João Donato, o samba sincopado e os preconceitos de Rui Castro

Obviamente os erros de análise não tiram o mérito das pesquisas efetuadas para o livro. Mas comprova que o preconceito é multitemático: não se restringe apenas à política.

Joaquim Ferreira dos Santos tem feito um belo trabalho de garimpagem de peças da bossa-nova no acervo do Instituto Moreira Salles. Aliás, ele e toda a equipe da rádio Batuta.

Agora, nos brinda com um clássico, o ”Eu quero um samba”, na versão de Os Namorados – nome dado à uma formação proveniente dos Namorados da Lua, cujo nome era de propriedade de Lúcio Alves. No canto, Miltinho, o rei do sincopado; no acordeon, João Donato.

https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/114256/eu-quero-um-samba

https://radiobatuta.ims.com.br/programas/ouve-essa/eu-quero-um-samba

Joaquim comete apenas um engano conceitual, herança do livro ”Chega de Saudade”, de Rui Castro, ao considerar o acordeon de Donato um precursor da bossa-nova.

O livro é um trabalho de pesquisa louvável, mas Rui Castro não era propriamente um conhecedor da música brasileira. Tanto que, frequentemente, ia à casa de Guttenbergs, o Baiano, amigo de boemia, para se informar sobre cantores, compositores e conjuntos dos anos 40 e 50.

Acabou emprenhando-se pelo ouvido com o discurso de Ronaldo Bôscoli. Este foi o grande propagandista da bossa-nova. No período heróico de consolidação do movimento, valeu-se do recurso retórico de desqualificar tudo o que veio antes, como se a música popular brasileira tivesse nascido com a bossa-nova. Antes, só havia bolerão e dó-de-peito.

Era um discurso de guerra que, com o tempo, foi abandonado pelos estudiosos do movimento, mas mantido por Bôscoli, compreensivelmente para cuidar da própria cria. E Rui embarcou naquele mar de preconceitos.

Na época, junto com o livro distribuiu uma espécie de programa de rádio com algumas gravações preciosas que levantou. Primeiro, tocava um dueto de Garoto no violão e Johnny Alf no piano, e decretava: “Como vocês viram, isso não é bossa-nova: é jazz”. E Alf fazia, com a mão direita, o balanço que João Gilberto assimilaria pouco tempos depois. Na sequência, tocava um Donato no acordeon, embaladíssimo, em um samba sincopado dos anos 40, e decretava: ”Como vocês ouviram, isto é bossa-nova”. Telefonei para ele, alertando-o para o engano.

Pouco tempo depois, entrevistei-o em um programa da TV Gazeta. Foi um jorro de preconceitos por todos os poros. Para ele, o baião era um jeito de matar baratas com os pés; Jacob do Bandolim, um babaca que detestava a bossa nova; Dolores Duran, um gênio da bossa nova; Claudete Soares, uma referência da bossa nova,

Perguntei se sabia que, antes do movimento, Duran era compositora de baiões? Não tinha a menor ideia. Como não sabia que a base das composições dela era o samba-canção – o filho do bolero – não a bossa nova.

Dolores Duran – Este norte é minha sorte

Depois, indaguei se sabia que, antes da bossa nova, Elza Soares fora coroada como ”princesinha do baião”. Não sabia.

Claudete Soares Baião da despedida

Também não tinha a menor ideia de que uma das maiores interpretações instrumentais de ”Chega de Saudade” tinha sido do maldito Jacob do Bandolim.

Nem sabia que uma das bases harmônicas da bossa nova foi Luiz Bonfá, diretamente influenciado pelo bolero e com dois clássicos, um o ”Manhã de carnaval”, o outro, ”Sambolero”.

O preconceito não cessou nem quando teve mais tempo para aprofundar as análises. Tempos depois, fiz uma longa entrevista com Baden Powell que disse o óbvio: ”Os músicos faziam suas músicas antes e fizeram depois. A única coisa diferente foi uma rapaziada da Zona Sul trazendo o tema do barquinho e da praia”.

A entrevista suscitou um artigo virulento de Rui, no Estadão, questionando Baden.

Obviamente os erros de análise não tiram o mérito das pesquisas efetuadas para o livro. Mas comprova que o poreconceito é multitemático: não se restringe apenas à política.

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Luis Nassif

10 Comentários

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  1. Coisa triste. E esterilizante. Essa de fazer questão de melindrar ou simplesmente desaparecer com a grandeza de outros; especialmente dos que vieram antes.

  2. Caro Nassif, na musixa e principalmente na brasileira não linha divisória, pra se determinar o pontos de mudanças! Quem determina a qualidade da melodia, harmonia e o ritmo é i musico.A musuca Chega de saudade tocada por Jacob e Wave tocada por Joel do Nascimento são sambas choros. Ciro Monteiro,e Ze Ketti já gravaram, cantaeam, fizeram sambas choros, também! O problema dos que se arvoram a escrever sobre música, não são músicos, porfanto não podem dar pitaco, não estão apitos pra falar do assunto, musica. Cruticis de musica, Rui Castro e Tinhorao são charlatões?

  3. Caro Nassif, caso se interesse jornslisticamente, o musico Carlis Sturzeneker, musico e compositor de samba bossa nova e canções, foi aluno do Almir Chediak . O musuco Carlos, cantor e violinista, conviveu com Almir Chedak durante o período que o Almir editava os livros , Harmonia e improvisação, Bossa Nova e os 5 Songs Books de Tom Jobim do Dhavan, etc… O Músico Carlos conhece a algunas histiruas do Almir, Cheduak, que acinteceram no periodo das edições dos livros e das oruentacies do musico. Envio um samba compisto e cantado, pelo musico, no compasso 5/4 ((Pra comer gom os olhis) e a musica instrumental Vaidade com grande cinfluencua com a musica espanhola .
    Abraços carl brasileiro.

    https://youtu.be/xPZul1b-mIs

    https://youtu.be/Pe3gz9kFlCs

  4. Nassif, parabéns pelo seu trabalho multifacetado que nos brinda a todos com oportunidades únicas de melhorar nossa visão da sociedade, da política, da cultura e da tão difícil e quase incompreensível economia.
    Gostaria de lhe fazer uma sugestão: veja o livro recentemente lançado por Wander Conceição intitulado: Das cinzas da Acayaca à nossa nova. Uma pesquisa interessante sobre Diamantina e Minas, e suas relações com a construção da música brasileira, com informações inéditas sobre João Gilberto.

  5. pela música brasileira sem preconceito

    de branqueamento em branqueamento
    a história preconceituada e sequestrada
    interpretada sob ambíguos andamentos
    segue sendo empobrecida e desfigurada
    na memória refém de falsos argumentos
    músicas pretas e indígenas vilipendiadas

  6. Esse preconceito continua até hoje pela ditadura Rio Bahia sobre tudo que é feito fora desse eixo. Não conseguem entender o sucesso do sertanejo Brasil a fora

  7. Ruy Castro (com “y” mesmo) infelizmente tem essa marca pouco generosa dos preconceitos. Contra “Arena conta Zumbi”, escreveu que montagens de teatro musical, como “Zumbi”, tinham.um.indefectível “cheiro de senzala”. Contra Oswald de Andrade, em textos recentes por ocasião dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, foi bem mesquinho. Destilou ressentimento contra a USP, que certamente tem atitudes autocentradas, mas é difícil contestar a sua continuada contribuição para a cultura no país. Ruy é um grande jornalista, mas precisa de psicanálise.

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