Antonio Nóbrega e o frevo

Por Marco Antonio L.

Do Valor

O brincante que bota pra ‘frever’

Adriana Abujamra | Para o Valor

Quando o multiartista Antonio Nóbrega mudou de Recife para São Paulo, há 30 anos, trouxe um “punhadinho” de areia da praia. Queria a cidade perto de si. Precisava não. Pernambuco estava impregnado no homem, com suas cantigas e cirandas. “Meu mundo onírico é povoado por esse universo. Vim para cá com 30 anos, impossível tirar isso de mim.”

MesmoMesmo se declarando um “recifense caído de amores por São Paulo”, ainda hoje dói voltar das visitas à terra natal. “Digo: xô, saudade, vá pra lá!” E ela obedece. Pudera. A agenda cheia chispa qualquer saudosismo.

Além das seis horas diárias dedicadas à prática do violino e ao exercício de corpo e da voz, Nóbrega termina um filme dirigido por Walter Carvalho – “um florilégio” de sua trajetória -, prepara um espetáculo dedicado a Luiz Gonzaga – que faria cem anos em dezembro – e estreia uma Companhia de Dança que levará seu nome.

E tem mais. Nóbrega completa 60 anos de vida, 40 de carreira e 20 de Brincante – instituto criado por ele e Rosane Almeida, sua mulher, que tem como foco a pesquisa e o ensino da cultura brasileira. Pois é, 2012 promete “frever”.

“Frevo é uma corruptela de ferver” – ensina, durante o almoço que começou num restaurante e acabou no fim do dia no quintal de sua casa, em meio à sua mulher, aos rebentos e rabecas. “O povo, na sua maneira de falar, às vezes acrescenta esse erre: ‘A panela tá frevendo’. Vai ter um ‘frevo’ era o mesmo que dizer ‘vai ter festa’. E havia o ‘frevidouro’, local onde o frevo esquentava.”

Nosso “frevidouro” foi o restaurante Pitanga, na Vila Madalena, que tem ares de casa do interior. Logo na entrada, um antigo portão e uma pitangueira nos convidam para entrar. O lugar é repleto de plantas, piso de ladrilho hidráulico e paredes amarelas. Um bufê montado sobre um fogão de ferro serve pratos da cozinha variada.

Nóbrega veste camiseta preta e usa chapéu cinza, que tira ao sentar-se. O cabelo é grisalho e cortado à navalha. Toinho, como é carinhosamente chamado pela família, fala sem pressa e escolhe cuidadosamente as palavras. Pede um suco de melancia e passa a desfilar seu romanceiro. De tanto ver o moleque batucar pela casa, o pai, o médico João de Almeida, suspeitou da vocação musical do filho. Para ilustrar o dito, as mãos de Nóbrega tamborilam sobre a mesa. Uma menina que corre pelo salão para, espia e some novamente quando o batuque finda.

Aos 8 anos, Toinho começou a tomar aulas de violino clássico, teoria e solfejo. Almeida, notando que as três filhas – e não apenas o varão – levavam jeito para a música, incentivou-os a montar um conjunto doméstico batizado de Os Irmãos Almeida.

O menino ia à escola pela manhã e as tardes eram dedicadas às aulas de música e de francês. “Cedo fui tirado das ruas, para não correr o risco de machucar as mãos.” Nóbrega passou ao largo das festas de bumba meu boi, dos cantadores de embolada e do teatro de bonecos dos mamulengos. “Carnaval à noite era em clube e de dia no corso.”

E o que era o corso? Era se meter dentro de um carro, tirar a capota e rodar durante horas pela cidade, lambuzando-se, buzinando e desperdiçando gasolina.

“Era esse meu insosso e estúpido Carnaval. E nem música tinha. O Brasil popular não existia para mim e toda a gente da classe média.”

Aos 17 anos, quando tocava na Orquestra Sinfônica do Recife, Nóbrega foi descoberto e convidado pelo escritor Ariano Suassuna para integrar o Quinteto Armorial, o braço musical do movimento, que defendia que a arte erudita deveria se apropriar das raízes populares para construir uma linguagem brasileira. Os ensaios ocorriam na casa de Suassuna, mentor do projeto. Além dos músicos, ele convidava artistas plásticos, poetas e pensadores para discutir arte. “A conversa era muito nutridora”, conta, antes de atacar uma torrada.

Com o Quinteto Nóbrega correu o Brasil e o exterior e gravou quatro discos. Nos anos 1980, decidiu dedicar-se à criação de seus espetáculos solo e saiu do grupo. Mas sem nunca abandonar o universo dos artistas populares, fonte de sua arte. “Nosso material de troca ficou estereotipado”, lamenta. “Quando você fala de música e dança brasileira, a imagem que vem é da mulata requebrando e Carnaval. O imaginário com que identificam o Brasil ficou muito pobre, raso. Eu gostaria de colaborar para mudar isso.”

Na segunda rodada de sucos, a brincadeira é misturar frutas: mexerica com morango e laranja com abacaxi. Quando o garçom se afasta, Nóbrega conta como conheceu a curitibana Rosane, sua “única, insuperável e inseparável ‘partner’ e companheira de toda a vida”. Os dois assistiam a uma apresentação de pífanos e a certa altura um contorcionista pegava o cigarro com o pé. “Veja! Eu dando um duro danado com meus alongamentos e esse cara já nasce pronto”, Nóbrega lamentou alto para fisgar a moça sentada à sua frente. Ela riu. Foi a deixa para continuar a cantá-la, como diz uma música de sua autoria: “Menina, vou te ensinar/ como é que se namora/ põe a alma no sorriso/ o sorriso põe pra fora”.

Em um ano Nóbrega e Rosane dividiam casa, coxia e caíam juntos numa cidade nova. “O começo em São Paulo foi difícil”, conta. “Nordestino, sem conhecer quase ninguém e com uma bagagem cultural completamente oposta às tendências.” Aos poucos, foi abrindo as portas do seu reisado. Apresentou-se no festival Carlton Dance, no programa de TV “Som Brasil” e – a convite do bailarino e preparador corporal Klauss Vianna (1928-1992) – deu aulas de danças brasileiras na Unicamp.

Seu público foi aumentando e a família idem. O primeiro filho, Gabriel, nem dentes tinha e já acompanhava os pais nas apresentações. Rosane, desenvolta nos malabares, dividia-se entre as falas no palco e as fraldas na coxia. A Nóbrega, em cena na pele de Tonheta, cabia incorporar o choro do bebê ao enredo.

A segunda filha, Maria Eugênia, viveu uma grande cena ainda na barriga da mãe, quando o casal decidiu ir à Suíça para fazer um curso com Dimitri – o palhaço mais famoso do país, que criou uma respeitada escola de artes circenses. O dinheiro pagava os custos, mas faltavam as passagens. Foram bater na porta da Varig. Chegaram de madrugada e saíram à noite com os bilhetes nas mãos. Como? Sensibilizaram a pessoa encarregada, que garantiu: “Não serei eu a destruir um sonho”.

A experiência com Dimitri serviu para Nóbrega lapidar seu personagem Tonheta, carroceiro andante e herói picaresco do Brasil. Com Tonheta o artista mostra toda sua versatilidade: canta, dança, compõe, interpreta e cativa.

Quem vê Tonheta a fazer cócegas na plateia não imagina da missa um terço. Para criá-lo, Nóbrega partiu da figura do Mateus, o palhaço do bumba meu boi, e do Velho Faceta – “que é o que existe de mais safado e sem-vergonha em Pernambuco”. Para aprender as “gatimanhas” desses personagens, assistiu a várias de suas apresentações, imitando feições e trejeitos. E, da mistura do apelido Toinho com Faceta, batizou seu tipo de Tonheta. À fonte popular do Nordeste Nóbrega somou referências de outras culturas: Dom Quixote, de Cervantes; os gigantes Pantagruel e Gargântua, de Rabelais; Carlitos, de Chaplin; e os arlequins da Commedia dell’Arte.

A cesta de pães quase vazia é um ultimato: hora de se servir. Nóbrega vai de salada, arroz integral, pupunha e anchova negra com molho “teriyaki”. Depois de regar seu prato com azeite, ele relata uma situação engraçada.

No espetáculo “Figural”, Tonheta convidava “uma criatura fêmea” da plateia para subir ao palco. Ninguém se candidatava. O artista, então, se valia de um truque. Anunciava que aquela que tirasse os olhos dele seria a eleita. Batata. A mulherada toda arregalava os olhos. Tonheta então surpreendia: “Você que me olha tanto, venha”.

Pois bem. Certa noite, antes mesmo de Tonheta terminar o convite, ouve-se uma voz em bom som: “Eu vou”. “E quem é você?”, quis saber. “Tuarete”, respondeu uma mulher pequena de cabelo vermelho já subindo no palco, onde não se intimidou. Pegou um cajado gigante que fazia parte do espetáculo e partiu para cima de Tonheta: “Agora eu te pego”. Cinco anos depois, houve outra voluntária. A moça se apresentou como: “Eu, filha de Tuarete”.

O garçom, que esperou para ouvir o fim da história, recolhe os pratos e sorri. “Hum, vou sair do regime”, anuncia o disciplinado Nóbrega ao ver o cardápio de doces. “Com a idade, meus recursos de bailarino vão diminuindo, então evito doce e gordura para me preservar.” Há tentadoras sobremesas calóricas. Ele anuncia sua escolha: salada de frutas. Com sorvete e cobertura? Não, simples.

Àquela altura da carreira, Nóbrega já “fazia um certo furor” no Sudeste – havia caído nas graças da crítica e do público, mas os teatros continuavam lhe negando os dias nobres. Era segundas e terças e olhe lá.

“Muito orgulhoso do que havia feito até então falei: ah é? Então vou criar o meu teatro.” Na Vila Madalena o casal encontrou um galpão abandonado. Sua história poderia até ser mote para um enredo: era uma antiga vidraçaria comandada por dois irmãos. Um roubou o outro, que, de tanta mágoa, enfartou. Tempos depois, o irmão pulha faliu e fugiu.

A casa nem teto tinha. Combinaram com o proprietário que levariam uma equipe para pôr o lugar em pé. A tal equipe era composta por Nóbrega, Rosane e os filhos pequenos. Teatro erguido, a família passou a se apresentar e fazer experimentos com as linguagens das artes brasileiras. Os filhos tomavam parte do enredo – hoje Gabriel tem uma firma de cinema de animação e Maria Eugênia é bailarina. Aos poucos, o casal foi desafiado a passar adiante esse olhar diferenciado sobre o país.

Surgia, assim, o Teatro Escola Brincante, que oferece oficinas, cursos e palestras. Muitos dos alunos são multiplicadores e levam o que aprenderam para os educadores da rede pública e privada de ensino. Estudar arte, ele diz, é benéfico por trazer dois componentes ricos e antagônicos: a ordem e a desordem.

“A ordem é desenvolvida quando estamos atentos à técnica. Isso adensa a capacidade de organização e as sinapses. Mas a arte precisa também da desorganização e do espírito do improviso, que é o momento em que a emoção se aloja e você passa a trazer um conteúdo humano, o seu sentir ao que foi apreendido.”

O termo “brincante” é do Nordeste e se aplica ao artista que corre por este “mundaréu de meu Deus”, recolhendo e ensinando causos, cantos, danças e mitos. Nóbrega diz que os brincantes estão focados em se divertir sem se preocupar com a plateia. “Não estão exercendo, como nós, o rito do artista.” Ele explica e distingue três fases no universo da cultura popular: uma voltada para a função, outra para a diversão e a terceira para a estética. Para ilustrar, conta o seguinte.

O frevo, musicalmente, é um desdobramento do passo dobrado da marcha tocada pelas bandas militares em dias de festividade. Aos poucos, as bandas passaram a ser patrocinadas por partidos políticos, provocando rivalidade onde reinava apenas festa. Por precaução, convocaram capoeiristas para sair à frente e defender os foliões em caso de briga. De tanto ouvir a cadência da música, os valentões foram amolecendo e dissolveram a belicosidade em movimentos mais lúdicos. Nóbrega tem pinçado gestos e figuras dessas festas para recriá-los no palco. “Quando eu congraço esses elementos, viram outra coisa. Passa a existir uma preocupação estética.”

O garçom aparece para retirar os pratos, mas Nóbrega é mais ligeiro. “Não acabei ainda”, diz, defendendo a sua última garfada da salada de frutas.

Frevo é uma música criada para ser tocada em fanfarra e com instrumentos de metal. Mas Nóbrega encasquetou em tocá-la ao violino, execução que se mostrou extremamente difícil. Cabra obstinado, partiu para a Bulgária para aprimorar-se por lá. Quem escuta o acorde de seu violino pode ter certeza de que sua arte mistura o erudito ao popular.

Depois de pedir um café descafeinado, diz que quando querem saber o que frevo e violino têm em comum, sua resposta é simples: “Eu”. E em que violino e rabeca são semelhantes? Rabeca – explica – é o nome popular do violino. “No fundo são o mesmo instrumento. Tem quatro cordas, dispostas num cavalete curvo e tocadas com arco.” Mas, enquanto o violino se sofisticou ao longo de séculos, a rabeca é mais precária. Nem por isso perdeu seu charme. Nóbrega tem 20 rabecas em uma estante de vidro em casa. Uma traz um mapa de lugares da obra de Guimarães Rosa. A menor ele batizou de rabequeta, pois é destinada a Tonheta.

O artista já conheceu muita gente rodando e pesquisando pelo país. Um deles foi um mestre de dança de coco de zambê. “Óia. Uma coisa eu sei”, Nóbrega diz, imitando a voz do mestre. “‘O folguedo num nasceu na África. A África está lá longe e nóis aqui. Diz como pode vir de lá se nóis tá aqui. Diz? Diz? Nossa dança é brasileira.”

Nóbrega não se cansa de investigar raízes e influências. De “cascavilhar” a evolução criativa do Brasil resultado do encontro de raças. Poucas pessoas se lançaram de forma tão visceral para tentar compreender nossa cultura. Agora, ele deseja escrever um livro com uma reflexão histórica sobre todo esse material.

A segunda rodada de café é a cena final desse romanceiro. Hora da conta. Como diz Siduca, mestre de cerimônias e homem-banda do espetáculo de Nóbrega: “Às vezes as pessoas me dizem: tempos difíceis estes em que vivemos (…) Por isso digo sempre: queridos amigos meus, Tonhetai-vos uns aos outros!”

Luis Nassif

1 Comentário

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  1. Louvo ao grande pernambucano Antônio Nóbrega

    Muito nos orgulha Antônio Nóbrega e família. Ao escutar as músicas e vê-los dançar aguça-me ainda mais a saudade de Pernambuco e sinto pulsar mais forte minhas veias de nordestina. Se acaso Deus me ouvisse pediria que esses músicos do quilate dele não morrecem.

     

    Parabéns e espero que Pernambuco renda belas homenagens ao Tonheta que tanto iluminou os carnavais do Recife 

     

     

    Itajaci Machado

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