Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A experiência da bicicleta na música e no cinema

Qual a representação do imaginário da bicicleta na música e no cinema? Para nossa surpresa encontramos uma conexão sincromística entre estas representações que relacionam a bicicleta com um particular estado de consciência (pelo seu singular design que funde homem e máquina) e o gnosticismo do pensador Basilides: o alterado estado mental de “suspensão” que permitiria silenciar o ruído da linguagem para que ouçamos o espírito.

Basilides, um dos primeiros professores gnósticos em Alexandria, Egito, no século II da Era Cristã, nutria uma radical desconfiança em relação à capacidade da linguagem apreender a realidade. Sua teoria pode ser resumida na ideia da Grande Negação: se a verdade sobre Deus está além do conhecimento humano, a negação do conhecimento e da linguagem é o sagrado caminho.

No seu escrito “Sete Sermões aos Mortos” Basilides afirma que diante da plenitude (Pleroma – a origem de onde tudo foi emanado) “pensamento e existência cessam porque o eterno é desprovido de qualidade”. O mundo criado (o cosmos físico), ao contrário, é regido pelo princípio de “diferenciação” onde aquilo que era uno é cindido em qualidades opostas. Através da linguagem e do conhecimento o homem torna-se obcecado em apreender as qualidades do devir nomeando-as através de conceitos e palavras uma realidade que é difusa, fluída, relativa. Se as qualidades do Pleroma são pares opostos que se anulam mutuamente (a união dinâmica dos opostos: plenitude/vazio, belo/feio, tempo/espaço, energia/matéria etc.), ao contrário, a linguagem humana as diferencia, discrimina, tonando-nos vítimas dos pares de opostos.

O resultado é o Mal: na busca do Belo, o homem produz o feio; na busca da paz acaba produzindo a guerra, na busca do eficaz por meio da tecnologia acaba produzindo a inutilidade, etc. Essa reversão irônica da linguagem (a não transitividade entre linguagem e realidade) acaba tornando o homem prisioneiro dos próprios conceitos e palavras, não conseguindo ouvir, dentro de si, a reminiscência do Uno, do Pleroma, da plenitude original que o uniria a Deus.

“O que não deveis esquecer jamais é que o Pleroma não tem qualidades. Somos nós que criamos essas qualidades através do intelecto. Quando lutamos pela diferenciação ou pela igualdade, ou por outras qualidades, lutamos por pensamentos que fluem para nós a partir do Pleroma, ou seja, pensamentos sobre as qualidades inexistentes do Pleroma. Enquanto perseguis essas idéias, vós vos precipitais novamente no Pleroma, chegando ao mesmo tempo à diferenciação e à igualdade. Não a vossa mente, mas o vosso ser constitui a diferenciação. Eis por que não deveríeis lutar pela diferenciação e pela discriminação como as conheceis, mas sim por VOSSO PRÓPRIO SER. Se de fato assim o fizéssemos, não teríeis necessidade de saber coisa alguma sobre o Pleroma e suas qualidades e, ainda assim, atingiríeis o vosso verdadeiro objetivo, devido à vossa natureza. No entanto, como o raciocínio aliena-vos de vossa real natureza, devo ensinar-vos o conhecimento para que possais manter vosso raciocínio sob controle.”(BASILIDES, “Sete Sermões aos Mortos” disponível em: http://www.gnosisonline.org/teologia-gnostica/sete-sermoes-aos-mortos/)

Por isso Basilides propõe um singular estado de consciência: o silêncio, o estado de “suspensão”, o esvaziamento da mente por meio da suspensão de toda atividade dos mecanismos de abstração da linguagem (diz-se que os discípulos de Basilides eram obrigados, como ritual de iniciação, a ficarem em silêncio por três anos…). Manter o “raciocínio sob controle”, lutar “contra a diferenciação”. Com esses termos Basilides refere-se a um estado de suspensão entre os pares opostos, o “tertium quid”, o terceiro elemento que solde as qualidades.

A Experiência da Bicicleta: estado de “suspensão”

E o que essa longa introdução tem a ver com ciclismo? Se fizermos um sobrevoo nas representações da cultura pop em relação à bicicleta e ciclismo, veremos que essa prática desportiva e meio de transporte ocupa uma posição especial, uma especial confluência entre especiais estados de consciência e esforço físico, corpo e mente.

Um primeiro exemplo é o Kraftwerk (grupo pop alemão considerado os padrinhos da música Techno e industrial), cujos membros são apaixonados pelo ciclismo e que, a partir do mecanismo, ergonomia e design da bicicleta, destilaram o “ethos” da sua proposta musical: a união entre Homem, Máquina e Natureza. Certa vez, um dos integrantes do grupo, Ralf Hütter, fez a seguinte afirmação após a elaboração do clássico single “Tour de France” de 1983: “a bicicleta é mais do que um mero instrumento de lazer, é algo mais próximo da declaração política. Não é para férias, É o homem-máquina. Sou eu, o homem-máquina na bicicleta. Velocidade, equilíbrio, uma certa liberdade de espírito, manter a forma, técnica e perfeição tecnológica, na aerodinâmica”.

Para ele, a bicicleta é em si um instrumento musical: o som ritmado da corrente, engrenagens, a respiração e batimento cardíaco, tendo como fundo o som contínuo “shhhhhh” do contado do pneu no asfalto. Tal como um mantra, confere uma “liberdade ao espírito” ao esvaziar a mente, seja pela repetição de sons e movimento, seja pelo esgotamento físico.

Aqui podemos fazer uma surpreendente conexão entre Basilides e a bicicleta: o estado de consciência de suspensão na bicicleta é, ao mesmo tempo, simbólico e literal. Montar na bicicleta e se deslocar velozmente como se estivesse suspenso e, ao mesmo tempo, o som ritmado do corpo e do mecanismo anulando o trabalho mental.

Por experiência própria, é surpreendente os “insights” ou ideias que, paradoxalmente, advém desse vazio mental. A união dos opostos. Assim como na criação por brainstorming onde um estado caótico de ideias desconexas produz, ao longo do tempo, uma massa crítica que, de repente, produz um salto qualitativo: do nada, do caos, surge repentinamente a ordem, uma ideia.

É como se o barulho da atividade mental racional e cotidiana não nos deixasse ouvir as camadas mais profundas do nosso interior. É necessário silenciar a mente, nem que seja por meios violentos como no filme “O Clube da Luta”: a luta tem um aspecto de disciplina, ascese, tal qual um mantra onde os pensamentos e a racionalidade são subjugados à disciplina da repetição até que se convertam no oposto: o estado de suspensão de sentido para a libertação da consciência.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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