O funk e a margem de felicidade

O que é que o funk (carioca, paulista, de onde for) tem a ver com isto? A pergunta sai da boca do secretário de Cultura do município de São Paulo, Juca Ferreira, e na partícula “isto” deveríamos incluir todo o caldo cultural paulistano e paulista, no qual já se nutriram modernismos e atropofagias, saudosas malocas e modernas tropicálias.

Juca fala para o público – ardente, provocador – do Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, o CCJ, um dos equipamentos periféricos legados das prefeituras tucanas à atual gestão petista de Fernando Haddad. Estamos na zona norte da cidade, na Vila Nova Cachoeirinha, a mesma região que nos presenteou, há poucos anos, o afiado rapper Emicida.

Em anos recentes, rappers mais maciços, como Mano Brown, andaram “exilados” em espaços como esse CCJ e a calçada e o asfalto em frente. Mas Juca não veio ao CCJ para falar de hip-hop. A vedete hoje é o funk, que já foi exclusivamente carioca e anda cada vez mais paulista e paulistano – apesar da barbárie de extermínio de funkeiros que também temos vivido, sob pouca ou nenhuma reação dos poderes públicos competentes.

Confinadas noutros exílios, a classe média e a elite da maior cidade brasileira não ouvem o que está sendo dito no CCJ e em outros espaços periféricos, como o Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes. Mas é nesses locais que Juca, ex-ministro da Cultura no segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, encontra oportunidade de transmitir a que veio e em que é diferente de antecessores mais preocupados com o erudito que com o popular, com a Sala São Paulo que com o CCJ, com a atividade de gabinete que com as ruas.

“Andei conversando com uns que acham que o pancadão tem que ser proibido”, afirma o secretário no ato inaugural do ciclo de debates sobre o funk, que aconteceu na quinta-feira, dia 15. “Como é que você se acha no direito de reprimir uma manifestação dessas?”, ele nos pergunta, depois de mencionar que “parte da imprensa” e “pessoas ligadas a segurança na cidade” prefeririam manter bem à distância tais manifestações – talvez não propriamente o funk, mas sim o imaginário preto-pobre-periférico oculto atrás da máscara funkeira, entre tantas outras.

O secretário está apenas apresentando um debate do qual não participará diretamente. O melhor virá depois, nas manifestações do funkeiro carioca (e fundador da Apafunk, a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk) MC Leonardo e do documentarista paulistano Montanha, sob mediação de Danilo Cymrot, mestre e doutorando em criminologia pela faculdade de direito da USP e estudioso (sim, ESTUDIOSO) do funk.

Por ora, FAROFAFÁ deixa à(0) leitor(a) a (curta) fala inicial do secretário de Cultura. Nela estão presentes indicadores importantes para quem queira compreender quais transformações estão sendo gestadas e trestadas agora mesmo em termos de política cultural para a cidade de São Paulo. Explicitamente, Juca trata funk (e/ou quaisquer manifestações artísticas periféricas) como CULTURA, recusando-se a vinculá-lo(s) a crime, criminalidade, criminalização. Para além disso, o discurso do secretário traz pistas sobre como governantes atuais compreendem e respondem às passeatas e manifestações de rua que têm varrido as ruas de São Paulo e do Brasil.

Juca Ferreira com a palavra:

“Para mim é uma alegria, como secretário de Cultura, ter vínculos com o Centro Cultural da Juventude, que está organizando essa programação sobre o funk. Vários equipamentos nossos discutem o tema, não é à toa, não é por coincidência. O funk é criminalizado, é discriminado, é visto de uma maneira muito preconceituosa e restritiva, não só pelas autoridades e pela polícia, mas por uma parte da população.

“Desde que nós chegamos à Secretaria de Cultura, em janeiro, temos trabalhado para abrir todas as portas. ‘Ah, não pode Racionais MCs no aniversário da cidade.’ Pode. ‘Ah, não pode Criolo.’ Pode. ‘Não pode Emicida.’ Pode. ‘Não pode funk na Virada Cultural.’ Pode. Por que não pode? As respostas eram as piores possíveis.

“O funk está ligado a uma certa divisão da cidade. Eu estava buscando aqui uma palavra, mas a palavra direta é essa. Parte da imprensa e algumas pessoas ligadas a segurança na cidade diziam que eu devia programar eventos na periferia durante a Virada, para que as pessoas não viessem para o centro. Eu dizia: ‘Mas por que as pessoas não devem vir para o centro?’. ‘Não, porque vai dar tumulto.’ Essa é a visão mais preconceituosa. Eu, inclusive, acabei formulando na minha cabeça uma frase: não se constrói segurança social baseada em preconceito e discriminação.

“Na verdade, eu via que as pessoas que vinham da periferia tinham um comportamento igualzinho ao das pessoas que vinham dos bairros de classe média. Vinham para assistir ao show de que gostam, vinham para desfrutar da convivência de uma parte grande da cidade. Falam de 4 milhões de pessoas na Virada, talvez não seja tanto, mas não quero discutir o número: é muita gente.Essa convivência, numa cidade que não tem praia nem momentos de convivência, acaba cumprindo um papel muito importante, não só pela quantidade de shows que ela oferta, pela diversidade.

“É a convivência. São Paulo é uma cidade que precisa conviver. Não podemos aceitar essas barreiras do preconceito e da discriminação, que reduzem a possibilidade de uma convivência pacífica, saudável e produtiva na cidade.

“A Virada dá uma contribuição para isso, e as manifestações de rua acabam dando também, por outro caminho, uma contribuição para que a cidade se supere e crie novos mecanismos de convivência social. Quando a cidadania se manifesta nessas passeatas, é uma ocupação da rua, uma afirmação de que a rua é um espaço simbólico dos cidadãos, das cidadãs e da cidade.

“O funk está ligado a um contexto de discriminação e de divisão na cidade, e a uma dificuldade de assumir a complexidade da cidade, uma cidade globalizada. Diga um povo do mundo e tem gente aqui morando. É a cidade mais negra do Brasil, a maior quantidade de negros vive aqui. É a cidade mais nordestina do Brasil. E tudo isso passa por um processo de seletividade social que é muito negativo.

“O que é que isso tem a ver com o funk? Acredito que essa seja hoje a maior manifestação musical da juventude da periferia. Não há quem possa tirar esse mérito. Fui participar de um evento na zona leste, e um padre que é muito popular pelo trabalho que faz há décadas na região disse uma coisa engraçadíssima: ‘Quando organizo evento, dá cem pessoas. Quando o hip-hop organiza um evento, vão umas 500. Agora, quando é evento de funk, dá 5.000 pessoas’. Eu disse: ‘Padre, então traz um funk aqui pra encher, você melhora sua possibilidade de dialogar com essa garotada que está chegando’.

“O funk tem muito a ver com o direito de dançar, com o direito de se reunir desses jovens. É gente muito jovem que participa dos pancadões. Tudo bem, o pancadão certamente incomoda quem mora perto. Mas então vamos organizar a possibilidade de que aconteça em situações minimamente confortáveis para quem está no pancadão e para quem mora perto. Proibir é um absurdo, principalmente para um poder público que não oferece muita coisa para as pessoas se divertirem.

“Teve um garoto, numa das reuniões que fiz, que disse o seguinte: ‘Eu passo a semana na escola pensando no pancadão. É lá que eu vou encontrar as meninas, vou exibir meu tênis, vou dançar’. Como é que você se acha no direito de reprimir uma manifestação dessas? Eu andei conversando com uns que acham que o pancadão tem que ser proibido. As alegações é que há gente lá vendendo drogas para a juventude. Tenho certeza de que em qualquer acontecimento em determinadas regiões da cidade vai haver gente do tráfico presente, seja missa, culto religioso, o que for. Porque eles são parte da realidade, de uma realidade em que historicamente o estado não esteve presente, não foi capaz de oferecer os serviços e o conforto necessários para essas populações.

“Para mim é outra história: construir a cidade que a gente quer passa necessariamente por abrir todas as comportas e considerar as demandas e necessidades dos diversos grupamentos sociais que fazem parte da cidade, construindo recursos e serviços públicos que dialoguem sem preconceitos, sem discriminação, com a complexidade da maior cidade brasileira e uma das maiores cidades do mundo.

“Esta discussão do funk tem a ver com o funk, com a compreensão de que o funk é parte da cultura, com a importância social do funk, as possibilidades estéticas do funk. Mas tem a ver também com a necessidade de abrir o leque sobre uma cidade que começa a construir na rua uma nova cidadania, novas demandas, muitas demandas. As manifestações estão mostrando que são muitas. Um camarada fez profissionalamente um levantamento e concluiu que são em torno de 200 demandas nas manifestações.

“Há as demandas mais evidentes, como mobilidade e transporte, mas há muitas demandas de uma cidade que, apesar de não ser uma cidade pobre, é uma cidade que não oferece o conforto e a satisfação das necessidades das pessoas. Dentro dessa complexidade, dessa multiplicidade de demandas, temos que respeitar e compreender o funk, que é uma manifestação majoritária da juventude da periferia e está também presente nos bairros de classe média de uma maneira bastante forte. Em todas as capitais do Brasil a realidade é a mesma, de norte a sul. Hoje, o gênero musical que mais desperta interesse e animação na garotada é exatamente o funk. Então nós vamos discutir aqui uma coisa que é muito importante culturalmente, socialmente.

“Por essa discussão passa também a construção de outras relações, inclusive do poder público com as pessoas que vivem na cidade. Vamos nessa, vamos construir outra relação da prefeitura com  as pessoas, que por aí a gente pode criar uma margem de felicidade maior do que esta cidade tem atualmente“.

Redação

1 Comentário

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  1. Discriminação
    Por que o secretário não cria programas que facilitem o acesso da periferia aos concertos e óperas no Teatro Municipal? A periferia só merece ouvir funk e pancadão lá no seu próprio reduto? Parece que não, já que existem projetos que visam levar concertos à periferia. Mas e o percurso inverso? A periferia não é benvinda no Municipal e deve ser mantida bem longe dali, para não sujar o piso de mármore e as poltronas de veludo vermelho? É por essa razão que o concerto é levado ao reduto da periferia, mas a periferia não é trazida para o reduto do concerto? Só não me digam que não há interesse por música clássica entre a juventude da periferia, porque Heliópolis está aí para desmentir essa afirmação.

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