palavras que, segundo ele, fazem parte do exercício da profissão: frieza e calculismo. Isso para defender o uso de imagens chocantes.

O artigo 6° do Código de Ética dos Jornalistas, que trata do dever do profissional, traz, no parágrafo VIII, a seguinte orientação: “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão”. Preciso dizer mais, além de que tal jornalista desconhece – ou ignora – aquilo que rege seu dever? O cidadão, embora morto, não perde tais direitos, que valem também para os familiares. Foi essa mesma banda amadora, descompromissada e irresponsável, que ajudou a amedrontar a população com desinformação sobre o indulto de natal do ano passado.

Não citarei, por motivos éticos, o nome de tal “comunicador”. Não o citarei, portanto, porque não sou igual a ele. Também não mencionarei a turma que assinou embaixo tal comportamento, que o aprovaram e o legitimaram, em nome da sanha pela audiência. E conheço todos. A reflexão que fica é que, antes de portais – grandes ou pequenos – há o profissional que por eles atuam. E o jornalismo que eles fazem é diretamente proporcional à sua grandeza de espírito. Subentenda-se.

E se também houve (e de fato houve), no mesmo WhatsApp, pessoas de fora do meio jornalístico que fizeram a mesma coisa – compartilhando a esmo as imagens dos mortos –, não é de surpreender, afinal. O público está apenas buscando a ração visceral com a qual foi e permanece sendo alimentado quase que diariamente por esse mesmo tipo de jornalismo.

O Portal do Holanda, por exemplo, um conhecido violador das mais básicas regras do jornalismo e da ética em Manaus, publicou uma foto que mostra muitos curiosos com celulares nas mãos, registrando as vítimas do acidente. E tenta, na mais descarada hipocrisia, refletir sobre, dizendo que aquilo representa “certa insensibilidade, da atração irresistível pelo que é mórbido. A dor dos outros não é a do outro. Essa ninguém quer compartilhar.”

Diz aquele que, pouco tempo atrás, publicou imagens chocantes do corpo de uma estudante universitária morta em um acidente de trânsito. Diz aquele que já publicou fotos do que restou do corpo de um homem que saltou de um dos prédios comerciais de um shopping de Manaus. Diz aquele, supostamente criticando a morbidez e obscuridade de alma que ajudou a alimentar. Como já dizia Joseph Pulizter: “Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma”.

Frieza e calculismo não é da essência do jornalista.
Está na receita dos hipócritas e na natureza patológica dos psicopatas.

Leia mais sobre o incidente.

Redação

15 Comentários

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  1. Excelente post. Hoje de manhã

    Excelente post. Hoje de manhã minha hospede amazonense ja com oitenta e poucos anos, recebeu um alarmante telefonema da filha contando  do acidente, a pobre senhora quase teve uma crise de nervos tal os detalhes chocantes  do acidente. Senti que havia aquele prazer mórbido do qual fala o texto

    1. Infelizmente há quem tenha

      Infelizmente há quem tenha uma mentalidade medieval em pleno século 21. Um dia, quem sabe, chegaremos a um nível superior de civilização. Mande meu abraço para sua hóspede, de um conterrâneo.

  2. Achei pura hipocrisia o

    Achei pura hipocrisia o portal do holando publicar essafoto co

    m esses dizeres, como voce disse, ha um tempo atras eles postaram fotos da minha amiga Evelyn, a estudante universitaria que voce menciona no texto, e me fez muitoo mal, eu fechava meus olhos e so vinha aquela imagem na minha mente, eu ja nao conseguia visualizar o rosto liindo que ela tinha. 

    Essas fotos sao muito fortes, os familiares e amigos se sentem mt mal com esse tipo de imagem, e muita gente nao tem noçao disso. Uma pena. 

     

    So desejo conforto aos parentes e que eles nao vejam esse tipo de foto. 

  3. Eu afirmo sem medo de errar.

    Eu afirmo sem medo de errar. A grande (só em tamanho) imprensa brasileira é a pior do mundo, entre as democracias. Atualmente para trabalhar no pig é preciso apresentar uma unica caraterística. Total falta de caráter 

  4. Qual o problema nessa

    Qual o problema nessa relação?

    Há quem queira ver, e há quem queira mostrar.

    Caso não faça parte de nenhum dos dois grupos, abstenha-se, simples assim,

    1. Se fosse um parente seu, você

      Se fosse um parente seu, você veria problema.

      Abster-se diante do errado é compactuar com ele. “Simples assim”.

  5. Ética

    Isso mesmo! Parabéns! Toda profissão existe uma ética. Profissionais bons são extremamente éticos. Os ruins precisam de sensacionalismo para se mostrar, porque não tem capacidade de um trabalho bom… por isso recorrem a falta de ética!

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