Mário Reis e Dick Farney – Modernistas de Carteirinha, por Laura Macedo

Mário Reis e Dick Farney – Modernistas de Carteirinha

por Laura Macedo

Dois modernistas de carteirinha têm sua obra rebobinada em coletâneas eloquentes que valem por revisões históricas. Ambas lançadas pelo selo curitibano ‘Revivendo’, Jura, de Mário Reis, e ‘Copacabana’, de Dick Farney, recolocam esses cantores no vetor de mudanças que daria na Bossa Nova.

O dândi [individuo que se veste com elegância e extremo apuro] Mário da Silveira Reis (1907-1981) aprendeu com seu mestre de violão, José Barbosa da Silva, o Sinhô, a tratar o samba de forma coloquial, numa emissão quase falada.

Farnésio Dutra e Silva, o Dick Farney (1921-1987), foi buscar inspiração lá fora, em Frank Sinatra e Bing Crosby, considerados cantores ‘de travesseiro’, em comparação com os ‘dós-de-peito’ de tenores anteriores.

Mário beneficiou-se do contraste numa dupla de antípodas com o vozeirão de Chico Alves. Dick chegou a desafiar os puristas com seu samba de tinturas eruditas, movido a orquestra de cordas ou camerístico, a bordo de piano e [sacrilégio!] guitarra, se bem que daquelas aveludadas, de entonação jazzística.

Nos dois CDs não há refugo: Mário e Dick incursionaram por pérolas mais obscuras mas sempre de alta linhagem. Capturado em diversas fases de sua carreira, do início em 1928, até a última aparição, em 1971, Mário fez uma curiosa travessia do samba de orquestração amaxixada, dominante até o fim dos anos 1920 [‘Jura’, ‘Vamos deixar de intimidade’, ‘Uma jura que eu fiz’] para a produção dos bambas do modelo de samba do Estácio Bide e Marçal’. [‘Agora é cinza’], além de Noel Rosa [‘Mulato bamba’] e Custódio Mesquita [‘Doutor em Samba’], já na virada para o formato tradicional que acabaria caracterizando o ramo.

Mário Reis / Sinhô / Ary Barroso / Noel Rosa / Bide / Custódio Mesquita

Confiram as composições citadas

Jura” (J.B da Silva [Sinhô]) # Mário Reis. Disco Odeon (10.278-A) / Matriz (2070). Lançamento (novembro/1928).

 

 

Vamos deixar de intimidade” (Ary Barroso) # Mário Reis e Orquestra Pan American. Disco Odeon (10.414-A) / Matriz (2605). Gravação (06/06/1929).

 

 

Uma jura que fiz” (Noel Rosa/Ismael Silva/Francisco Alves) # Mário Reis. Disco Odeon (10.928-A) / Matriz (4482). Gravação (12/07/1932).

 

 

Agora é cinza” (Alcebíades Barcelos ‘Bide’/Armando Vieira Marçal) # Mário Reis e Diabos do Céu. Disco Victor (33.728-A) / Matriz (65871). Gravação (25/10/1933) / Lançamento (dezembro/1933).

 

 

Mulato Bamba [Mulato forte]” (Noel Rosa) # Mário Reis e Orquestra Copacabana. Disco Odeon (10.928-B) / Matriz (4480). Gravação (07/07/1932).

 

 

Doutor em samba” (Custódio Mesquita) # Mário Reis. Disco Victor (33.728-B) / Matriz (65878) / Gravação (06/11/1933) / Lançamento (dezembro/1933).

 

 

 

Dick Farney / Braguinha /Alberto Ribeiro / Radamés Gnattali / Eduardo Patané / João Gilberto

 

O Dick Farney selecionado é o do samba-canção pós-guerra, transição para as harmonias inovadoras da bossa, em gravações de 1946 a 1952.

 

Abre o CD megaclássico ‘Copacabana’ [João de Barro/Alberto Ribeiro] de 1946, um divisor de águas com Radamés Gnattali arquitetando um arranjo de cordas [sob o comando do maestro Eduardo Patané], que incluía violinos, viola, violão, baixo e bateria, uma formação inusitada em relação ao tratamento dado então ao samba pelos regionais e mesmo orquestras de estúdio. No primeiro plano, uma percussão leve [prato-e-faca?] sustente o ritmo numa discrição que só era ouvida adiante, nos discos de João Gilberto. Outro ícone do cantor ronronante é a sussurrada [e lânguida] ‘Marina’[Dorival Caymmi].

 

Copacabana” (João de Barro/Alberto Ribeiro) # Dick Farney e Orquestra de Cordas Eduardo Patané. Disco Continental (15.663-A) / Matriz (1509). Gravação (0206/1946) / Lançamento (agosto/1946).

 

 

 

Sem querer, Farney, exímio também ao piano, como demonstra nas faixas em que se acompanha, desvela o ritmo de passagem do Brasil caboclo interiorano [‘Barqueiro do São Francisco’ / ‘A saudade mata a gente’ / ‘Um cantinho e você’ / ‘Nick Bar’ / ‘Uma loura’ / ‘Somos dois’] que forjaria a Bossa Nova consequente.

 

 

Oscar Belandi / José Maria de Abreu / Braguinha / Alberto Ribeiro / Luis Antônio / Alcyr Pires Vermelho

 

 

Outra boa ação da coletânea é reunir alguns dos principais autores dessa transcrição musical, alguns já esquecidos, como Oscar Belandi e José Maria de Abreu, além do próprio João de Barro, o Braguinha, seu parceiro Alberto Ribeiro e mais Luís Antonio, Alcyr Pires Vermelho.

 

Seleção das Músicas citadas acima

 

Barqueiro do São Francisco” (Alberto Ribeiro/Alcir Pires Vermelho) # Dick Farney. Disco Continental (15.663-B) / Matriz (1508). Gravação (02/06/1946) / Lançamento (agosto/1946).

 

 

A saudade mata a gente” (João de Barro/Antônio Almeida) # Dick Farney. Disco Continental (15.917-A) / Matriz (1877). Gravação (04/o6/1948) / Matriz (1877). Gravação (04/06/1948).

 

 

Um cantinho e você” (Jair Amorim/José Maria de Abreu) # Dick Farney. Disco Continental (15.916-B) / Matriz (1878). Gravação (04/06/1948) / Lançamento (setembro/1948).

 

 

Nick Bar” (José Vasconcelos/Garoto) # Dick Farney. Disco Continental (16.479-B) / Matriz (2718). Lançamento (dezembro/1951).

 

 

Uma loura” (Hervê Cordovil) # Dick Farney e acompanhamento da Orquestra RGE [regida por Henrique Simonetti]. Disco RGE (10.287-B) / Matriz (EGO/1959). Lançamento (março/1961).

 

 

Somos dois” (Armando Cavalcanti/Clecius Caldas/Luiz Antonio) # Dick Farney. Disco Continental (15.927-B) / Matriz (1876). Gravação (04/06/1948) / Lançamento (setembro/1948).

 

 

 

 

Mário Reis / Braguinha / Alberto Ribeiro / Lamartine Babo / João Gilberto / Sinhô

 

 

Voz pequena e sorridente, divisão impecável e um prenúncio do canto falado decupando as sílabas que balizaria a era do intimismo, Mário Reis deu a partida num projeto de MPB com cânones bem definidos. Sua estratégia de abordagem íntima dos temas funcionou tanto nas marchinhas sapeca: [‘Cadê Mimi?’/ Braguinha/Alberto Ribeiro] /‘Rasguei minha fantasia’ / ‘Joujoux et balangandãs’[ambas de Lamartine Babo, esta última regravada por João Gilberto], quanto em samba como ‘Cansei’/ ‘Gosto que me enrosco’ [ambas de Sinhô] e ‘Voltei a cantar’ [Lamartine Babo].

 

Seleção das músicas citadas

 

Cadê Mimi?” (João de Barro/Alberto Ribeiro) # Mário Reis. Disco Odeon (11.305-B) / Matriz (5266). Gravação (06/12/1935) / Lançamento (janeiro/1936).

 

 

Rasguei minha fantasia” (Lamartine Babo) # Mário Reis. Disco Victor (33.887-A) / Matriz (79791). Gravação (27/11/1934) / Lançamento (janeiro/1935).

 

 

Joujoux e balangandãns” (Lamartine Babo) # Mário Reis e Mariah [Maria Clara de Araújo] acompanhados por I. Kolman e a Orquestra do Cassino da Urca. Disco Colúmbia (55.155-A) / Matriz (178). Gravação (26/07/1939) / Lançamento (setembro de 1939).

 

 

Cansei” (J.B. da Silva ‘Sinhô) # Mário Reis e Orquestra Pan American. Disco Odeon (10.459-B) / Matriz (2813). Lançamento (agosto/1929).

 

 

 

 

Gosto que me enrosco” (J.B da Silva ‘Sinhô’) # Mário Reis. Disco Odeon (10.278-B) / Matriz (2002). Lançamento (novembro/1928).

 

 

 

 

Voltei a cantar” (Lamartine Babo) # Mário Reis e Orquestra do Cassino da Urca. Disco Colúmbia (55.155-B) / Matriz (183). Gravação (03/08/1939) / Lançamento (setembro/1939).

 

 

 

 

Em suas várias voltas [e retiradas], em 1939, 1960, 1965 e 1971, Mário Reis não se limitava a regravar o material antigo com orquestrações mais atualizadas. Em 1960, com a Bossa saindo da casca, mandou um Tom Jobim inédito que ficaria conhecido praticamente apenas na sua interpretação [Isso eu não faço]. Onze anos depois, o eleito do rigoroso estilista seria Chico Buarque. Dele registraria uma noviça ‘Bolsa de amores’, proibida pela censura [e não incluída no CD], que ele faria questão de não substituir no LP, deixando-o com uma faixa a menos. E uma surpreendente releitura do sucesso ‘A Banda’.

 

Isso eu não faço” (Tom Jobim) # Mário Reis. Álbum ‘Mário Reis canta suas criações em Hi-Fi’, 1960.

 

 

 

Bolsa de amores” (Chico Buarque) # Mário Reis. Disco Mário Reis, 1971.

 

 

 

 

 

Em meio à fanfarra de parada militar [condizente, aliás, com o regime da época], Mário, num desempenho coloquial contrastando com o acompanhamento, recupera o lirismo da letra surrada por tantas regravações. Ao contrário da maioria dos astros, em seu último disco ele não estava em declínio, mas no auge do seu poder de recriar as composições alheias, tornando-se um parceiro de seus fornecedores contemporâneos ou posteriores.

 

 

 

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Fontes:

– Dicionário Cravo Albin / Verbetes: Mário Reis / Dick Farney.

– Fotomontagem: Laura Macedo.

– Site YouTube / Canais: “Adilson Flávio Santos”, “Gilberto Inácio Gonçalves”, “luciano hortencio”, “Eduardo Michels”, “Zemedela”, “George Kaplan”, “Alfredo Pessoa”, “1000amigovelho”, “Marcelo Maldonato”, “Luiz Gilberto de Barros Filho”.

-Tem mais samba: das raízes à eletrônica / Tárik de Souza – São Paulo: Editora 34, 2003 [Transcrição do texto do Jornal do Brasil, em 25/05/2001].

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Laura Macedo

5 Comentários

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  1. Este é um ‘daqueles’ tipo Jacó

    Já notei, pelo jeitão do post, que ele veio para ficar. E logo com dois monstros de nossa MPB. Vou ouvir cada uma das canções, como de praxe, mas, em seu blog, com calma.

    Desde logo, felicito-a pela raça e dedicação em fazer esse trabalho bonito.

    Beijos.

    1. Estou na expectativa do seu comentário definitivo!

      Querido Gregório,

      Estou, de tocaia, a espera do seu comentário definitivo. Sei que você só comenta depois que ler e escutar todas os Vídeos

      Beijos.

       

  2. Laurinha!

    Se não fosse a musica brasileira, que seria de nos? Minha cara Laura que post mais interessante. De repente me dei conta de que ouço pouco Mario Reis e de que deu repertorio é moderno.. Ja Dick Farney sempre fez parte da discoteca de meus pais e ouço com uma nostalgia de algo que nem sei o que foi… Talvez minha infância numa época ainda ingênua… Adoro Dick dedilhando seu piano e cantando com aquela voz mansa, como se o tempo tivesse parado ali.

    Obrigada por nos desvencilhar das agruras de ser brasileiro nos dias de hoje, trazendo musica para nossos ouvidos.

    1. Querida amiga Maria

      Querida amiga Maria Luisa,

      Feliz por você ter gostado! A Música é uma magia que toca sensivelmente nossos corações / estilos. Todos nós temos nossas preferências musicais… , não é mesmo? O importante é a essência do que acreditamos, no sentido mais macro possível! As vezes, no calor de uma discussão, vamos até as ‘vias de fato’ defendendo nossas escolhas/preferências.Não podemos esquecer que o “OUTRO” tem o direito de discordar!

      Estamos com SAUDADES!

      Beijos.

  3. Conflitos

    Ah, se a gente soubesse o quanto viria a custar o alinhamento com a música dos EUA, admirações que abririam as portas para a sabotagem estrangeira à prosperidade e à alegria da nossa gente a até às nossas artes, música inclusa, comporia uma canção e a nomearia “Doces Ardis”. Ou em inglês, chamaria de “Soft Power”.

    – “Mas tio, será que não dá para a gente curtir o bom dos EUA sem ter que importar o que nos prejudica?”

    – “Não sei… ‘Farnésio’ é tão feio assim que precisa mesmo ser trocado por ‘Farney’? ‘Farney’ é palatável… para quem?”

    Palatável, palato, língua, idioma… Que idioma prefere “Farney” a “Farnésio”?

    “Mas não é ‘Farney’, é ‘Fárney’!”

    Farnésio por Fárney, Ribamar por Sarney… Farney parece Sarney dito por quem tem a língua presa. Como índio vai resistir ao brilho das bolinhas de vidro colorido?

     

    Soft power: https://pt.wikipedia.org/wiki/Soft_power

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