O centenário do maestro Eleazar de Carvalho

2 matérias no Estadão sobre os 100 do Maestro Eleazar de Carvalho.

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Eleazar de Carvalho, inédito 

Eleazar de Carvalho está ao centro, terno escuro, sorriso descontraído. Ao seu lado, um grupo aprumado de jovens alunos. O cenário é Tanglewood, casa do festival de verão da Sinfônica de Boston – e, entre os estudantes, em início de carreira, estão Zubin Mehta e Claudio Abbado, que se tornariam dois símbolos da arte da regência nas últimas décadas. Se uma imagem vale mesmo por mil palavras, a foto, do começo dos anos 50, é um discurso contundente a respeito da importância do maestro brasileiro no cenário musical da segunda metade do século 20 – assim como cerca de 30 gravações inéditas, feitas na Europa e nos Estados Unidos, às quais o Estado teve acesso exclusivo.

Nascido em Iguatu, a 300 quilômetros de Fortaleza, Eleazar de Carvalho foi o maestro brasileiro de mais representativa carreira internacional. Regeu 43 orquestras na Europa, 18 nos Estados Unidos – entre elas as filarmônicas de Viena, Berlim e Nova York, além das sinfônicas de Boston, Londres e Paris. Deu aulas, além de Tanglewood, na Julliard School e na Universidade de Yale. No Brasil, dirigiu a Osesp, a Sinfônica Brasileira, as orquestras do Recife, de Porto Alegre e da Paraíba e o Festival de Inverno de Campos do Jordão.

Em 2012, mais precisamente no dia 28 de julho, completam-se 100 anos de seu nascimento. As homenagens, até agora, têm sido discretas. Osesp, OSB e Filarmônica de Minas Gerais programaram concertos comemorativos, regidos por alguns de seus alunos. E, em seu site, a fundação que leva seu nome confirma para julho o festival realizado anualmente em Fortaleza, em sua homenagem. Vivo na memória de quem trabalhou com ele ou o viu em ação, porém, o legado do maestro, que morreu em setembro de 1996, continua desconhecido das novas gerações.

O Estado teve acesso exclusivo a registros de Eleazar, em posse de sua primeira mulher, a pianista e compositora Jocy de Oliveira. Feitos ao vivo na Europa e nos Estados Unidos e guardados desde os anos 60, eles foram digitalizados e esperam apoio para vir à luz – tentativas de patrocínio para edições até agora foram frustradas. “Estão todos no meu acervo, mas não são meus, permanecem à disposição de quem quiser lançá-los”, diz Jocy que, no ano passado, bancou a passagem das fitas de rolo para arquivos digitais, feita em um estúdio no Rio.

Bastante representativo, o conjunto de gravações é apenas um pedaço de um todo que se imagina ainda mais amplo. No site da Filarmônica de Berlim, por exemplo, há referências a cinco concertos do maestro, um deles com a pianista Martha Argerich como solista. A Fundação Padre Anchieta também tem em seu acervo registros ao vivo, feitos pela Rádio e TV Cultura, de concertos da Osesp em São Paulo e Campos do Jordão – eles serão exibidos ao longo do segundo semestre, mas a fundação não soube precisar a quantidade de fitas disponíveis. O Centro de Documentação Eleazar de Carvalho, pertencente à Osesp, não tem arquivos em áudio, apenas documentos e recortes de jornais referentes ao período em que ele dirigiu a orquestra. A pianista Sônia Muniz, viúva do maestro e guardiã de seu acervo, não atendeu aos pedidos de contato feitos pela reportagem ao longo da semana.

“Seja no que diz respeito ao repertório, seja no tocante à técnica, o Eleazar foi um divisor de águas na história da música brasileira”, diz o professor Henrique Autran Dourado, diretor do Conservatório de Tatuí, que trabalhou com o maestro na Osesp nos anos 80. “Com sua forte personalidade e indiscutível competência, ele foi o grande parâmetro para várias gerações de regentes e músicos brasileiros”, diz Fábio Mechetti, diretor da Filarmônica de Minas Gerais, que foi aluno de Eleazar, no Brasil e em Tanglewood.

Variedade. Os registros do acervo de Jocy de Oliveira dão testemunho dessa importância. Gravados na Europa e nos Estados Unidos nos anos 50 e 60, mostram um repertório amplo, aberto à música contemporânea. E, de quebra, oferecem um olhar sobre seu pouco conhecido trabalho como compositor, com a interpretação de “Variations on two Rows for Percussion and String Orchestra”, escrito por ele nos Estados Unidos. “Ele tinha uma técnica clara, que o permitia reger qualquer coisa”, lembra Jocy, que atua como solista, ao piano, em boa parte dos registros. “Era genial montando a interpretação de uma obra durante os ensaios. E, na hora do concerto, transformava-se em um ator, tinha aquela chama que conquistava o público de imediato.”

Na lista, estão cavalos de batalha do maestro. De Villa-Lobos, há o registro do “Momoprecoce” (Orquestra da Rádio e Televisão Belga, 1959), dos “Choros n.º 10″ (Filarmônica de Nova York, 1959) e do “Descobrimento do Brasil” (Filarmônica de Nova York, concerto realizado na ONU em 1959). Também na ONU, há a gravação de uma interpretação da “Nona Sinfonia” de Beethoven – entre os solistas, a soprano Elisabeth Schwarzkopf e o tenor Jan Peerce, dois dos principais cantores da época.

Quando chegou aos Estados Unidos, nos anos 40, Eleazar tentou uma vaga na orquestra da Filadélfia. Rechaçado, rumou para Boston, onde procurou o maestro Sergei Koussevitzky. Depois de reger a sinfônica, foi aceito no restrito time de assistentes do maestro russo, ao lado do norte-americano Leonard Bernstein. Daí a importância histórica dos registros com a Sinfônica de Boston. Neles, interpreta o “Concerto para Piano” de Ravel (com Jocy, 1956), “Petruchka” de Stravinski (1956), a “Sinfonia n.º 4″ de Tchaikovsky (1962), e as “Seis Peças para Orquestra” de Webern (1959), entre outras.

Para Autran Dourado, a preocupação com a música contemporânea foi potencializada com o casamento com Jocy, que como intérprete e compositora mantinha relação estreita com a vanguarda. Prova disso é um concerto de Paris, em 1964, em que rege, à frente da Orquestra da Radio France, peças de Elliot Carter, Darius Milhaud e Stravinski.

No repertório brasileiro, há ao menos uma preciosidade – “Música Concertante”, concerto dodecafônico para piano e orquestra de Claudio Santoro, gravado na Bélgica em 1964. “Foi a primeira audição mundial da obra – e, até onde sei, nunca mais foi interpretada, o que é uma pena, pois é símbolo de um momento importante da carreira do Santoro. O Eleazar tinha uma relação curiosa com compositores vivos. Conversava com eles, uma, duas vezes, e depois queria liberdade para ensaiar. Mas dava a eles todo o espaço que conseguia em seus concertos. Quando comandou a Orquestra de Saint-Louis, ouvia constantemente reclamações da direção por conta da inclusão do repertório contemporâneo em seus concertos”, diz Jocy.

Leia o artigo “Orquestras estão devendo homenagem à altura do maestro”, de João Marcos Coelho

Ouça um trecho da gravação do “Momoprecoce”, com Eleazar de Carvalho e Jocy de Oliveira

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Orquestras estão devendo homenagem à altura do maestro 

Análise: João Marcos Coelho

 

A Série Eleazar de Carvalho com a qual a Osesp quer “marcar o centenário de nascimento do inesquecível maestro Eleazar de Carvalho, que dirigiu a orquestra de 1973 a 1996”, compõe-se de três concertos ao longo do ano. O primeiro, que marcou em março a estreia de Marin Alsop como nova regente titular, ligou-a a Leonard Bernstein, seu professor, que por sua vez foi parceiro de Eleazar em Tanglewood. O segundo, em maio passado, teve a presença de Roberto Tibiriçá, aluno de Eleazar, regendo a Sexta Sinfonia de Tchaikovski, “um dos cavalos de batalha” do maestro. E o terceiro acontece na semana de 28 de junho, com a apresentação da Missa Solemnis de Beethoven na Sala São Paulo e também inaugurando o 43º. Festival de Inverno de Campos do Jordão. Beethoven e Campos foram, de fato, duas suas maiores obsessões (no bom sentido).

O máximo que se pode dizer a respeito deste “tributo” é que ele é protocolar. É difícil justificar uma homenagem tão modesta ao maestro que assumiu a Osesp em 1973, então desativada, e comandou-a em décadas conturbadas, com verbas mínimas que só propiciavam a subsistência e o salário (baixo) dos músicos. Eleazar teve de trabalhar com a prata da casa. Em 1976, na quarta temporada dupla – dirigindo a Osesp e implantando em Campos do Jordão o modelo “festa e aprendizado” de Tanglewood (ele dirigira por 17 anos, de 1951 a 1968, o Berkshire Music Center, sucedendo a Koussevitzky) -, repatriou o violinista Airton Pinto, o primeiro brasileiro a integrar a Sinfônica de Boston, entre 1959 e 1976, e professor do New England Conservatory. Airton foi seu spalla na Osesp até 1988.

Mas não havia sede para a orquestra, que ocupou o Cultura Artística e depois o Cine Copan. Mesmo assim, Eleazar fez ciclos completos das sinfonias de Mahler, Beethoven, Brahms – e muita música contemporânea. Manteve a orquestra viva. Tudo meio aos trancos e barrancos, é verdade. Por causa dos salários baixos, os músicos ensaiavam pouco e eram ávidos cachezistas, ou seja, tocavam em qualquer lugar, até em casamentos, pra pôr comida decente em casa.

Ou seja, a Osesp não era a orquestra dos sonhos de ninguém – nem dos músicos, do público e até mesmo do próprio Eleazar. Mas ele lutou até o fim da vida. Não tinha nenhum jogo de cintura nem paciência para negociações de bastidores. Ou lhe davam o que considerava fundamental, ou então “peitava” o oponente. Mesmo assim, a Osesp que John Neschling reformulou em 1997 já era mais de meio caminho andado para a “nova Osesp”. Afinal, a velha Osesp vergou-se mas continuou de pé só por causa da obstinação de Eleazar. A visão de políticos que pela primeira vez enxergaram na orquestra uma excelente ferramenta e a vontade/determinação de Neschling para fazer uma proposta de fato profissional e estruturada para a Osesp mudaram tudo nos últimos quinze anos. Isso não é motivo, porém, para se reduzir a meros três concertos o tributo da orquestra a seu fundador de fato.

Afinal, Eleazar não é importante apenas pelas décadas de formação e consolidação da Osesp. Possui luz própria inquestionável. Lidera a seletíssima lista de músicos brasileiros que de fato construíram fama mundial e se impuseram entre os grandes artistas da música no século 20. Uma lista diminuta que ainda deixa livre um dos cinco dedos de uma só mão. Se você pensou em Guiomar Novaes, Magda Tagliaferro e Nelson Freire como integrantes desta listinha, acertou.

O vasto e diversificado projeto discográfico da Osesp bem poderia ter incluído algo permanente como tributo ao centenário do maestro: por exemplo, uma caixa com uma boa dezena de CDs contendo gravações de Eleazar. Ao menos meia dúzia de CDs históricos podem ser pinçados a partir das centenas de registros ao vivo em Campos do Jordão e nas temporadas da própria Osesp dos anos 80/90. Deve haver outras joias raras com a OSB e algo que se salve de suas demais orquestras brasileiras. Com destaque para Villa-Lobos, sua maior paixão, e a música contemporânea, com certeza. E algum registro da Sinfonia Fantástica de Berlioz e da Eroica de Beethoven – outras paixões do maestro.

Dos registros internacionais, há pelo menos três obrigatórios. Os dois CDs da gravadora norte-americana Delos, de 1999, com a Orquestra Sinfônica da Paraíba, em concertos ao vivo de um festival lá realizado em 1992, que podem ser baixados por módicos US$7,99 cada no site www.classicsonline.com. São eles: A Brazilian Extravaganza, com obras de Villa-Lobos (Choros nº 8, Uirapuru e Fantasia para Violoncelo e Orquestra, Com o grande Janos Starker), e Marlos Nobre (Convergências). E Masters and Winners, também ao vivo no mesmo festival, com obras de Prokofiev (concerto para violino no. 2 com Scott Yoo), Bartok (concerto para viola com Karen Elaine-Bakunin, Vivaldi (Concerto para dois violoncelos, com Aldo Parisot e Emmanuel Lopez) e as Variações Rococó de Tchaikovsky, novamente com Starker.

Nos arquivos de St. Louis também pode haver outras pepitas como esta, garimpada na Amazon: um CD Brahms, que traz Eleazar regendo a St. Louis e Itzhak Perlman no concerto para violino de Brahms, em registro ao vivo no Carnegie Hall nos anos 60. A obra que completa este CD, também gravada ao vivo no Carnegie Hall na mesma época, mostra o tipo de parceiros com os quais Eleazar cruzava nos EUA: Gennadi Rozhdestvensky rege a London Symphony no concerto duplo. Os solistas são Perlman e Mstislav Rostropovich (a Amazon indica que é do selo italiano Intaglio, mas está indisponível; basta pesquisar para encontrar o teipe).

As gravações são precárias tecnicamente? Não as citadas, mas o critério de qualidade técnica nem sempre é decisivo em registros históricos. As execuções, sobretudo as brasileiras, são desiguais? Pode ser. Mas não dá pra jogar tudo isso no lixão. É urgente que, de uma vez por todas, se tome consciência de que, tão ou mais importante do que saber para onde as instituições musicais caminham ambiciosamente em direção a um futuro dourado, é conhecer o seu passado, a sua história. Só assim se cresce de modo sustentado.

fontes:

http://blogs.estadao.com.br/joao-luiz-sampaio/eleazar-de-carvalho-inedito/

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,orquestras-estao-devendo-hom…

Luis Nassif

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