A presença de Radamés

Tudo bem que se comemorem os 250 anos de nascimento de Mozart, patrimônio da humanidade. Mas o descaso com que foi tratado o centenário de nascimento de Radamés Gnattali é significativo do subdesenvolvimento brasileiro.

Radamés não foi apenas um grande compositor e intérprete. Foi um dos músicos fundamentais da história da música brasileira no século 20. Nascido em 1906 em Porto Alegre, filho de imigrantes italianos, desde cedo impressionou pelo virtuosismo ao piano. Junto com a irmã Aída, gravou peças históricas a quatro mãos.

Aos 14 anos entrou no Conservatório de Porto Alegre; aos 16 anos, tornou-se pianista do Cine Colombo. Por falta de recursos não seguiu a carreira de concertista. Tivesse seguido, teria sido um dos grandes pianistas do século. Suas gravações de Nazareth são superiores inclusive às de Arthur Moreira Lima – sem nenhum demérito para Arthur.

Conseguiu algum sucesso no Rio em 1923, mas acabou voltando para Porto Alegre. Em 1929 retornou ao Rio, para uma apresentação com orquestra. Insuflado pelo clima nacionalista trazido pela Revolução de 30, Radamés deu início a uma promissora carreira de compositor erudito da escola nacionalista, com seu “Rapsódio Brasileira”.

A falta de espaço na música clássica acabou por enredá-lo na música popular. Passou a tocar nas orquestras de Romeu Silva – um dos primeiros chefes de orquestra a excursionar pela Europa – e Simon Boutman, maestro judeu legendário.

Nesse período enveredou pelo campo dos arranjos populares. O século terminaria com Radamés sendo reconhecido como o grande arranjador brasileiro, modernizando uma escola de arranjos que tinha em Pixinguinha seu ponto mais alto -mas muito fincado no sotaque dos dobrados. Radamés passou a escrever arranjos para o maior cantor brasileiro, Orlando Silva, incorporando definitivamente o sotaque americano na música brasileira, mas sem deixar de lado nossas características,

Com a inauguração da Rádio Nacional, ficou 13 anos como líder da “Orquestra Brasileira de Radamés Gnattali”, que se apresentava no programa “Um milhão de melodias”. Praticamente compunha um arranjo por dia. Esse misto de erudito e popular o fez amado pelos músicos populares, e visto com desconfiança pelos eruditos de casaca.

Conheci Radamés quando ele já tinha 80 anos. Um dia veio se apresentar na Funarte, em São Paulo. Fomos apanhá-lo na saída. Nem me lembro quem foi o amigo que me apresentou a ele, provavelmente o Pelão, que conheceu todos os deuses do Olimpo. De lá, saímos para comer uma pizza.

Foi ele quem me informou que o autor da valsa “A Louca” era Chico Neto, palhaço de circo que tocava cavaquinho, e que o arranjo para violão foi de Teodoro Nogueira, paulista que fez carreira no Rio e faleceu poucos anos atrás. Contou também que, ao contrário do que se espalhava no Rio, a primeira esposa de Garoto, o Aníbal Augusto Sardinha -outro dos músicos fundamentais do século–, era uma senhora simples e boa. Problemas terríveis ele enfrentava com a segunda, que queria impedi-lo a todo custo de mandar ajuda para a ex e para o filho. Muitas vezes, Garoto passou dinheiro escondido para Radamés mandar para sua família paulista. Ele e Garoto foram sócios em uma chácara no Rio.

Radamés revolucionou o choro, incorporou no choro do pós guerra os avanços que aconteciam no jazz. Mas, até então, considerava o choro uma escola pobre, comparada com o jazz. A rigor, respeitava apenas Pixinguinha como músico à altura dos americanos.

Pouco saiu na mídia. Mas no coração de cada chorão brasileiro se comemorou o centenário de uma das referências musicais do século.

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